A cidade adormecida
Que Paris é esta que foi atacada por um grupo de jihadistas, deixando o mundo em estado de choque? A cidade está agora vazia e os parisienses à espera de que ela acorde e lhes diga que podem continuar a festa. (...)

A cidade adormecida
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Que Paris é esta que foi atacada por um grupo de jihadistas, deixando o mundo em estado de choque? A cidade está agora vazia e os parisienses à espera de que ela acorde e lhes diga que podem continuar a festa.
TEXTO: — Os mortos não estão tranquilos, em Paris. — Ninguém está tranquilo, em Paris. René Fallet, Paris au mois d’août (1964)1. Na manhã seguinte aos ataques de sexta-feira 13, no espaço frio do Nowe Muzeum Slaskie, em Katowice, no Nordeste polaco, encontrei, numa parede tão cinzenta como as cores do quadro, uma reprodução do Arco do Triunfo, tal como o viu Aleksander Jedrzejewski em 1932. Chama-lhe, simplesmente, Paris (Arc du Triomphe-Étoile). O movimento circular que faz mover a direcção do nosso olhar está ao centro da pintura. O arco, de detalhes desfeitos, é, ainda assim, mais preciso do que os restantes edifícios das ruas que o contornam. Existem vários carros e carrinhas vermelhas e o dia parece de chuva mas buliçoso. Não fosse o que se passara na véspera e a visão deste quadro seria, para mim, tão banal como a realidade que nele se vê retratada. O pintor, sobre o qual a informação é escassa, até no próprio museu, pinta o que Paris parece desconhecer, como, de facto, desconhecia: as intenções que, nesse mesmo ano, se escondiam atrás das acções de Hitler em plena preparação de assalto ao poder. Quando regressei, surpreenderam-me as ruas vazias. Enquanto percorro uma livraria, encontro um livro, Place de l’Étoile, escrito em 1968 por Patrick Modiano, autor que é alma viva da história de Paris. Situando-o dez anos depois do quadro pintado por Jedrzejewski, Modiano fala de uma capital ocupada pelo exército alemão. Ao início, um diálogo entre um jovem oficial alemão, que pergunta onde fica a Étoile, e um judeu, que lhe aponta o lado esquerdo do peito, marca o tom do livro. Étoile, que significa estrela em português, permite-se a um jogo de palavras entre a localização da praça, desejada pelo alemão pelo que representa para a identidade da cidade, e a estrela de David, que marca e confina a identidade do judeu. Dizem-me que desde a ocupação alemã que as ruas de Paris não se mostravam vazias. A tentação de encontrar um paralelo com as ruas que encontrei no regresso de Katowice é justificada quando, depois da declaração de guerra que François Hollande proferiu perante o Senado e o Parlamento, em Versalhes, vejo no filme Francofonia, do realizador russo Aleksander Sokourov, a tentativa de falar da arte como “a língua franca da civilização”, como escreveu a revista Les Inrockuptibles. Sokourov socorre-se do exemplo da ocupação alemã e do processo de transladação das obras no Museu do Louvre para palácios e mosteiros desconhecidos do exército alemão para explorar a ideia de uma cidade-estado que, não sendo o berço da humanidade, é, pelo menos, o berço do humanismo. A narrativa de Francofonia, que mistura documentário e ficção, não deixa de colocar uma Marianne a repetir os valores da República perante as intenções de Hitler, que justificava o saque do Louvre como a tomada de posse da própria Europa. A leitura de Sokourov propõe que através dos retratos do povo expostos no Louvre podemos contar a história europeia. “Esta necessidade de registo do povo, esta fixação da memória, não existe noutras civilizações, como a muçulmana, que não admitem o retrato”, continua. É como se dissesse que sem história não há memória, e sem memória não há consciência. Civilização foi também a marca distintiva no discurso de Hollande na passada segunda-feira em Versalhes: “A França não se envolverá numa guerra de civilizações porque os assassinos do Estado Islâmico não representam qualquer civilização. ” Paris, mais do que capital de um país, é, afinal, a capital de uma civilização que vê serem atacados aqueles que já nasceram depois de todas as conquistas e, por isso, herdaram uma cultura maior e mais vasta do que a própria França. “A cultura — é por ela que a França hoje se bate”, reafirmou Hollande ao Conselho Geral da UNESCO, na manhã de quarta-feira, horas depois de novas explosões na periferia parisiense. Aquilo a que se referia era, apesar de tudo, à criação de uma lei para o exílio patrimonial de obras de arte que pertencem a todos mas que estão sujeitas a cair nas mãos dos terroristas do Estado Islâmico. Mas a destruição a que esse património mundial tem sido sujeito nos últimos meses relaciona-se com a ausência de necessidade de referências artísticas. A destruição da memória colectiva começa na destruição da memória individual. E, com ela, a dos seus rostos e do seu modo de vida. 2. Leio no Le Devoir o artigo de Dider Peron, “O que forjará a geração Bataclan”: “Se quisermos considerar que em França, mais do que em qualquer outro lugar, uma geração se define pelo seu baptismo de revolta ou manifestação, falemos nós dos estudantes do Maio de 68 ou dos tumultos de 2005, ficamos com a sensação de que, pela primeira vez, há uma geração que nasceu e morreu no mesmo ano. ” Era essa liberdade, essa ideia de fraternidade, esse princípio de igualdade que fizera com que, em Janeiro deste ano, dias depois dos ataques ao jornal Charlie Hebdo, as ruas de Paris se enchessem de um mar de gente, mesmo as que nunca tinham lido ou ouvido falar do jornal satírico. Era tanta a gente que o mundo foi pequeno para as acolher porque o que se defendia não admitia fronteiras. Eram as mesmas pessoas que já nasceram na miscigenação e tanto lhes dá comer paquistanês ao almoço como jantar sírio à noite. É gente que enche os 10. º e 11. º bairros com a ligeireza de um quotidiano sem regras. Gente que é, afinal, a recusa da gentrificação, da cidade turística, da realidade vista pelo filtro do Instagram. É gente que não vai aos museus porque deixa sempre tudo para o fim mas pode ir ao cinema às 9 da manhã, porque haverá sempre um filme para dialogar com o seu estado de espírito. É gente que, afinal, precisa das ruas não apenas porque as casas são pequenas mas porque precisa dos rostos dos outros para se sentir em casa. É gente que olha para Paris e sabe que a cidade já não é o lugar da descoberta mas da validação. Paris pode já não ser a cidade da nossa vida, mas a cidade por onde a nossa vida passará. A cidade onde nunca há tempo para nada excepto para perder tempo a discutir um qualquer assunto horas a fio, em qualquer sítio. A cidade das filas intermináveis para tudo, da burocracia não kafkiana mas proustiana, porque tudo tem uma razão ancestral, e a cidade onde o primeiro ano é um verdadeiro teste à resiliência e à sorte de principiante. Paris é, dizia-me um amigo que entretanto se foi embora para Nova Iorque, “a cidade que se ama melhor quando se está distante”, porque quando se vive nela todos os dias, é esse namoro constante que deixamos colado em frigoríficos do tamanho de uma perna em casas do tamanho de quatro braços esticados e que custam mais do que o rendimento médio português, mas com vista para todos os sonhos possíveis. Esta necessidade de registo do povo, esta fixação da memória, não existe noutras civilizações, como a muçulmana, que não admitem o retrato“A França é a terra de acolhimento de todos os inexistentes, e falamos francês, que é a língua do Império das Ideias”, escreveu Alexis Jenni em L’art français de la guerre, romance ácido sobre o pós-guerra, como se fosse um estado mental no qual a França se foi construindo ao longo de todo o século XX e que hoje parece ainda mais certo, sobretudo quando a geração atacada não herdou o medo de viver. “O império permite-lhe viver em paz, ser igual e diferente ao mesmo tempo sem fazer disso um drama. Contudo, para se ser cidadão de uma nação, há-que merecê-lo, por nascimento, pelo carácter, por uma análise fina das suas origens. É esse o lado negativo de uma nação: ou somos ou não somos, e a dúvida permanece. ”Por isso, em Janeiro, quando gritámos ser Charlie, gritávamos, nas ruas de Paris, pelo que a França há tanto tempo gritava por nós. O que se estava a defender era esse direito de pertença através da defesa de valores que, adormecidos porque tidos como garantidos, estavam a ser atacados pela mais vil das formas: a repressão de algo tão estrutural para a identidade como a liberdade de pensar. Mas em Janeiro não estávamos em guerra. Agora estamos. As ruas estão vazias. Estão vazias há vários dias. Onde estão os parisienses? Os bares fecham mais cedo, os teatros demoram a encher, os autocarros, à noite, passeiam sozinhos. Aqueles que têm família noutras regiões depressa marcaram viagens, apesar dos preços proibitivos de última hora. Nas mensagens que fui recebendo desses amigos que foram para o Sul, para o Norte, para junto da família, parece não caber a nostalgia filmada por Woody Allen em Meia-Noite em Paris, nem os passos de dança de Gene Kelly nas praças de cartão de Um Americano em Paris. Parecemos ter vergonha das pernas da Shirley Maclaine a desafiar o Jack Lemmon no Irma La Douce ou perdido a vontade de correr pela Grand Galerie do Louvre, como no Jules e Jim. Desde a Ocupação que Paris não se esvaziava, insistem. Nem quando o estado de emergência foi criado, em 1955, para fazer face aos ataques do exército argelino. A guerra depois de 1945 continuou sempre lá fora, e Paris, depois de libertada, o palco de todas as manifestações. Hoje ninguém sabe o que foi porque ninguém teve de se esconder. Nunca ninguém teve de viver em ruas vazias, deixadas apenas para os turistas e, mesmo esses, incapazes de as fotografar. O projecto europeu, que por duas vezes a França questionou — na rejeição do Tratado em 2005 e na vitória dada à Frente Nacional nas últimas eleições europeias — vivia bem com o orgulhoso cepticismo francês. É por isso que não há um guião para estes dias. E Paris, a dos cenários para filmes, não chega para encher as ruas. Navegou-se à vista até que a realidade que só conhecíamos filtrada pelas redes sociais, discutida nos cafés como hipótese teórica, questionada na imprensa, entrou no quotidiano de cada um, num estádio de futebol, num restaurante, num bar, numa sala de espectáculos. Na vida, afinal, que mais do que escolhida era garantida. E é por isso que toca tanto os que têm de Paris a imagem da capital perfeita, de pôr do Sol atrás de Notre Dame e feiras da ladra de perder de vista. E é por isso que, indignados, os parisienses, os que moram aqui e os que, de coração, se sentem aqui, nesta capital da civilização, não suportam o moralismo dos que dizem que só se chora por Paris e exigem que se chore por todos os dramas. Como se Paris não fosse, afinal, o âmago do que se tenta defender para cada um dos outros dramas. Já não sei onde li: “A liberdade que estamos a defender é a nossa liberdade, a nossa forma de a viver. ” Na manhã seguinte aos ataques, um comentário publicado no jornal New York Times fazia a apologia de um modo de vida que não podia soçobrar. E que reflectia isso mesmo: “A França incarna tudo o que os fanáticos religiosos detestam: aproveitar a vida na terra através de uma multitude de formas: um café perfumado com um croissant cheio de manteiga de manhã, lindas mulheres que nos sorriem na rua vestidas com saias curtas, o cheiro do pão quente, uma garrafa de vinho partilhada entre amigos, um pouco de perfume, crianças que brincam no Jardin du Luxembourg, o direito a não acreditar num Deus qualquer que ele seja, não se preocupar com as calorias, flirtar, fumar e ter uma vida sexual sem se ser casado, ir de férias, poder ler qualquer livro, ir à escola gratuitamente, brincar, rir, reivindicar, fazer pouco tanto dos políticos como dos padres, deixar a inquietude sobre a vida após a morte para os mortos. Em nenhum país no mundo se vive melhor que em França. ” Foi isto que foi destruído, este mundo “de abomináveis pervertidos”, escreveram os terroristas na reivindicação dos ataques. Como se defender então do seu próprio modo de vida?3. Nos dias a seguir aos ataques não foram poucas as pessoas que partilharam no Twitter o título francês de A Moveable Feast, de Ernest Hemingway, Paris est une fête, defendendo exactamente que aquilo que havia sido atacado pelos terroristas era, afinal, um modo de vida que não admitia recuos. Anne Hidalgo, maire de Paris, haveria de se referir a esse modo de viver no discurso que fez na quarta-feira no encontro dos maires franceses: “Esta Paris que foi atacada é nossa. Sofre mas mantém-se de pé e olha a direito. Está viva e viverá. Permaneceremos de pé, continuaremos a ser nós mesmos, unidos pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade. ”Nunca tendo lido o livro, abro ao acaso uma edição de bolso e encontro uma descrição que serve na perfeição uma cidade que, longe de ser perfeita, é sempre descrita como o sendo: “Paris era uma cidade muito velha, e nós éramos jovens e nada era simples, nem mesmo a pobreza, ou a riqueza imprevista, nem a luz da lua, nem o bem, nem o mal, nem o respirar de alguém a dormir ao nosso lado à luz da lua. ” E outra, deixada de fora na edição original e recuperada quando passaram 45 anos da sua publicação: “Não há nunca um fim em Paris e a lembrança que cada um guarda é diferente. Voltaríamos todos e, a cada vez, não importa quem éramos, ou o que havia mudado, nem com que dificuldades — ou com que facilidade — o tínhamos conseguido. Paris valia sempre a ida, e recebíamos sempre qualquer coisa daquilo que lhe dávamos. ”A França é a terra de acolhimento de todos os inexistentes, e falamos francês, que é a língua do Império das IdeiasPerguntei a amigos diversos o que era, como era, porque era, Paris e as respostas mostram esse sentimento de pertença prolongado no tempo. Falavam de como a cidade foi parte das suas vidas, ou a vida toda, ou a cidade onde deveriam ter nascido, de como foi nela que se apaixonaram a sério, de como Paris as ensinou a viver para lá da sua própria imagem de cidade-postal, de bifes tártaro e champanhe numa tarde de Inverno, de símbolos de paz e liberdade, do jazz, da luz reflectida nos edifícios, e dos próprios edifícios, da sua majestade e da profunda e constante transformação, de lugar de acolhimento para todos. . . E a cada resposta afastando um quotidiano que, muitas vezes, parece fazer de tudo para nos expulsar. Há uma frase, profundamente misógina, de Raymond Queneau em Zizi dans le metro, onde se lê que “Paris parece uma daquelas mulheres que se transformaram em homens à força de tanto praticarem desporto”. Essa dureza, sedutora quando é necessário defendê-la, é uma característica irresistível, molda-lhe o charme e apaga as dúvidas. As ruas estão vazias. E os que sobreviveram, como escreveu Aragon, “nascerão das ruínas de hoje”. Um amigo, professor de História da Arte, diz que passou os primeiros dias da semana a ouvir os alunos do ensino secundário a justificar as ausências das aulas por medo. E os que iam, incapazes de controlar as emoções. Nas aulas, em vez da história, em vez da arte como língua franca da civilização, o choro compulsivo de alguns. Paris e a sua monumentalidade não servem de nada. Pergunto-lhe como fez para lhes explicar o que se passara e que a cidade atacada ainda era a sua cidade. A resposta é a mais contundente: “Não fiz, ouvi. ”Marc Crepon, director do Departamento de Filosofia da École Normale Superieur, escreveu no jornal Libération que “uma vez que a violência irrompe no decorrer normal da vida, há uma ruptura que é introduzida; e o que é interrompido é a confiança no espaço percorrido, nos lugares que frequentamos, naqueles com quem nos cruzamos”. Talvez isso explique a dificuldade de esclarecer o que é, o que pode ou como é Paris. Nunca a pergunta havia sido formulada porque não havia razão para o ser. 4. Na tarde de 7 de Janeiro, após ter terminado uma reportagem para o jornal e deixado a Rua Nicolas Appert, onde ainda fica a redacção do Charlie Hebdo, não foram poucas as vezes que ouvi alguém dirigir-se a um homem ou uma mulher muçulmana e sorrir-lhe, estender-lhe a mão e dizer-lhe que sabia que não eram todos iguais. Nos dias seguintes, e mesmo com a retórica inflamada da Frente Nacional, Paris sabia que era o que era por causa daqueles que ali tinham escolhido viver ou ali tinham nascido. Na grande manifestação de dia 11, quando a República era aquele mar de gente toda igual, fraterna e livre, éramos todos parisienses, franceses, cidadãos do mundo, como se Paris fosse a Atenas de Sócrates. Mas hoje “o corpo social treme de febre”, como escreveu Alexis Jenni em L’art français de la guerre. “Não consegue dormir o corpo social: ele receia perder a razão e a sua integridade; a febre agita-o. Ele não encontra posição na cama quente. Um barulho inesperado soa-lhe como uma agressão. Os enfermos não suportam que lhes gritem, faz-lhes tão mal que é como se lhes batessem. No calor descontrolado do seu quarto, os enfermos confundem a ideia e a coisa, o medo e as consequências, o barulho das palavras e dos murros. ”Esta Paris que foi atacada é nossa. Sofre mas mantém-se de pé e olha a direito. Está viva e viverá. Permaneceremos de pé, continuaremos a ser nós mesmos, unidos pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidadeVivem assim, hoje, os que sobreviveram. E foram todos os que não morreram. Se os últimos dias já eram estranhos, com a ideia de normalidade a ser reequacionada através do esforço da sua moralização — o que é ou não normal, afinal?! — com as declarações de Hollande, o normal agora é encontrar a sua própria definição de normalidade a partir do que nos rodeia. E o que nos rodeia é, agora, a guerra. Por isso, agir normalmente, estar em guerra, é ouvir o silêncio nas ruas. É não ousar olhar nos olhos de quem viaja ao nosso lado no metro. É dizer bonjour timidamente. É perguntar, receoso, se a pessoa ao lado perdeu alguém e ficar aliviado porque a resposta foi negativa, como se a ideia de segurança pessoal se construísse a partir da distância que temos relativamente ao que se passou. É não ver ninguém nas ruas a um domingo à noite, excepto aqueles que não têm onde dormir, e acelerar o passo quando nos dirigem a palavra. É suspeitar por cima do ombro e ver as cortinas fecharem-se, esquecendo que não é porque nos sentimos mais seguros que estamos menos sozinhos. É acharmo-nos protegidos mas não sabermos até quando. É sentirmo-nos estrangeiros na nossa própria casa, na que escolhemos. É garantir que saímos de casa, mesmo que seja só para ir ao supermercado, com o bilhete de identidade no bolso. É dizer aos amigos que se quer estar mais tempo com eles. É tentar fazer como se nada fosse, esperar pelo dia em que tudo isso vai acabar e esquecermos que o fim pode nunca chegar. É ouvir que os ataques se intensificaram e saber que isso não vai senão alimentar o ódio. E é impedir a adrenalina causada pela ideia de vingança, afinal tão natural. E, por isso, ouvir mães discutir no passeio que deveriam existir mais medidas para proteger os filhos a quem não sabem explicar o que se passou torna-se tão natural que é como se tivesse sido sempre assim. É estranhar que o largo passeio em frente ao Centre Pompidou esteja vazio, de turistas e malabaristas, mas percebermos o porquê e indignarmo-nos. E então, procurando sair do torpor, leio a coluna de Luc Le Vaillant “Abraçar-nos-emos como abomináveis pervertidos”, no Libération, no dia em que entramos em guerra, e percebo a razão para essa resistência a essa guerra, feita em casa, contra os que a invadem: “Para não esquecermos as existências desbaratadas pelas balas, amanhã voltaremos a ouvir a música rock no Bataclan e a comer os nam de camarão no Petit Cambodje e a cortar a cabeça aos teocratas, tal como cortámos a cabeça ao absolutismo real que fazia correr rios de sangue. ”5. Paris regressará. Paris é “a mudança em continuidade”, diz-me um amigo, sempre impressionado com a recusa de uma cidade-postal numa cidade, precisamente, tão antiga. Um outro amigo dizia-me, seco: “A única diferença entre hoje [terça-feira] e a quarta-feira passada é que há menos oito terroristas vivos. De resto, tudo é igual. ”E então volto a Patrick Modiano, que escreveu No Café da Juventude Perdida sobre a geração que viveu as ruas vazias de 1944 e cujo título encontra agora novos ecos nas ruas vazias da geração de 2015. Ele fala de uma ideia de tempo comum construído na cidade e a partir do que se perdeu em cada uma das vidas interrompidas: “Volto-me mas não há ninguém. Não somente à noite, mas no pino das tardes de Verão em que deixamos de saber quem somos ou em que ano estamos. Tudo recomeçará, como antes. Os mesmos dias, as mesmas noites, os mesmos lugares, os mesmos encontros. O eterno retorno. ”Para não esquecermos as existências desbaratadas pelas balas, amanhã voltaremos a ouvir a música rock no BataclanSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tudo recomeçará, afinal. Mas hoje as ruas estão vazias, deixando que o som das sirenes das ambulâncias ocupem todas as vidas. O fotógrafo Daniel Blaufuks estava em Paris no dia dos atentados. Pedimos-lhe um ensaio fotográfrico.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Um hotel é um teatro
O Palácio Estoril comemora os 85 anos de uma vida que já é histórica. E durante grande parte deles houve um homem que criou cada espaço, cada candeeiro, decidiu a cor de cada toalha e o lugar de cada cadeira: Lucien Donnat (...)

Um hotel é um teatro
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DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Palácio Estoril comemora os 85 anos de uma vida que já é histórica. E durante grande parte deles houve um homem que criou cada espaço, cada candeeiro, decidiu a cor de cada toalha e o lugar de cada cadeira: Lucien Donnat
TEXTO: Entravam reis, saíam príncipes, chegavam presidentes, desfilavam cabeças coroadas e estrelas de cinema, políticos e empresários, aristocratas e artistas. O Hotel Palácio Estoril, inaugurado em 1930, foi sempre uma passadeira. E por detrás deste desfile de famosos esteve durante várias décadas um homem de teatro, cenógrafo e com um notável sentido do espectáculo: o decorador Lucien Donnat (1920-2013). Os 85 anos que o hotel acaba de comemorar são um pretexto tão bom como qualquer outro para recordar aquele que ofereceu um palco a todos os que um dia atravessaram a porta do Palácio. Quem sabe todas essas histórias — mesmo as que não viveu pessoalmente — é Francisco Corrêa de Barros, o director, que nos recebe no hotel no fim-de-semana em que se está a preparar o segundo Baile da Riviera. Na sala do buffet estão já, incógnitos e descontraídos, vários príncipes que vieram para o baile no Casino, uma iniciativa do príncipe Charles-Philippe D’Orléans, de origem francesa, mas residente em Cascais. O ambiente que nos rodeia oferece o clima ideal para ouvir as histórias de Francisco Corrêa de Barros. Afinal, foi a Riviera, neste caso a francesa, que inspirou o fundador do Palácio, Fausto de Figueiredo. “Quando o Fausto de Figueiredo comprou este terreno, chamava-se Quinta do Viana e era uma mata de cedros e pinheiro-manso, que ia até à água”, conta. Vindo de Celorico da Beira para Lisboa, Fausto conhecia Biarritz e sonhou fazer algo semelhante no Estoril. Reuniu financiamento, conseguiu do Governo a concessão do jogo, e, mais importante do que isso, conseguiu a exploração e electrificação da Linha de Cascais. “Ele queria trazer os ingleses e a clientela de Biarritz de comboio até aqui”, conta o director. “O Sud Express vinha de Paris, passava por Lisboa, e terminava aqui. Foi uma obra notável. Antes disso, o Estoril não tinha nada. Ele fez os hotéis, o transporte, a animação. ” Surgiram as arcadas e a estação de comboios. A guerra veio interromper os projectos para o Palácio, mas em 1928 as obras foram retomadas e a 30 de Agosto de 1930 o hotel inaugurava, com a presença do Presidente Carmona, banquete, baile, fogo-de-artifício e até a estreia de um filme com Rudolfo Valentino. Nascia a Riviera do Estoril. Houve alguns anos de acalmia e no final da década a Europa voltou a agitar-se. E o Palácio esteve bem no centro de alguns episódios ligados à II Guerra Mundial. Procuraram refúgio no pequeno paraíso do Estoril milhares de judeus fugidos de toda a Europa e o hotel tornou-se palco de um verdadeiro filme de espiões — de tal forma que foi nele e no casino vizinho que mais tarde se inspirou Ian Fleming para criar o célebre agente 007. Nessa sua primeira vida, o palácio, projecto dos arquitectos Henri Martinet e Silva Júnior, mais tarde com intervenção de Raoul Jourde e interiores do francês Fitté, era bastante mais modesto e austero — “embora para a época fosse um estrondo”, sublinha Corrêa de Barros. O lado mais exuberante — e mais teatral — aconteceu quando Donnat entrou em cena, no início da década de 1950. O mundo tinha mudado muito, entretanto, e a época pedia uma visão mais eufórica da vida. Lucien era o homem certo. Foi já na “era Donnat” que aconteceu uma das mais — ou provavelmente a mais — extraordinárias festas que o hotel viu: o casamento de Maria Pia de Sabóia, a filha mais velha do rei Humberto de Itália, com o príncipe Alexandre da Jugoslávia, em 1955. Um texto publicado no Expresso, em 2005, com o título “O hotel dos murmúrios” recorda o fausto — um enxoval com 16 malas e baús, um bolo de noiva com 150 quilos e dois metros, 2500 convidados, aos quais 150 criados serviram 400 lagostas, 50 faisões e 15 mil bolos. Nascido em França em 1920, Lucien tinha o apelido de Goldstein, do pai, Joseph, um judeu asquenaze natural de Paris e por sua vez filho de Bernard Goldstein. Este, conta Eunice Tudela de Azevedo no texto “Lucien Donnat: uma vida brilhante” feito para o catálogo de uma exposição organizada pelo Teatro Nacional D. Maria II após a morte de Donnat, “trabalhava para Thomas Edison, fazendo demonstrações de invenções deste último por todo o mundo, tarefa que se revelou fatal quando foi electrocutado”. A mãe de Lucien, Germaine, era filha de um rico empresário francês que se dedicava à importação e exportação de algodão egípcio. No início da I Guerra, Joseph e Germaine foram para o Brasil, tendo regressado a Paris no final do conflito. Mas, devido a dificuldades financeiras, viram-se obrigados a deixar a França e, graças à facilidade com o português adquirida no Brasil, Joseph arranjou emprego em Lisboa. Depois de ter passado pela Agence Havas, a antecessora da France Presse, Joseph, com a mulher, comprou e passou a explorar o hotel York House (na altura uma pequena pensão), nas Janelas Verdes, onde Lucien fez os primeiros trabalhos como decorador. Apesar de ter muito talento para a música e de ter chegado a pôr a hipótese de ser pasteleiro, Lucien foi estudar Belas-Artes para Paris, instalando-se em casa dos avós maternos. Durante essa fase, e apesar da oposição dos avós, acabou por conseguir algum dinheiro tocando piano em bares como o Le Petit Cabaret, cuja proprietária lhe sugeriu que mudasse o nome para outro mais artístico — Donnat, como Robert Donnat, estrela de cinema da altura. Em 1939, nas vésperas da II Guerra, Lucien veio a Lisboa de férias e, por causa do conflito, viu-se impossibilitado de regressar a Paris. Começou a fazer trabalhos, sobretudo ligados ao espectáculo — aos 21 anos já colaborava com a Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro, que durante décadas foi a sua “casa”. E, em 1951, surgiu o convite para intervir no Estoril Palácio. Foi o início de uma colaboração que durou até quase ao final da vida do decorador, que fez também importantes intervenções nos hotéis Avenida Palace e Ritz, em Lisboa, onde é responsável por aquele que é hoje conhecido como Salão Almada Negreiros. “No Palácio Estoril, é ele que faz tudo, tudo”, frisa Francisco Corrêa de Barros, que ainda se recorda de uma visita ao atelier do artista, no Largo Trindade Coelho, “que era um sonho, uma desarrumação arrumada”. Foi nessa visita que o director do hotel viu umas pedras com um ar exótico e perguntou o que era. Donnat contou-lhe que quando, depois do 25 de Abril, começou a ter falta de trabalho em Portugal, e se viu obrigado a ir para o Brasil, chegou “sem ter onde cair morto”. Para começar a trabalhar, pegou em pedras e outros objectos e pôs-se a fazer colagens que depois vendia. Um dia, uma senhora, reconhecendo-lhe o talento, convidou-o para remodelar a casa dela. E assim Donnat lançou-se como decorador no Brasil. “A certa altura, ele estava a decorar a casa do Paulo Maluf, governador de São Paulo. ” Num desses trabalhos teve uma ideia genial: já que, por questões de segurança, a maioria das pessoas não entrava nos prédios pela porta, mas sim pela garagem, decidiu começar a decorar as garagens como se fossem o hall da casa. “Foi um estrondo em São Paulo, toda a gente o queria conhecer. ”No Palácio Estoril, Donnat criou um espaço cénico — e o hotel ainda tem na sua posse os desenhos originais que ele fez para os diferentes espaços e que foi alterando ao longo dos anos. Cada objecto que ainda hoje se pode ver no hotel, das cadeiras aos candeeiros, foi desenhado por Donnat, que controlava todos os pormenores e gostava de desenhar tudo à mão – “sou um homem do século XX, não sou do século XXI”, terá dito quando lhe sugeriram que fizesse os desenhos no computador. Corrêa de Barros recorda, sorrindo, que houve uma sala que não passou pelas mãos dele por causa do período de ausência no Brasil e, quando regressou, Donnat ia ver o hotel mas recusava-se a entrar nessa sala. Um dos espaços mais marcantes é a sala de correspondência e leitura ou Sala Tropical, que anteriormente era chamada, informalmente, Sala das Pretas, pelas cabeças de negras que encimam os reposteiros e as estátuas de negros que seguram candeeiros. O ambiente, sem abandonar o estilo Império usado no resto do hotel, torna-se aqui mais exótico. O papel de parede, explica Corrêa de Barros, é feito pelos alunos de Belas-Artes de Paris. “São rolos de papel de muito boa qualidade que eles vão pintando e onde cada um tem alguma liberdade de criação. ” Acontece que, numa cena que parece numa roça de São Tomé ou talvez na Guiana Francesa, as indígenas apareciam despidas da cintura para cima. O conselho de administração disse que não podia ser e, conta o director, para compor a coisa “lá vestiram as senhoras e pintaram mais uns macacos”. A decoração da sala tem permitido alguns momentos cómicos, como uma reunião de uma organização estrangeira cujos responsáveis, desconfortáveis com a decoração, pediram à administração do hotel que retirasse todos os motivos relacionados com negros. “O nosso estofador perguntava: até as cabeças dos cortinados? Não se pode simplesmente tapá-las? É que aquilo dá um trabalhão. ”Quem também usou a sala para reuniões foi, há uns dois meses, o príncipe Aga Khan, mas a decoração não o incomodou. Tal como não incomodou os reis, príncipes e princesas que aí se juntaram para o cocktail do Centenário Mundial de Vela, em 2007. Já a antiga secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright, que, numa das suas visitas oficiais a Portugal, ofereceu um jantar privado no hotel, preferiu a Sala Imperial à Tropical. Por seu lado, a equipa que a acompanhava, e que chegou uns dias antes para preparar tudo, pediu licença para transformar alguns dos quartos em escritórios e mudar-lhes os nomes: assim, e durante a estadia de Albright, as suítes com nomes que homenageiam figuras célebres que passaram pelo hotel, como o realizador Orson Welles, a rainha Vitória Eugénia de Espanha, o Presidente francês François Mitterrand ou a bailarina Margot Fonteyn, passaram a ter nomes mais prosaicos como Sally, Billy, Bob ou James. Cheia de personalidade é, também, a Sala de Jogos, com pormenores como as cartas de jogar em tamanho grande penduradas na zona das janelas junto a espelhos, num jogo de multiplicações que o decorador usa também noutros momentos no hotel: basta ver como as várias salas se sucedem, num encadeamento que cria a ilusão de que se prolongam até ao infinito e que as podemos atravessar numa linha recta que vai de uma ponta à outra do palácio. Corrêa de Barros recorda também um episódio ligado à decoração da Sala de Jogos. Donnat decidiu cobrir o chão com tapetes persas — não com um só tapete mas com vários que optou por cortar e coser uns aos outros. Os trabalhadores que estavam a fazer as alterações na sala receberam os tapetes e avisaram o decorador que eles tinham chegado. Quando ele lhes disse “óptimo, agora podem começar a cortá-los”, ficaram em estado de choque. Vamos cortar os tapetes, interrogavam-se?, incrédulos. Mas foi isso mesmo que aconteceu e o patchwork de tapetes persas continua a poder ser visto hoje no chão da Sala de Jogos. Para o grande Salão Atlântico, cenário de alguns dos acontecimentos mais grandiosos que se realizaram no hotel, Donnat imaginou uma decoração da parede com cortinas pintadas, num trompe l’oeil perfeito. Foi aí que aconteceu, por exemplo, uma cimeira da NATO em 1985. “Estava tudo cheio de segurança, primeiro um cordão da polícia, depois a tropa especial, tudo mais do que certificado para poder entrar aqui”, conta Corrêa de Barros. Quando os responsáveis do hotel foram ver como estavam os preparativos do Salão Atlântico, viram os funcionários da NATO ocupados a fazer um chão de madeira falso, debaixo do qual escondiam imensos fios e cabos. Perguntaram-lhes porquê aquilo e a explicação foi simples: se os líderes da NATO estivessem nesta sala e houvesse um submarino russo a 30 milhas da costa, este conseguiria captar tudo o que se dissesse, mas o chão falso escondia uma tecnologia, nova na altura, chamada “fibra óptica”, que fazia com que mesmo que alguém estivesse encostado a uma janela no exterior não conseguisse ouvir nada. Era, no fundo, outra forma de trompe l’oeil. Dessa vez, Donnat não foi chamado para nenhuma intervenção, mas noutra ocasião, quando se realizou no hotel um congresso da associação de turismo Asta, reunindo agentes de todo o mundo, o decorador teve carta branca para criar um cenário digno de filme. “Aqui no hotel tínhamos canalizadores, carpinteiros, estofadores, pedreiros, uma equipa inteira durante cinco meses a trabalhar para essa convenção”, relata o director. O tema era Terra e Mar e, para o cocktail, Donnat “criou uns buffets maravilhosos, um de terra outro de mar, deslumbrantes de cor, de arte, de iluminação, de tudo”. Mas o deslumbramento começava logo à entrada. Como o palácio pertencia à associação The Leading Hotels of the World, cujas cores oficiais eram o branco e o dourado, Donnat “colocou na pala da entrada do hotel cortinas brancas debruadas a dourado e no hall uma coluna com uma bola representando o mundo e, em redor dela, as letras dizendo The Leading Hotels of the World”. Havia “uma linha directa” para o decorador, que era consultado para tudo, dos tecidos à decisão de substituir um sofá ou simplesmente montar uma welcome desk para algum evento. Para a pintura do exterior do hotel, foi Lucien Donnat que decidiu o tom da tinta, assim como era ele quem explicava que as toalhas de mesa não deviam ser brancas porque reflectiam-se nos rostos das senhoras, o que não as beneficiava. Sabia bem o que fazia porque, como ele próprio disse numa entrevista que deu em 2002 a Maria João Avillez e publicada na revista do PÚBLICO, era um homem “demasiado dotado, senhor de uma polivalência fabulosa”. Admitia, contudo uma falha: “Nunca fui profundo em nada, tamanha era a facilidade que havia em mim para muita coisa: toco piano, canto, desenho, escrevo, faço poesia, cozinha, amo…”Tinha também opiniões vincadas sobre a questão do gosto. Nessa conversa com Maria João Avillez, mantida em três línguas, português, inglês e francês, explicava: “Não acredito no bon goût, se há bon goût, há também mauvais goût. São ambos válidos. Devo dizer-lhe que tenho alguma admiração pelo mau gosto e o que me surpreende sempre nas pessoas de mau gosto é a sua coerência. É uma constante. O que não acontece nas pessoas de bom gosto, que são capazes de fazer mau gosto. Conheci uma vez uma mulher absolutamente grandiosa em matéria de mau gosto. Era como o Arco do Triunfo do mau gosto. Uma celebração. Não falhava em nada, nem na roupa, nem na cor do cabelo, nem nas jóias, nem na casa, nem na cozinha, nem na mesa. Em nada. Era deslumbrante. ”Mas se, no Palácio Estoril, a questão não era tanto de gosto mas sim de segurança, Donnat era poupado. Foi o que aconteceu quando, em 1996, Lisboa recebeu a cimeira da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Inicialmente, o palácio, um pouco desviado do centro da cidade, não tinha previsto receber chefes de Estado ou de Governo. Até que chegou um telefonema da embaixada de Israel perguntando ser teriam uma suíte disponível com dois quartos ao lado. Depois perguntaram se os quartos de cima e de baixo também estavam livres para as mesmas datas. E os que ficavam à frente e atrás? No final, alugaram “uns 20 ou 30 quartos”, ainda sem revelar quem seria o hóspede especial. Dois ou três dias antes da chegada, funcionários da embaixada foram ao hotel para confirmar todos os detalhes. Ficou claro que o palácio ia alojar o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu. O que não representava qualquer problema dada a longa experiência em receber dirigentes políticos que o hotel já tinha. Mas os israelitas tinham alguns pedidos muito específicos: seria possível bloquear os elevadores de cada vez que o primeiro-ministro ou a mulher estivessem a entrar ou a sair? Isso seria difícil, por causa dos outros hóspedes, explicaram delicadamente os funcionários do hotel. Contudo, recorda Corrêa de Barros a rir, esse foi um obstáculo rapidamente ultrapassado. “Quando era necessário, eles punham dois seguranças a travar as portas dos dois elevadores, que não podiam subir nem descer. Têm solução para tudo. ”Apesar de toda a segurança, o dirigente israelita, ao contrário de dezenas de reis e príncipes, não frequentou as áreas comuns do hotel e tomou sempre as refeições no quarto. Aliás, a cozinha recebeu uma indicação muito precisa: sempre que fosse pedida uma sopa, isso significava duas sopas, e o mesmo para qualquer ouro pedido de comida. Tudo tinha de ser servido em duplicado para que um dos seguranças provasse primeiro. Havia ainda outro detalhe: os israelitas estavam preocupados com os franco-atiradores e explicaram que a situação que apresentava mais riscos era o momento em que o carro com o primeiro-ministro parava para este sair. Havia aí uma fracção de segundo que, caso houvesse um atirador experiente estrategicamente colocado, poderia ser fatal. Por isso, disseram, seria necessário criar uma espécie de cortina que pudesse ser corrida quando o carro parasse à entrada do hotel. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não era fácil, dado que a frente do hotel tem, calcula o director, uns 15 metros de comprimento por uns quatro de altura. Mas a equipa do Palácio pôs-se a pensar no assunto e encontrou a solução. “Temos um estofador extraordinário que idealizou uma calha na qual as cortinas correriam muito rapidamente. E propôs que comprássemos um tecido igual ao dos cortinados do último andar porque assim poderíamos rentabilizá-lo depois da utilização, evitando um desperdício. ”Compraram-se muitos metros de tecido, os necessários para tapar toda a frente do hotel, montou-se a calha e a cortina e tudo correu como previsto. Quando o carro descia a alta velocidade a rua paralela, havia um telefonema a avisar da chegada iminente e estava tudo pronto para correr as cortinas. Quando a cimeira acabou e Netanyahu partiu, o hotel enviou a conta para a embaixada de Israel, que mandou perguntar o que era a fracção relativa ao tecido. Perante a explicação de que se tratava do tecido para a cortina de protecção na frente do hotel, a embaixada não questionou mais e pagou a conta. Mas, uns dias depois, mandou buscar o tecido. E assim, literalmente, correu o pano sobre mais um acto do espectáculo do mundo que há 85 anos está em cena no Hotel Palácio Estoril, num cenário cuidadosamente desenhado por Lucien Donnat. Deste “teatro” muito especial, dizia o decorador, citado pelo Expresso: “É como um filho meu, tenho ternura por ele. Mantenho-o num estilo démodé sempre actualizado. É essa a sua graça. ”
REFERÊNCIAS:
O prazer de estar ali, naquele desafio da natureza
João Dória Nóbrega está a dois dias de fazer 81 anos. É obstetra. Na medicina privada fez quase 2 mil partos. Na Maternidade Alfredo da Costa, onde trabalhou cerca de 30 anos, são incontáveis. É uma das pessoas que podem contar na primeira pessoa a história do planeamento familiar em Portugal. (...)

O prazer de estar ali, naquele desafio da natureza
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: João Dória Nóbrega está a dois dias de fazer 81 anos. É obstetra. Na medicina privada fez quase 2 mil partos. Na Maternidade Alfredo da Costa, onde trabalhou cerca de 30 anos, são incontáveis. É uma das pessoas que podem contar na primeira pessoa a história do planeamento familiar em Portugal.
TEXTO: O Dória, o dr. Dória, é um médico que sabe esperar num tempo em que tudo é acelerado — até nascer. Decidiu, a partir de um episódio que a seguir se detalha, que ia ser obstetra. Estava em Angola, na guerra colonial. Reformou-se no ano passado. Entre um marco e outro, há a história da obstetrícia em Portugal que pode ser contada a partir do seu percurso. Houve um tempo em que ia pela província com um retroprojector a explicar o significado de planeamento familiar. Anos em que trabalhou numa comissão empenhada em fazer descer a taxa de mortalidade infantil. E milhares de partos. Um acontecimento único e surreal. “Pode magoar, pode estragar, pode partir. ” E depois é o prazer de estar ali, naquele desafio da natureza. João Dória Nóbrega não parece ter a idade que tem. Esteve doente, recuperou. O discurso tem a calma de um rio que nunca foi bravio mas que mantém a determinação. Tem umas mãos que não se consegue descrever. Numa tarde de Verão contou a sua história, depois mandou fotografias que a permitem ver de outra maneira. É sobretudo o que é que se faz com as mãos e o que é que não se deve fazer. Se nascer um bebé de rabo, não se deve mexer nele. Mas uma pessoa que não sabe está sempre a mexer nele com medo que caia no chãoO parto na água é uma coisa que serve para aliviar a dor da mãe. O bebé nascer dentro de água não tem relevância. Há descrições de casos em que o bebé sofreu com isso e outras em que nãoA minha mãe contava que nasci antes do tempo. Nascer com oito meses era um mau prognóstico. Nasci em África, inesperadamente, em casa. Sou o exemplo vivo do que acontecia naquele tempo. O planeamento familiar não existia. A minha mãe engravidou quando a minha irmã tinha três meses. Tenho diferença da minha irmã de um ano e cinco dias. Nasci no dia 1 de Setembro de 1934. Tinha 24 anos. O meu pai era mais velho, nasceu em 1898. Teve um primeiro casamento, um filho, a mulher morreu. Casou com a minha mãe em 1932, por procuração, porque já estava em Moçambique. Era militar de carreira. Esteve na Primeira Guerra. Falava. Das trincheiras, dos ratos, da água, da humidade, das condições péssimas. E das mortes. Falava muito da protecção da Nossa Senhora de Santa Teresinha. Tinha uma devoção. Fez carreira em Moçambique. Em 1942 viemos para a Madeira, de onde somos. Sim. O avô da minha mãe era o caseiro do Monte, o célebre senhor que era analfabeto mas que esculpiu em madeira as figuras [do presépio] e montou a lapinha do caseiro. Há um livro sobre isso. Do lado da mãe da minha mãe, era o “bacalhau para baixo”. O meu bisavô era comerciante e quando vinha a Lisboa abastecer-se, com os copos do almoço, dizia: “Mais bacalhau para baixo” [risos]. Ficou a família do “bacalhau para baixo”. O meu pai é França Dória, tinha origem no Arco da Calheta, uma freguesia mais para o Sul da Madeira. Vim fazer oito anos já na Madeira. Em Moçambique, vivíamos na Beira. Tenho uma imagem da casa onde vivíamos, uma casa colonial com uma varanda à roda, fechada com rede por causa dos mosquitos. Nasci em Vila Manique, na fronteira com a antiga Rodésia do Sul, agora Zimbabwe. Havia lá um hospital, mas não houve tempo de ir para o hospital. Mesmo em Lisboa, era o tempo em que o doutor ia a casa fazer o parto. Sim. Ia o médico, a sua enfermeira. Ia-se buscar a roupa esterilizada e o conjunto de instrumentos ao Instituto Pasteur na Rua Nova do Almada [em Lisboa]. Quando era preciso usar fórceps, a senhora era posta na mesa da cozinha. Uma superfície lisa e dura. Com os pés na borda das cadeiras, para ficar na posição correcta para fazer um parto com manobras. Nos anos 60 ainda era assim. Quando vim de África [depois do serviço militar], em 1965, e fui para a Caixa de Previdência, havia um serviço de parteiras ao domicílio. A taxa de partos no hospital era baixa. Lisboa esteve 40 anos sem aumentar uma única cama para nascer. Durante esses 40 anos, o hábito de ir nascer ao hospital aumentou. Nascer no hospital, antigamente, era para as classes baixas e passou a ser para as classes média e alta. No liceu queria ser agrónomo. Só na última metade do 7. º ano é que resolvi ir para Medicina. Na minha família, havia um médico conhecido, irmão da minha avó paterna. Era amigo do Francisco Gentil, fundador do IPO. Emigrou para Moçambique e nunca mais foi visto. Na Madeira, quando se pensa em médico, pensa-se em Coimbra. Lá vim eu para Coimbra. Parei em Lisboa algum tempo porque a minha avó estava cá. Vinha com o enxoval, os baús. Os lençóis, as almofadas, os cobertores. Não era como [o enxoval] de uma noiva, mas era o preparo para um rapaz sobreviver sozinho. A minha avó materna disse-me assim: “Amanhã vamos à Ericeira ver os tios e os primos que lá estão a passar férias. ” A minha tia apresentou-me a uma menina que estudava Medicina, e a minha vida deu uma cambalhota de 180 graus: “Vai para Coimbra fazer o quê se tem cá família?” E eu, como estava com uma impressão má dentro de mim, ir para Coimbra e ser submetido à praxe… Sou antipraxe o mais possível. Era isso. Peguei naquele argumento, escrevi uma carta aos meus pais: “Não vou para Coimbra, fico em Lisboa. ” Se tivesse ido para Coimbra, não estávamos aqui os dois, de certeza. Não teria seguido o trajecto que segui. A maior parte dos que vão para Coimbra regressam à base, à Madeira. É raro o que se “destribaliza”. Em Lisboa, são mais os que ficam do que os que regressam. Em 1961. Fui para Angola em 1962. Pensava nas coisas por que ele tinha passado, mas sabia que era uma guerra diferente. Não era uma guerra de trincheira, era uma guerra de guerrilha. Estive lá 27 meses. Mas distribuídos. Onze meses no Norte, um em Luanda, e o resto no Saliente do Cazombo. Aprendi muito. Chegámos no dia 9 de Dezembro. Em Março de 1963, tivemos a informação de que havia um quartel de guerrilheiros entre duas estradas, uma que ia para norte e uma que ia para oeste. Demos com esse quartel. Quando viram a tropa, aproximar-se, puseram-se em fuga, houve uns tiros. [Ficou escondida] uma mulher, casada com um guerrilheiro que tinha tuberculose. Ele morreu da doença, ela tinha um filho e ficou sozinha, a amamentá-lo. Aguentou o tempo que foi possível. Até que um dia foi para a estrada. Magra, esquálida, ela e o filho. Passou um jipe da nossa companhia que a trouxe para o quartel onde eu estava. Os soldados, os furriéis, o capitão, todos impressionados com aquilo, queriam dar de comer à mulher. Eu disse: “Alto! Esta mulher não se pode realimentar com comida feita à nossa maneira. ” Ia ser um distúrbio muito grande. A senhora e o bebé foram para a casa de uma das autoridades locais. A nossa contribuição era o leite em pó da tropa. Eu a ler os livros de alimentação dos bebés e pensar: “Como é que vai ser?” Ia lá e ela estava a dar-lhe colherinhas de leite. Entretanto, fui de férias para a metrópole e quando voltei encontrei uma mãe e um bebé. . . Está a ver a imagem dos pneus Michelin, cheios de curvas? As perninhas dele eram assim redondas [risos]. Tudo, tudo. Levei um baú cheio de livros, um de cada especialidade. Gostava de Dermatologia. Era mais um entusiasmo. Fiz uma tese de licenciatura em Cardiologia. Em África, quando fomos para o Leste de Angola, uma noite chamaram da missão protestante. Era fundada por um escocês, tinha uma enfermeira irlandesa, faziam homeopatia. Chego lá e vejo uma mulher em trabalho de parto, com uma grande barriga. Não sabíamos o que era e, quando nasceram, os bebés eram três. Com aquela descompressão brusca — eram bebés de 32, 33 semanas —, ela entrou em pré-choque. Pensei: “Estou tramado. ” Peguei no jipe, fui buscar um saco de plástico de soro, com plasma, para lhe meter qualquer coisa na veia e recuperar daquela baixa tensional. Quando a pessoa está em choque não tem veias, e então fiz um desbridamento no dorso do pé. Cortar a pele, ir à procura da veia, meter a agulha, à luz da vela. . . Quando o sol nasceu, a mulher já estava safa. Este facto marcou-me para vir para Obstetrícia. Antes de ir para África, aproveitei o tempo de espera e fui para a [Maternidade] Alfredo da Costa ver os partos. A aflição que se tem é como é que se faz um parto. Porque o parto é assim uma coisa surreal. É tudo diferente. Pode magoar, pode estragar, pode partir. Ainda não. Durante a licenciatura, vimos um parto ou dois, em Santa Maria. É sobretudo o que é que se faz com as mãos e o que é que não se deve fazer. Se nascer um bebé de rabo não se deve mexer nele. Mas uma pessoa que não sabe está sempre a mexer nele com medo que caia no chão. Até colegas médicos, que não são da especialidade, quando vêem um parto, ficam nervosos. Cada parto é um acontecimento único para toda a gente. A interacção da mulher, do médico, do marido, é muito importante. Valorizo muito. Havia sítios que estavam permanentemente a ser massacrados. E havia sítios onde nem sempre estávamos a ser massacrados. Uma vez foram buscar um pelotão que não era da minha companhia. Morreu um por uma questão estúpida. O soldado metia as granadas com as cavilhas no cinto, quando se senta, a cavilha abre. Aquilo rebentou e esventrou-o. Tínhamos os aerogramas. Sim. Conheci a minha mulher quando estava no 2. º ano e comecei a namorá-la. Estava a estudar a cadeira de Bacteriologia. Namorámos até ao último ano. Ela ajudou-me bastante a não sair do carreiro. E não só. Para ela, primeiro estavam as obrigações, depois é que vinham as diversões. Casámos em 1960 e, naquele anseio de ter um filho, o que não acontecia, fui para África sem ela estar grávida. Com medo de morrer na guerra e não deixar cá descendência. Quando vamos, pensamos que podemos levar um tiro. A primeira vez que vim de férias, ficou [grávida]. O meu filho nasceu em 1964. Talvez. Se não conseguisse tê-los, não havia solução para isso. Naquela altura, era: “Se Deus quiser. ” Agora há um motivo, uma situação estudada e, na maior parte dos casos, solução. Depois, quando o filho estava com três anos, frente a uma montra de brinquedos na Rua do Ouro, começou: “Quero isto, quero aquilo!” Virei-me para a minha mulher: “Ele está mas é a precisar de ter irmãos para partilhar. ” E vieram as gémeas. Dentro do tempo regulamentar, saudável, entre o primeiro e as gémeas. Está demonstrado cientificamente que a mulher tem de recuperar para entrar numa nova gravidez, tendo em conta que o que está em causa é a saúde dos bebés que hão-de vir e a saúde da mãe. O intervalo da gravidez, hoje, é mais importante que o número. Quando uma mulher diz que quer ter dez filhos, pode ter, mas tem de manter um intervalo entre eles. O tempo de recuperação de uma mulher que teve um bebé e deu de mamar é, no mínimo, oito meses. Em Obstetrícia, na Maternidade Alfredo da Costa. Passado um tempo, em 1969, houve uma greve de zelo dos médicos. Queríamos que fossem instituídas carreiras médicas, que tudo fosse organizado de uma maneira diferente. Ganhávamos 900 escudos. Uma renda de casa (chamada limitada) era de 1110 escudos. Na maternidade, o director conseguiu 1000 escudos de subsídio, não sei de que maneira. Levávamos para casa 1900. Eram 1100 para a renda, ficavam 800 para o resto. Mas queríamos pertencer a uma unidade hospitalar com nome e poder escrever no papel de receita “interno da Maternidade Alfredo da Costa”. Era. Ser interno dos hospitais civis, ou interno da Maternidade Alfredo da Costa, era uma garantia de que se era bom. Vivíamos à esquerda. No café estávamos sempre a olhar, a ver quem é que estava a ouvir o que dizíamos. Era o tempo dos delatores, da PIDE. Nunca fui preso nem nunca tive grandes intervenções. Não. Era só simpatizante da esquerda, que naquela altura era o PCP. Depois veio o PS. Não, um bocadinho antes já havia. O professor Arnaldo Sampaio, pai do Jorge Sampaio, foi a pessoa que marcou, quando era director-geral de Saúde, os centros de saúde, que [passaram a ser] só para mães e bebés. Havia os postos clínicos da Caixa de Previdência que tinham a especialidade de Obstetrícia, onde as grávidas acorriam. Em relação ao Planeamento Familiar, vivia-se a época em que era proibido receitar a pílula para evitar gravidezes. Sim. Métodos hormonais para evitar gravidez, não. A pílula entrou em Portugal em 1962. A pílula era usada para regularizar ciclos menstruais. O dr. Albino Aroso, antes de fazer o célebre decreto de 16 de Março de 1976, na consulta pública no hospital, para mulheres que queriam tomar a pílula, ou que ele achava que deviam tomar a pílula, escrevia na ficha: “Irregularidades menstruais. ”Ele era subsecretário de Estado da Saúde. Dizia que em todos os sítios onde se prestassem cuidados de saúde, sempre que possível, devia fazer-se uma consulta de planeamento familiar. Antes do 25 de Abril, havia a Associação para o Planeamento da Família, fundado pelo dr. Neves e Castro e outras pessoas ligadas à Igreja, progressistas, que tentavam melhorar as condições do controlo da natalidade, dos métodos contraceptivos modernos e antigos. A expressão “planeamento familiar” era subversiva. E quando na Alfredo da Costa dizia ao meu director, o dr. Jorge Morais: “Devíamos fazer uma consulta de planeamento familiar”, em voz alta, no corredor, ele via se estava alguém a ouvir e dizia-me: “Fala mais baixo, rapazinho. ” A palavra “planeamento” lembrava o planeamento dos vermelhos, atrás da cortina de ferro. Era um pouco esse conjunto. Depois desse decreto [de Albino Aroso], é que tudo se arranjou. A dra. Purificação Araújo convidou-me para ir para a Direcção-Geral de Saúde com ela, Divisão de Saúde Materna e Planeamento Familiar. O nosso trabalho foi formação. Fizemos formação em planeamento familiar de médicos e enfermeiros. Era uma matéria que nem na faculdade nem nas escolas de enfermagem se dava. Começámos a dizer que o planeamento familiar é uma coisa que tem a ver com a saúde da mulher, com o intervalo entre os filhos. O planeamento era para não ter e para ter [filhos]. Ter quando a mulher está disposta e com saúde para isso. E não ter quando não quer ou não está preparada (com saúde) para isso. A seguir ao 25 de Abril já não houve resistências. O problema é que a Igreja fazia o seu papel e defendia os seus métodos. Pois não. Agora, depende de cada um, cada pessoa está livre de escolher. Na doença, o técnico está cá em cima e a pessoa está lá em baixo. O doente olha para cima para ver a salvação. Quando falamos de planeamento familiar, estamos ao mesmo nível. O técnico nunca tem de dizer à pessoa se a pílula faz dores de cabeça. Tem de dizer que existem os métodos tal e tal, que os efeitos são estes, as contra-indicações são estas. Tem de ser impessoal, neutro. Não é altura de o técnico incutir no outro uma opinião. Foi esse tipo de ensinamento que começámos a propagandear. Aos fins-de-semana, saíamos de Lisboa com um retroprojector e uma extensão de corrente. Tudo isto começou em 1977. No Sul, no Norte e no Centro. Também fui à Madeira. Sim, sim. Ensinámos a muita gente, que depois não aplicou [estes pressupostos]. A noção que tinham era: “Meter-me na vida das pessoas não é o meu papel. ”Foi o nosso trabalho nos anos 80, mudar a mentalidade das outras especialidades médicas. Fui um privilegiado. Estava no centro do problema. Estávamos todos. O esforço que fazíamos todos os dias para que melhorasse alguma coisa e não melhorava. . . Era um problema de organização. Em 1980, tive uma bolsa da Organização Mundial de Saúde para ir ver o que é que os suecos tinham feito. A questão era tão simples que quando vim fiz um esquema gráfico, que preguei durante sete anos. Nós tínhamos duas direcções-gerais, a dos Hospitais e a da Saúde. A primeira tinha os hospitais distritais e centrais. A Direcção-Geral de Saúde tinha os postos de saúde. A população vivia entre dois muros, a dar cabeçadas na parede. Havia duas direcções-gerais, cada uma a puxar para o seu lado, a proibir os seus técnicos de ir ao outro lado. A Direcção-Geral de Saúde já andava a tentar mudar as coisas, fazia uns grupos para estudar os cuidados primários. Mas tinha de ser uma mudança de fundo. Doze anos depois do 25 de Abril, quando para o Ministério da Saúde foi uma mulher, Leonor Beleza. As mulheres portuguesas têm muito a agradecer a duas mulheres. A Leonor Beleza, que viu a coisa no geral. E a Maria José Nogueira Pinto, que foi directora da maternidade durante algum tempo e fez uma reviravolta naquilo. Foi nomeada uma comissão para fazer um levantamento e análise dos problemas da saúde materna e infantil. O documento foi apresentado na Assembleia. Os deputados ficaram horrorizados e votaram 300 mil contos para fazer obras, [resolver] insuficiências que foram detectadas nesse levantamento. Fizeram-se as obras. Mas um pediatra do Porto, o dr. Octávio Cunha, deputado do PRD, escreveu uma carta a Leonor Beleza a dizer: “Não basta umas obras para resolver o problema, é preciso fazer um plano completo. ” Propunha que fosse nomeada uma comissão com dois vogais do Norte, dois do Centro e dois do Sul. Esta comissão prometeu que, se o que fosse decidido não fosse cumprido, a comissão autodestruía-se. Entretanto, o dr. Albino Aroso foi para ministro da Saúde. Sim. E demonstrámos que era uma incongruência haver duas direcções-gerais, que a pirâmide devia ser uma coisa só encabeçada pela Direcção-Geral da Saúde. Cá em baixo estavam os centros de saúde, os hospitais concelhios, os hospitais distritais e os hospitais centrais. Com isto definimos 45 lugares onde se nascia de maneira segura. O parto seguro tem a ver com as condições em que acontece o parto. Se está em funcionamento a anestesia, se está em funcionamento o serviço de sangue, tudo o que de um momento para o outro pode ser necessário. Foi ao longo da década de 70 e de 80 que isso foi subindo, subindo. Ainda me lembro de estar na maternidade e de as parteiras trazerem doentes que estavam a assistir em casa delas para lá. Os outros fecharam e as pessoas não reclamaram. Toda a acção que uma pessoa faça nesta matéria, 40 semanas depois tem o resultado. A existência de consultas disponíveis de saúde materna, toda a legislação apoiando a mulher, tudo isto contribuiu para uma adesão perfeita. As pessoas perceberam que o seu bebé ia ser bem vigiado. Nos anos 60, tínhamos 40 bebés que morriam em cada 1000 que nasciam. Com o 25 de Abril, o facto de terem ido médicos recém-formados para a periferia alterou muita coisa. Eles detectavam as gravidezes com mais risco e mandavam-nas para os centros. O nosso objectivo, como país da Europa, que se dizia que era, era ter um dígito em mortalidade. Esse objectivo foi cumprido de 1992 para 1993. E de 1993 para 1994 foi a perinatal, a que engloba os bebés que nascem mortos, [que baixou]. Temos de pensar no caso individual e no caso geral. Um facto que não seja evitável temos de o aceitar. Quando alguma coisa acontece e aquela morte podia ter sido evitada, ficamos muito amargurados. Em 1987, era responsável pela urgência na maternidade. Em Maio, dei-me conta de que havia um determinado número de mortos intrapartos. (O bebé entrou vivo, mas morreu durante o trabalho de parto. Há bebés que têm fragilidades e o trabalho de parto pode desencadear a sua morte. ) Peguei nesses casos que tinha seleccionado e levei-os a uma reunião. Nessa altura tínhamos 12 mil partos por ano. Os aparelhos andavam a estremecer de um lado para o outro. Depois dessa reunião, na segunda metade daquele ano, só morreram metade, em relação à primeira [metade]. E sem melhorar as condições. Só a atenção das pessoas. O volume é tão grande que a atenção também se dispersa. Na Alfredo da Costa, sempre quisemos estar na vanguarda das mudanças. E conseguimos. Em relação à dor, no princípio dos anos 90, anestesistas novos foram à Bélgica aprender a usar a epidural. Quando saí da maternidade, em 1996, 30% dos partos eram feitos com epidural. A mãe é que tem de dizer se quer. Quando as grávidas me perguntavam: “Acha que devo fazer epidural?”, eu dizia: “Eu cá não acho nada. A senhora só tem de saber que existe a epidural. E quando chegar a altura, se dá um grito e diz que não aguenta mais, nós damos-lha. ” A epidural não é uma coisa que se imponha, é uma coisa que se pede. Antigamente, dávamos injecções intramusculares, morfina. São modas que aparecem sempre. E há pessoas que querem seguir a moda sem senso nenhum. Querem imitar os outros. As minhas doentes no consultório estão informadas, esclarecidas. Algumas vêm com ideias feitas e perdem-nas porque demonstro que não vale a pena ter aquelas ideias feitas. Umas querem partos maravilhosos e têm-nos, outras querem partos maravilhosos e não os têm porque a natureza delas não vai lá. O parto na água é uma coisa que serve para aliviar a dor da mãe. O bebé nascer dentro de água não tem relevância. Há descrições de casos em que o bebé sofreu com isso e outras em que não. Não sei quais são os fundamentos científicos em que se baseiam para dizer que não vale a pena vacinar. Há sempre riscos, mas o que está em causa é o resultado final. Estive muito tempo ligado ao aborto espontâneo. Estive muito tempo ligado ao insucesso da gravidez de mulheres que queriam ter um filho. Engravidavam mas abortavam, repetidamente. Felizmente que desde 1989 temos na maternidade uma consulta para resolver estes casos. As primeiras mulheres que chegaram a essa consulta tinham nas suas gravidezes 95% de insucessos. E com o nosso estudo, com o nosso tratamento, invertemos a tendência e passaram a ter 85% de sucesso. A definição de aborto espontâneo vai até às 22 semanas de gravidez, aos 500 gramas de peso, aos 25 centímetros de comprimento. Em relação à mulher que não quer a gravidez por qualquer razão, por um motivo que é dela, é preciso reconhecer que ela tem esse direito. [O reconhecimento desse direito] aconteceu com a lei votada. Sim. Sempre defendi que a mulher tem o direito de fazer a escolha. Não vamos incutir nela os nossos princípios morais. E o Estado tem de dar essa hipótese. Ser obrigada a ir para um círculo clandestino… Assim como falamos em parto seguro, também falamos em aborto seguro. Para além disso, é um problema de consciência de cada um, da grávida e do técnico. O aborto seguro traz complicações inferiores à amigdalectomia. Sim. Isso não tem interesse. Nem vai induzir mudança de atitude. Toda a gente sabe que ela vai ver o coração bater. Não é por ver que vai alterar o desejo [de abortar]. Tem uma razão de ser nas mulheres que repetem o aborto e que o fazem como se fosse um método contraceptivo. Havendo essas mulheres, elas têm de ser ensinadas ou chamadas à razão de outra maneira. Mas isto não é uma coisa que se faça de ânimo leve. Era uma senhora a quem fiz a terceira cesariana. Ah, mas o anterior foi um parto muito bonito, como sempre nessa senhora. Aquele parto em que quase não mexemos em nada. E em que o trabalho de parto foi bom, rápido. Acontece naturalmente. Só ajudamos o bebé a nascer. Ao fim de 1890, resolvi parar. Na privada. Não. Ultimamente, só fazia cesarianas. Tinha prometido à família que com 80 anos ia parar. E porque já não ia para o parto com aquele prazer com que ia antes. Era, era. O prazer de estar ali, naquele desafio da natureza. Sempre lutei para que a mulher percebesse o que é que estava a acontecer dentro dela. E muito especialmente durante a gravidez. Preparo as minhas grávidas para o parto de uma maneira natural. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É. E não pôr as coisas à frente. Nunca tive pressa. Se está tudo dentro do normal, para que é que vou acelerar aquilo?Das filhas, vi. Foi um parto complicado, que hoje não se teria feito. A primeira bebé estava de rabo e a segunda estava transversa. De caras. Mas em 67 não era assim. O dr. Amâncio Rocha fez uma manobra que já ninguém sabe fazer: versão interna seguida de grande extracção pélvica. Meteu a mão, agarrou-lhe os pés, fez assim à cabeça… A primeira, 2, 950 quilos, a segunda, 3, 450. Eram seis quilos e tal de fetos [risos].
REFERÊNCIAS:
Partidos PS LIVRE PCP PRD
Portugal, um país de tectos baixos
Portugal é um dos países europeus com mais baixos índices de confiança pessoal. A Revista 2 faz o retrato da desconfiança portuguesa e lança o debate sobre como dar o salto qualitativo para o desenvolvimento e a solidez democrática ouvindo personalidades que são referências em Portugal. (...)

Portugal, um país de tectos baixos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portugal é um dos países europeus com mais baixos índices de confiança pessoal. A Revista 2 faz o retrato da desconfiança portuguesa e lança o debate sobre como dar o salto qualitativo para o desenvolvimento e a solidez democrática ouvindo personalidades que são referências em Portugal.
TEXTO: Confiança. A palavra é lema de campanha eleitoral de dois candidatos. António Costa, líder do PS e candidato a primeiro-ministro, usou-a como fundo de palco no encerramento do congresso da sua consagração em Novembro e repetiu-a já em outdoors. Sampaio da Nóvoa, candidato a Presidente, assumiu-a como um dos valores a incutir aos portugueses. Fazem-no num momento em que o país se prepara para um novo ciclo. Em Outubro, realizam-se as eleições legislativas e, em Janeiro, as presidenciais. Isto quando, em Maio de 2014, Portugal deixou de estar intervencionado pela troika de credores — Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional — e o reajustamento orçamental, nomeadamente da despesa pública, cumpriu as regras da União Europeia. Quando o país parece pronto a arrancar para uma nova etapa de desenvolvimento, a questão é saber até que ponto será limitado pelos baixos níveis de confiança existentes na sociedade portuguesa. O primeiro Presidente da República eleito após o 25 de Abril, general Ramalho Eanes, considera que “um país tem confiança quando tem unidade popular”, quando existe “a convicção de homens e mulheres de que trabalhando em conjunto vivem melhor e vão deixar aos filhos e aos netos um futuro melhor”. Este sentimento é “muito difícil de criar, mas é muito fácil de quebrar”. Ramalho Eanes sublinha que, quando as pessoas sentem que não têm “um mínimo necessário para viver e para fazer viver com dignidade os filhos e os pais, quando as pessoas olham para o futuro e acham que o futuro não promete nada a não ser novas ameaças, essa unidade quebra-se”. É esse o ponto de ruptura em que “um povo deixa de ser uma colectividade animada por um propósito unitário” e passa a ser “um aglomerado de pessoas que olham para si e para os seus interesses e que procurarão defendê-los de qualquer maneira, porque isso tem a ver com a sobrevivência própria”. O ex-Presidente da República Jorge Sampaio tem uma perspectiva positiva. Afirma-se “uma pessoa com esperança e experiência suficiente de vida política para saber que a democracia traz sempre soluções”. E garante que a falta de confiança em Portugal não é um dado recente: “Outro dia estive a ver os meus discursos. O que é impressionante é a permanência dos problemas, os assuntos que foram mencionados, já nem me lembrava de alguns, mas estão lá todos, a economia, o social. ”Os estudos da União Europeia já durante este século (European Values Study — ESS) mostram que os níveis de confiança interpessoal em Portugal são baixíssimos. Assim, em 2013, o indicador “confiança nas pessoas” cifra-se em Portugal em 3, 6, numa escala de 1 a 10, na Dinamarca em 7. Já quanto à “percepção de honestidade”, Portugal fica em 4, 8, a Dinamarca em 7, 3. Na “percepção da prestatividade das pessoas” Portugal tem 3, 8, a Dinamarca 6, 2. Jorge Vala, psicólogo social, professor catedrático jubilado do ISCTE e investigador-coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS), é responsável pelos estudos da ESS em Portugal desde 2002. Em resposta à Revista 2 por email, salienta a permanência dos baixos índices de confiança em Portugal e lembra que já quando colaborou no segundo Estudo Europeu sobre Valores, publicado em 1990, a equipa internacional questionou “se não haveria algum erro”, uma vez que já então “Portugal apresentava valores relativos tão baixos”. O padrão tem-se mantido “sempre mais baixo do que o da maioria dos países da Comunidade Europeia, ficando Portugal próximo da Polónia e da Eslovénia”. O conceito de confiança interpessoal também tem “consequências para a política, porque quando há baixos índices de confiança pessoal as pessoas não se juntam para fazer valer os seus interesses”, explica Pedro Magalhães, cientista político investigador do ICS e responsável pela base de dadosdo Portal da Opinião Pública e director científico da Fundação Francisco Manuel dos Santos. O mesmo é válido para a economia. “Se as pessoas não confiam nos outros, não vão buscar um sócio para abrir uma empresa”, prossegue. “A outra implicação é que, numa sociedade em que as pessoas não confiam umas nas outras, complexificam as regras, a legislação e o papel dos tribunais, é preciso alguém que venha e resolva os conflitos. Ninguém entra em interacção com os outros, se não tiver esta garantia”, refere. E conclui que “esta é uma explicação de por que é que o sistema jurídico nos países da Europa do Sul é muito mais complexo, muito mais regulamentado do que em países com alta confiança interpessoal”. A confiança está na base do funcionamento das sociedades modernas. É o novo cimento que se substituiu aos laços tradicionais que se foram liquefazendo (de acordo com o conceito de “sociedade líquida” de Zygmunt Bauman), à medida que as pessoas ganharam individualização, como definiram Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim (Individualization 2002). E tem sido estudada quer como “capital social”, conceito criado por Robert Putnam em Making Democracy Work (1993). Ou como “confiança social”, conceito desenvolvido por Francis Fukuyama em Trust (1995). Jorge Vala sublinha que, em Portugal, seria ainda preciso estudos profundos para “explicar por que razão, de forma tão consistente, [Portugal] se encontra entre os países com menores índices de confiança interpessoal”. Adianta que os países com índices como os portugueses “apresentam valores de socialização em que a obediência é gratificada acima dos valores da tolerância e em que a ausência de controlo sobre a vida — uma dimensão psicológica fundamental — é baixa”. 3, 6 o indicador “confiança nas pessoas” em Portugal num estudo de 2013. Numa escala de 1 a 10, o mesmo indicador cifra-se na Dinamarca em 7. Quanto à “percepção de honestidade”, Portugal fica em 4, 8, a Dinamarca em 7, 3Alguns dos raros trabalhos nesta área têm sido feitos, desde os finais do século XX, pelo sociólogo e investigador-coordenador do ICS Manuel Villaverde Cabral. “Quando José Gil diz ‘os portugueses têm medo de viver’, di-lo por que os portugueses não arriscam muito, mas não são todos. ” Nas suas investigações realizadas há 15 anos com base no “índice de distância ao poder”, criado pelo psicólogo holandês Geert Hofstede (Culture’s Consequences, 1984), conclui que “dois terços dos portugueses dizem que temos medo de exprimir as nossas opiniões em voz alta acerca do Governo”. Pelos perfis de confiança social identificados a nível mundial pela sociologia e pela psicologia social, Jorge Vala refere que “quanto maior o envolvimento em actividades cívicas e o sentimento de que, em caso de necessidade, há apoio social, maior a confiança interpessoal”. Esta é mais baixa onde “o crescimento do PIB é menor e, mais importante, as desigualdades sociais são maiores”. E aduz: “Sabemos ainda que um Estado social eficaz e um mercado de trabalho regulado (e que respeita o significado do trabalho), embora, aparentemente, de forma menos consistente neste último caso, estão associados a elevados níveis de confiança interpessoal. ”Por um lado, temos o facto, que o empresário classifica como “paradigmático”, de que “não se paga a horas, mas não há nenhuma penalização, nem jurídica, nem social, ninguém é ostracizado por isso”. Por outro lado, “não há uma valorização das obrigações sociais que resultam de compromissos assumidos com os trabalhadores”. Terceiro exemplo: “Recebo uma licença para um conjunto de trabalhos de construção, parto do princípio que posso não respeitar e ninguém me critica por isso. ” E conclui que “normalmente, em Portugal, [actua-se] numa perspectiva de chico-espertismo, de desenrascanço, que se acentuou”. O empresário e ex-presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) Francisco van Zeller considera que o crescimento “depende muito da acção pessoal”, razão pela qual “quase todas as grandes iniciativas têm uma cara, é raríssimo pertencerem a equipas”, mesmo que tenham “na retaguarda equipas a trabalhar”. Francisco van Zeller afirma que há desenvolvimento económico “extraordinariamente novo” e pessoas “a iniciar os seus próprios negócios, correndo riscos próprios” , tanto que “80% dos pedidos de apoio dos dinheiros da União Europeia são de novos empreendimentos”. O ex-presidente da CIP considera, porém, que “a teoria da destruição criativa neste caso não funcionou”, porque os empresários que sobreviveram “ficaram com medo de serem atingidos e, portanto, encolheram-se, perderam a confiança”. Defendendo que “o crédito existe sempre quando os projectos são bons”, Francisco van Zeller diz ter havido “uma enorme inacção dos investidores” nos últimos anos. Mas também faltou investimento estrangeiro. “A imagem de um país em reestruturação não é convidativa e, de facto, a confiança não lhes foi dada. ” Exemplifica: “Se as leis laborais e as fiscais mudam todos os anos, desconfiamos se podemos fazer um projecto. ” E garante: “Os negócios adaptam-se às condições, agora estas têm de ser estáveis. E lá volta a palavra ‘confiança’. Uma pessoa que se vai meter em aventuras, em crescimento, em investimento, é básico que tenha confiança. ”Só que, frisa Pedro Magalhães, não há uma via única para determinar as origens da confiança. “Para pessoas como Putnam, a origem deste capital social tem que ver com as instituições políticas no passado serem mais ou menos centralizadas, hierarquizadas, autoritárias; quanto mais, maiores os padrões de desconfiança. ” Mas há quem advogue que “essas instituições é que são a origem da cultura”. Deste modo, “para uns a política vem primeiro, para outros a política é consequência”. Villaverde Cabral tem mais certezas: “Não é a ditadura que explica. Ao contrário, a ditadura é explicada, um país optará pela ditadura, tolerará uma ditadura tanto mais quanto a confiança nos outros é baixa. ” O sociólogo adverte que no caso português “havia um indicador não desprezível: o distanciamento ao poder é inversamente proporcional ao nível de educação”. Isso leva-o a afirmar que “este é o grande drama da democracia — o catching up educativo ter totalmente falhado”. E diz: “Nós continuamos a ser o país europeu em que o valor intrínseco dos diplomas é mais fraco e não se traduz muitas vezes nas atitudes antropológicas, culturais e concretamente nas atitudes políticas. ” Pedro Magalhães concorda: “Sabe-se que as pessoas com mais instrução têm mais confiança entre si. ”Teodora Cardoso, presidente do Conselho das Finanças Públicas, considera que há “dois casos que são semelhantes a Portugal no domínio da confiança: França e Itália, países que nos índices de confiança ficam mais ou menos ao mesmo nível”. E explica: “São sociedades muito hierárquicas, onde se confere ao Estado o poder e a obrigação de resolver tudo. As organizações mais horizontais, onde nós todos nos sintamos mais responsáveis pela resolução de problemas, têm pouco peso. ”O resultado é que “no caso dos franceses, e que Portugal copia, as leis laborais são tão detalhadas que não funcionam”. Pelo contrário, “nas sociedades nórdicas não há praticamente leis laborais; no entanto, as relações laborais funcionam bem na Suécia, na Dinamarca, na Finlândia e na Holanda”. Teodora Cardoso conclui: “Um sistema que realmente exige que a lei [preveja e] que o Estado resolva tudo é um sinal de falta de confiança, mas não é no Estado, é uns nos outros. E [falta de] confiança até em nós próprios. ”A escritora atribui à história esta situação. “Um país que luta com a sobrevivência, pobre, com muitas décadas seguidas de autoritarismo e de ditaduras. ” E afirma: “O grande espanto, hoje, é que pensávamos que a democracia tinha sido mais funda do que foi. A democracia laborou pelo exterior e não atingiu a parte profunda. ”Ou seja, o país continua com “medo de ir para a rua”, sem capacidade para erguer “organizações cívicas credíveis e com continuidade”. Os portugueses têm “medo, pânico de expor opinião”, sublinha. “Isso torna-nos afásicos, sem voz. ” Portugal é um “país acobardado”, que está “à mercê, mudo como um peixe, um grande peixe mudo colocado aqui no extremo ocidental da Europa”. Jorge Sampaio salienta que Portugal tem “características [históricas] muito positivas que têm sido ressaltadas: mais de 800 anos, língua idêntica, sem nacionalismos, fronteiras absolutamente inamovíveis há séculos”. “[Porém, ] como disse [Guilherme d’] Oliveira Martins, se olharmos bem para o nosso desenvolvimento, verificamos que a sustentabilidade económica só se verificou em cinco períodos: Descobrimentos, ouro do Brasil, emigrações, volfrâmio, fundos comunitários. Tudo isto foi exterior”, observa o ex-Presidente. A existência de momentos de sucesso é também recordada por Francisco van Zeller. “Há épocas perfeitamente identificadas — a época da Índia, depois o Brasil, mais tarde um bocadinho de África —, mas em todas elas acabámos com mau gosto na boca, qualquer coisa corria mal”, afirma o empresário. “Nas palavras actuais, diz-se que não era sustentável. ”Francisco van Zeller vê uma limitação que moldou a história de Portugal. “Houve imperadores romanos, Diocleciano e Adriano, que eram da zona que vem a ser Espanha. Por que é que os romanos se estabeleceram em Espanha e não cá? Pela mesma razão que os árabes e os visigodos. Estou convencido que o nosso tecto é tão baixo, tanto culturalmente como em ambição e capacidade de crescer, porque em milhares de anos nunca tivemos cá uma grande civilização que puxasse por nós. ”O ex-presidente da CIP remata a caracterização dos condicionalismos de Portugal: “Oitenta por cento da população vive entre Setúbal e Braga, numa faixa de 80 quilómetros [do mar para o interior]. Se quisermos falar de Portugal desde que a palavra existe, há 900 anos, 80% da população anda a casar-se entre si numa faixa de 80 quilómetros. ” E conclui: “Somos um país com uma forte consanguinidade que se reflecte na união. Somos um país uno na língua, na religião, na fala, porque somos unos, vivemos e casamo-nos uns com os outros há milhares de anos. ”As limitações da história são salientadas também por Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia e director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Nos anos 80 do século passado, dirigiu investigações que concluíram que “a sociedade portuguesa é semiperiférica no contexto internacional e periférica no contexto europeu”. Era expectável que a partir de 1986, com a entrada na CEE, Portugal abandonasse “o seu estatuto de semiperiférico e se juntasse ao clube dos desenvolvidos, o que não aconteceu”. Intitulado Portugal um retrato singular (1993), este estudo afirmava que, além de um Estado-providência em construção, Portugal também “tinha uma sociedade-providência forte” — ou seja, um “capital de confiança nas relações sociais no seio das famílias, das vizinhanças e das comunidades”. Esta “sociedade-providência era a grande válvula contra os conflitos sociais” devido à “incidência dos semiproletários”. Em seu entender, “30 anos depois, o Estado-providência não se fortaleceu como era a expectativa” e “a partir da década de 2000 já começou a patinar”. Em seguida, com a crise, diz Boaventura, “o Estado-providência vai abaixo, mas a sociedade-providência já não está lá”. De acordo com o estudo do Instituto Português de Administração e Marketing (IPAM), divulgado em Maio, mais de metade dos portugueses que se dizem religiosos vão pelo menos uma vez por semana à igreja ou a lugares de culto. O mesmo estudo diz que quase 90% dos portugueses são crentes e maioritariamente católicos. A chave para esta religiosidade é dada pelo cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, ao afirmar que há “três mil e tal paróquias de norte a sul do continente e ilhas” que “estão abertas grande parte do dia, não fazem qualquer selecção, qualquer pessoa pode entrar, crente ou não crente, desde que respeite o lugar”, podendo ter aí “um momento de reflexão e de pausa”. Além disso, as pessoas encontram nas igrejas “diversos tipos de serviços, desde ajudas imediatas até um pouco de conversa, até gente que escute”. O cardeal sublinha que os fiéis “distribuem-se por um vastíssimo espectro de opções político-partidárias”. A Igreja “proporciona a única ocasião permanente, completamente interetária, interclassista, intercultural de encontro”. Uma realidade, garante, que “tem tudo que ver com a confiança”: “O que cria confiança é o conhecimento e o que cria desconfiança é o isolamento — se conheço, para o bem e para o mal, sei com o que conto. ”Referindo que o “Papa Francisco fala da crise do compromisso comunitário”, o cardeal-patriarca de Lisboa explica a fragmentação social moderna: “Dantes as comunidades, mal ou bem, estavam garantidas, as pessoas não saíam da sua terra, os vizinhos eram os de sempre. Agora deslocam-se para parte nenhuma. Já não têm a terra de onde partiram e ainda não têm a terra onde chegaram. ”Boaventura de Sousa Santos, que é coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, partilha a ideia de que as mudanças na Justiça ficaram incompletas. “Houve uma reforma importante, bastante inovadora do nosso sistema de Justiça, mas não houve grandes mudanças na cultura jurídica e judiciária”, defende. “Talvez o melhor sinal é que não houve mudança nos planos de estudo das faculdades de Direito. Mantiveram uma cultura muito burocrática, muito legalista e muito positivista, no sentido em que os processos são conjuntos de papéis e não são pessoas que estão naqueles papéis e que podem sofrer com um atraso da Justiça. Criou-se uma cultura burocrática muito forte, que se aprofundou. ”O sociólogo afirma ainda que há mais dois factores que contaram para a desconfiança dos portugueses na Justiça, sobretudo nos últimos anos. “Um é que nos momentos de crise — e houve vários — os direitos dos cidadãos são questionados e há uma grande expectativa no recurso à Justiça, [a qual] não correspondeu. ” Logo, “quanto maior foi a expectativa, maior foi a frustração”. O outro é que “a crise levou a que a Justiça se tornasse mais cara”. A professora catedrática e directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Teresa Pizarro Beleza, concorda que a crise ajudou, mas afirma que “a ‘crise na Justiça’ também parece ser de alguma forma estrutural”. Em resposta por email à Revista 2, a jurista aponta que isto se passa “pela sua profunda ligação a traços atávicos da sociedade portuguesa (o clientelismo, o nepotismo, o amiguismo, a falta de espírito de risco e inovação, a dependência doentia do Estado, da família ou da Europa, a incapacidade de boa organização e planeamento seja do que for, começando na dificuldade em cumprir horários e prazos”. A directora da Faculdade de Direito da Nova sublinha: “Essa ‘crise’ é falada e discutida desde, simplificando grosseiramente, ‘sempre’, [já que] a promessa de Justiça justa e célere vem pelo menos de ‘conversas reais’ — de rei, mesmo — dos séculos XIV ou XV. ”Contudo, Teresa Pizarro Beleza considera que “a falta de confiança generalizada na Justiça é um problema seriíssimo que trava, entre muitas outras coisas, a vida económica ‘saudável’”. Mata igualmente “a esperança das pessoas comuns na possibilidade de verem uma solução justa — o que pode ter efeitos gravíssimos na tentação de [fazer] justiça pelas próprias mãos, violência interindividual, etc. ”. E aponta “a popularidade crescente de meios alternativos de resolução de disputas (arbitragem, mediação, justiça dita ‘restaurativa’), no campo penal, familiar, de negócios ou qualquer outro” como um evidente sinal “da falência do sistema tradicional, ortodoxo, formal de Justiça (= tribunais)”. Jorge Sampaio, ex-advogado, aponta a Justiça como exemplo do desgaste da confiança nas instituições e levanta uma questão pouco abordada em Portugal: “A responsabilidade sobre a gestão, a definição dos padrões de exigência de serviços e a qualidade da Justiça é apenas dos órgãos não eleitos, uma vez que a magistratura tem dois conselhos superiores. ” O ex-Presidente considera que “o Governo não tem condições para resolver a situação “gravíssima do segredo de justiça, que necessita de um tratamento mais brutal”, nem de “discutir a gestão, a qualidade e a transparência da Justiça”. E advoga que a Justiça precisa de meios: “Não podemos passar a vida a ouvir que o Citius falhou, que não há funcionários suficientes, que há magistrados do Ministério Público a menos, que há peritos a menos. A criminalidade cada vez mais complexa, nomeadamente a económica e financeira, necessita de uma capacidade de meios para responder em tempo que não seja escandaloso. ”O que cria confiança é o conhecimento e o que cria desconfiança é o isolamento — se conheço, para o bem e para o mal, sei com o que conto. ”“Quando o Banco de Portugal, o sistema bancário, a Comissão de Mercado e Valores Imobiliários, as instituições da Justiça perdem credibilidade, não estão a afectar só a sua imagem —há um efeito de contaminação da credibilidade generalizada das instituições”O nosso jovem investigador aqui formado tem um interlocutor que é o seu colega que partiu para o centro dos EUA, da Europa ou da Índia. Hoje o progresso científico faz-se através da cooperação académica. "Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
Carlos Alexandre: O juiz dos poderosos
Os adversários acusam-no de exacerbar os seus poderes, os amigos gabam-lhe a rectidão. Retrato do filho de um carteiro de Mação e de uma operária e que nas horas vagas chega a cantar rap entre os amigos. (...)

Carlos Alexandre: O juiz dos poderosos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.3
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os adversários acusam-no de exacerbar os seus poderes, os amigos gabam-lhe a rectidão. Retrato do filho de um carteiro de Mação e de uma operária e que nas horas vagas chega a cantar rap entre os amigos.
TEXTO: Aos 53 anos, o juiz Carlos Alexandre fez o que ninguém antes dele tinha feito em Portugal. No Verão passado, exigiu três milhões ao banqueiro Ricardo Salgado para o manter em liberdade e agora mandou prender o ex-primeiro-ministro José Sócrates. Hoje já não há-de ver o velho amigo dos bancos de escola: entre Lisboa, onde Carlos Alexandre acompanha as buscas, e a vila que viu o juiz nascer, ainda é mais de uma hora de caminho no BMW do juiz. Nem a morte de um primo direito, que foi esta tarde a enterrar, conseguiu trazê-lo à terra, por muito apego que lhe tenha o filho do “Zé Carteiro”, nas bocas do mundo desde que atirou para a prisão José Sócrates. Avesso a dar a cara e a explicar as suas decisões, mesmo as mais polémicas, o magistrado mal se vislumbra na reportagem televisiva. Saiu da sede do banco por uma porta lateral. O proprietário do restaurante de Mação bem tenta descortiná-lo, sem sucesso. “Enquanto não fizer o trabalho dele, não sai de lá. Nem deve ter almoçado”, acaba por dizer, à laia de consolação, antes de ver passar nova reportagem, desta vez com a porteira de um dos prédios de luxo de Paris onde habitou o ex-primeiro-ministro. Já escureceu e as ruas ficaram desertas. Os escassos cafés de Mação ainda de porta aberta estão povoados por idosos. Todos conhecem Carlos, ou não viesse ele aqui passar pelo menos um fim-de-semana por mês, cuidar dos terrenos e ver crescer a moradia que está a levantar ao lado da casa que era dos pais, uma vivendazita de dois pisos que ainda mal passou dos alicerces e só deve estar terminada lá para 2016. “Sabe quem abriu os caboucos à mão?”, pergunta, em tom de desafio, um dos operários da obra. “Ele andou aí com a gente a trabalhar, a limpar a lixeirada do entulho. ”Para muitos, é isso mesmo que está a fazer Carlos Alexandre: a limpar um país sujo. “Eram precisos pelo menos mais dez como ele”, ouve-se de cada vez que se menciona na vila o nome do juiz. “Mas está sozinho”, lamenta Fernando Courela, um amigo de longa data. “Achei-o muito cansado da última vez que cá esteve em Mação. É muita bagagem para um homem só — e ele atira-se muito para fora de pé”, observa o construtor civil reformado. Teme que o companheiro de petiscadas “não aguente a pressão da classe política”. Aos 53 anos, Carlos Alexandre fez o que ninguém antes dele tinha feito em Portugal. No Verão, exigiu três milhões ao banqueiro Ricardo Salgado para o manter em liberdade, depois de um longo interrogatório em tribunal, por causa do caso Monte Branco. Agora, foi o antigo líder do PS, partido de que o juiz até foi deputado municipal por Mação nos anos 1980, e nada garante que as coisas fiquem por aqui. Também se lhe deve aquela que terá sido a maior caução de sempre imposta a uma só pessoa em Portugal: cinco milhões de euros, aplicados ao milionário Ricardo Oliveira, implicado no caso BPN. Tem-lhe cabido lidar com os maiores suspeitos do crime económico do país. O mistério da sua aparição permanente nos processos mais quentes — vistos gold, Face Oculta, submarinos, Operação Furacão, Freeport e Portucale, entre tantos outros — tem uma explicação, ligada à organização do panorama judiciário português: é em Lisboa que se situa o Departamento Central de Investigação e Acção Penal, que investiga os casos de criminalidade complexa, praticada não apenas num, mas em vários pontos do país. Os frutos do trabalho deste departamento são encaminhados para um tribunal especializado neste tipo de processos, conhecido na gíria judiciária como “Ticão”. É no Tribunal Central de Instrução Criminal, instalado no Campus da Justiça, no Parque das Nações, que Carlos Alexandre exerce funções. Até há pouco tempo era rei e senhor do Ticão, mas desde Setembro que passou a repartir trabalho com um juiz auxiliar. Neste tribunal não proferem sentenças: preparam-se os processos que hão-de um dia, e só se for caso disso, ver a cor do julgamento. A Carlos Alexandre cabe ainda decidir se os suspeitos que o Ministério Público lhe apresenta ficam à espera de ser julgados do lado de fora ou do lado de dentro das grades, consoante o perigo de se porem a milhas da justiça, de perturbarem as investigações ou de reincidirem no crime. Um poder que parece dar-lhe um gozo imenso, segundo um advogado que prefere manter o anonimato: “Pela-se por apanhar a malta da classe dirigente num crime. É esse meio social que gosta de perseguir: quer encontrar os podres da classe dominante. ”Os prolongados interrogatórios que leva a cabo para chegar a uma conclusão têm as suas particularidades. “Espreme as pessoas”, relata um amigo que conhece de perto o seu modus operandi. “Para ir do ponto A ao ponto B, é capaz de fazer um desvio enorme”, por forma a trocar as voltas a quem tenta escapar às malhas da justiça. “Noventa e nove por cento dos arguidos não usam o direito que têm a remeter-se ao silêncio”, critica outro advogado que acompanha a actuação do magistrado há década e meia. Porquê? “Temem sair dali em prisão preventiva. ” O mau feitio é um apanágio do magistrado em muitas ocasiões, que alia a um humor corrosivo, como admite o mesmo amigo. Já todos sabem que o caldo está entornado quando interpela os suspeitos com um: “Ó cidadão…” Os apartes que lança durante os interrogatórios fazem parte do mito que ajudou a criar em torno da sua personagem. “São interrogatórios muito atípicos. Fala consigo próprio, em voz alta. Numa das últimas vezes, dizia à pessoa que estava a interrogar: ‘Continue, continue que eu gosto de ouvir histórias’”, indigna-se o advogado. Outras vezes é ele próprio quem conta em tribunal histórias de Mação, que deixou quando foi estudar para Abrantes, depois de ter feito dois anos pela telescola. Para mostrar como percebe que estão a tentar enganá-lo, pode contar como a vila tentou resistir às invasões francesas fingindo que tinha muitos homens, pondo sempre os mesmos às voltas em cima de um monte como se de um grande contingente se tratasse. Muitos dos interrogatórios terminam com uma frase enigmática: “Menina, formalidades de embarque. ” A funcionária judicial já sabe do que se trata: tem de tratar da papelada para o arguido dar entrada na cadeia. Entre os advogados com quem falámos, há um que lhe reconhece uma certa genialidade. Mas não se conforma. “Acha-se um paladino da justiça contra o mundo inteiro. Tem complexo de Robin Hood”, observa, acrescentando que, se tivesse de apostar, diria que o seu livro de cabeceira há-de ser Os Burgueses, de Francisco Louçã e João Teixeira Lopes — obra sobre o percurso de mil pessoas que ocupam os lugares de poder em Portugal e a sua relação com o empobrecimento do país. “Carlos Alexandre quer ser visto como uma pessoa que não tem medo dos fortes e poderosos”“Carlos Alexandre tem um comportamento que fica bem a um procurador. Não a um juiz de instrução”, critica o mesmo causídico. É também essa a opinião do advogado João Medeiros, que no caso dos vistos dourados representa o antigo director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Manuel Jarmela Palos, de suspeitas de corrupção passiva, quando alega que a maneira de ser “voluntariosa” do juiz não se compagina com o papel equidistante que o Código de Processo Penal lhe atribui. É essa maneira de trabalhar obsessiva que faz com que chegue a conhecer melhor os casos do que os procuradores e inspectores da Judiciária que tiveram por missão investigá-los. “Gosta muito de ouvir escutas telefónicas”, recorda uma magistrada, igualmente crítica da sua forma de actuação: “Envolve-se muito nos casos. Seria um bom procurador. ” “Dava um excelente director da Judiciária”, resume outro advogado. Se de preguiça ninguém o pode acusar, nem de lhe terem conseguido encontrar rabos de palha, muitas das vezes que o desempenho de Carlos Alexandre vem à baila entra na berlinda a questão da separação de poderes. “E ele também investiga, embora não o deva fazer”, acusa a mesma magistrada. Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, explica como funciona o sistema nas fases que antecedem o julgamento. Quando alguém é suspeito de algum crime, cabe ao Ministério Público liderar as investigações. É a chamada “fase de inquérito”, na qual os procuradores são coadjuvados pelas polícias. “Nesta fase, o juiz é o garante das liberdades do cidadão: cabe-lhe decidir se autoriza ou não buscas, escutas e outras diligências requeridas pelo Ministério Público”, restritivas desses direitos, liberdades e garantias, incluindo a aplicação de medidas de coacção como a prisão preventiva. Pode investigar? “Não, não pode ir para o terreno investigar por conta própria. Tem de avaliar os indícios que lhe são remetidos para tomar uma decisão”, responde Conceição Gomes. Também não é suposto fazê-lo na etapa seguinte do processo, a de instrução, uma espécie de pré-julgamento em que tem porém liberdade para ouvir testemunhas e mandar repetir ou promover diligências. “Carlos Alexandre quer ser visto como uma pessoa que não tem medo dos fortes e poderosos”, resume o advogado Godinho de Matos. “O que o faz correr? Não é o dinheiro, mas o prestígio. ” Ficará conhecido como o magistrado que teve a coragem de colocar um ex-primeiro-ministro na cadeia. Há quem o descreva como um bulldog: mergulha nos assuntos até ao fundo, quase nada lhe escapando. Não foi sempre assim. Quando chegou à Polícia Judiciária Militar, há década e meia, deparou-se com uma guerra de generais, na qual se viu envolvido contra vontade. Chamado por um juiz seu amigo para ajudar a despachar dezenas de processos menores, havia de se incompatibilizar com o colega e de ficar com muitos casos bicudos entre mãos, relacionados com aquisições pouco claras de material bélico e de fardas. Só percebeu bem com quem estava a lidar quando lhe disseram que escusava de levar para ali os cartapácios das leis, porque a justiça militar se baseava apenas em três artigos: os amigos protegem-se, os inimigos combatem-se e a lei aplica-se aos indiferenciados. Em causa estavam milhões de euros gastos em alegados esquemas de corrupção, burlas e falsificações, como o episódio das fardas que nunca chegaram a ser vendidas para a Polónia pelas Oficinas Gerais do Estado e a aquisição de viaturas militares para as operações de paz em Timor. Em 2004, o juiz sentiu-se na obrigação de comunicar ao Conselho Superior da Magistratura a existência de pressões sobre quem estava a investigar estes casos, alegadamente surgidas após os investigadores terem efectuado diligências junto do chefe de gabinete do então ministro da Defesa, Paulo Portas. A Polícia Judiciária Militar retirou-lhe o carro, o motorista e o telemóvel. Foi depois de tudo isto, em 2005, que surgiram as primeiras ameaças que o obrigaram a passar a andar com segurança pessoal da PSP — a pistola que apareceu pousada em cima da foto dos dois filhos, dentro da sua própria casa, no concelho de Oeiras, e o atropelamento da mulher nas imediações do emprego. Quando lhe entraram na residência para deixar a arma, não levaram o ouro que havia em casa, mas vasculharam papéis. Neste momento, está a ser equacionado um reforço da sua escolta, extensível à família mais chegada, depois de terem sido percepcionadas novas ameaças. Se chegou a juiz, deve-o não apenas aos sacrifícios da família, mas ao empenho do professor primário Pomba Marques, a quem ainda hoje pede conselho. É ele que quer que lhe leve a cruz do caixão se algum dia lhe acontecer mal. Homem de fé ao ponto de andar com um terço no bolso, ri-se quando os amigos se mostram preocupados. Numa entrevista em vídeo dada a um amigo seu, o socialista António Colaço, durante uma cerimónia religiosa na qual costuma participar na sua terra, conta que faz gosto em ir a Fátima. Apesar da vaidade que tem no seu trabalho, nunca permitiu entrevistas senão a este amigo. É noutra destas conversas, também publicada no blogue Ânimo, em 2011, que fala da “gritante carência de meios” na justiça, quer humanos quer ao nível dos instrumentos legislativos. E da vida “austera, regrada, disciplinada e pacata” que leva. “Sou um rural na cidade. Não sou propriamente uma pessoa que se deixe contaminar pelo deslumbramento das luzes da ribalta”, revela. Mesmo com o líder do seu partido encarcerado, Colaço continua a defender quem entregou a Sócrates o tal “cartão de embarque”. “Face às preocupantes notícias que, em surdina, nos chegam e que poderão vir a configurar a materialização de um ‘golpe de Estado judicial’, só me resta exprimir ao meu querido amigo Carlos Alexandre que não tema, porque a verdade fala sempre mais alto do que o dinheiro”, escreve num dos seus mais recentes posts. Há quem tema o surgimento de reorganizações judiciárias feitas à medida, para afastar Carlos Alexandre do seu posto. Mas é tarde de mais, observa uma pessoa próxima do magistrado: depois de uma década de Ticão, o juiz conhece quase todos os segredos do regime. Tem demasiada gente debaixo de olho, “é um serviço de informações” ambulante. O ex-ministro do PS Augusto Santos Silva mostrou-se ciente disso mesmo quando declarou, já depois da prisão de Sócrates, que à justiça “não compete aperfeiçoar ou moralizar o regime político — mesmo que os agentes judiciais pensem que a classe política é demasiado opaca”. No ano passado, Carlos Alexandre foi considerado a 48. ª pessoa mais poderosa da economia portuguesa pelo Jornal de Negócios, que destacava o facto de ter sido pela sua mão que tinham ido parar à prisão figuras como Duarte Lima e Isaltino Morais. Ao autarca de Oeiras chegou a vê-lo de roupão, quando acompanhou as buscas ao seu apartamento numa madrugada de 2005. Eram sete da manhã e Isaltino devia ter-se deitado há pouco tempo, porque ainda eram visíveis os sinais da noitada. Quando finalmente leu o mandado de busca, o presidente da câmara não se terá contido: “Mas quem se atreveu a escrever isto de mim?!” No Verão de 2006, o juiz seria multado por fiscais camarários por causa de obras de pequena monta que efectuou na sua residência naquele município. Na sequência do embargo dos trabalhos, os serviços municipalizados anunciaram-lhe que lhe iriam cortar a água e a electricidade — o que acabou por nunca acontecer. Isaltino não foi o primeiro maçon com quem o juiz se cruzou. O seu conterrâneo António Reis, nascido numa aldeia do concelho de Mação, deu-lhe muitas vezes boleia para casa num Citroën Dyane descapotável quando estudavam em Lisboa. Continuou seu amigo depois de este se tornar grão-mestre do Grande Oriente Lusitano. Foram tempos difíceis os dos estudos superiores em Lisboa, uma oportunidade que os pais não tinham podido dar aos dois irmãos mais velhos. Morou num quarto alugado durante o curso inteiro. E o carteiro, que tinha arranjado uma motorizada para entregar a correspondência nas aldeias vizinhas, chegou a empenhar “as pernas” para fazer esticar o dinheiro — era assim, segundo um amigo da família, que “Zé Carteiro” se referia à moto. A morte dos pais no final dos anos 1990 marcou-o. “Embora não pareça, é um homem de sentimentos”, nota o presidente da Câmara de Mação, Vasco Estrela. Ainda hoje, quando chega à sua terra, quem procura para ir petiscar e beber imperiais são os mesmos de sempre — quer tenham seguido estudos ou não tenham passado da cepa torta. “Não anda com a elite. Dá-se com os amigos, não despreza os que ficaram para trás”, confirma um professor reformado das suas relações, Carlos Diogo. “Carlos Alexandre tem um comportamento que fica bem a um procurador. Não a um juiz de instrução”“É muito perfeccionista no trabalho”, diz o amigo de Vila Franca. “E determinado”, acrescenta Francisco Rocha, um advogado que lidou com ele nesta cidade e que se lembra de ver o chão do tribunal polido como nunca quando Carlos Alexandre passou a dirigir este tribunal. “Até nesse assunto se metia. ”Carlos Alexandre acumula o trabalho no Ticão com turnos no Tribunal de Instrução Criminal, onde não é raro caírem proxenetas e pequenos traficantes, ao lado dos quais se chega a sentar para melhor os interrogar, como nos lembra um amigo. Tem também a seu cargo casos ligados à secção de instrução militar. Quando o serviço deixa, fica com a tarde de sábado e o domingo livres. Como diz o mesmo amigo, o juiz já podia ter subido ao Tribunal da Relação. Mas não quis: não ia ganhar tanto, porque já não podia acumular salários. “Explica que como não é corrupto tem de trabalhar para arranjar dinheiro”, conta um familiar. Depois de ter ajudado a reconstruir a habitação onde morou com os pais ao lado da que agora está a erguer, meteu-se a fazer o mesmo numas casas que a mulher herdou, no Alandroal, agora que um dos filhos, engenheiro químico de profissão, já ganha para si próprio. Ainda a morar com o juiz e a mãe, uma alentejana que Carlos Alexandre conheceu na repartição de finanças para onde foi trabalhar depois de se licenciar pela Faculdade de Direito de Lisboa, está um segundo filho. “É o pai chapado”, descreve o mesmo familiar. A frequentar o secundário, introduziu há algum tempo o progenitor no mundo do rap. Para quem convive com o juiz, o resultado dificilmente podia ter sido mais desconcertante: o magistrado passou a divertir-se a cantar-lhes em rap à mesa do café. Os estudos sempre estiveram em primeiro lugar. “A diversão para ele era um aspecto secundário: primeiro estavam as obrigações. Não desfrutou da sua juventude da mesma forma que eu”, diz João Catarino. Chegava a chorar quando não conseguia ser o melhor da turma. Não lhe são conhecidas namoradas antes daquela que viria a tornar-se sua mulher. As boas notas que foi tendo nas avaliações de que foi sendo alvo durante a sua carreira só têm sido ensombradas por um detalhe: ainda prefere escrever à mão. Conta um amigo que o juiz vira a ironia contra si próprio observando que um dia destes ainda têm de lhe antecipar a reforma por ser infoexcluído. Interpelado pelos que o rodeiam nos últimos dias sobre se não terá ido demasiado longe, repete invariavelmente o mesmo: “Tenho a consciência tranquila. Cumpri o meu papel. Fiz o que tinha de fazer. ”“Se tivesse de prender um dos filhos, havia de lhe custar muito, mas prendia-o”, diz um dos amigos mais chegados. Justiceiro? “Não. Não o move nenhuma ideia de vingança”, assegura. Não é propriamente isso que pensa Daniel Proença de Carvalho. Talvez por neste recente caso não ser o advogado de José Sócrates, como aconteceu tantas vezes no passado, não se coibiu de, depois da prisão do ex-primeiro-ministro, chamar a Carlos Alexandre “superjuiz dos tablóides”. De baixa estatura, ainda consegue passar quase sempre despercebido em público. É singela a assinatura que deixa nos despachos: Alexandre, simplesmente. Quase ninguém lhe fica indiferente, a sua actuação tem despertado amores e ódios. Em Mação, há quem o compare à floresta que cerca a vila: “Nasceu nestes pedregais. Aqui é a terra dos pinheiros, das pessoas verticais. O prumo está aqui. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
A filha do “Cavaleiro da Esperança”
Luiz Carlos Prestes chefiou duas revoltas militares e determinou a vida do Partido Comunista do Brasil durante cinco décadas. A filha e historiadora Anita Prestes lança agora a sua biografia política. (...)

A filha do “Cavaleiro da Esperança”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Luiz Carlos Prestes chefiou duas revoltas militares e determinou a vida do Partido Comunista do Brasil durante cinco décadas. A filha e historiadora Anita Prestes lança agora a sua biografia política.
TEXTO: Chama-se Anita “em homenagem a Anita Garibaldi” e Leocádia por causa da avó paterna, mas o peso político do seu nome assenta sobretudo nos apelidos, ou não fosse ela filha de duas lendas do imaginário político ocidental do século XX: Olga Benário Prestes e Luiz Carlos Prestes. “Ser filha de Prestes e de Olga leva a que as pessoas os homenageiem através de mim, eu tenho a clareza de espírito de que o fazem por eles, não por mim”, diz à Revista 2 Anita Leocádia Prestes, que esteve em Portugal este mês para dar uma conferência em Beja e no Porto e para lançar a obra Luiz Carlos Prestes — Um Comunista Brasileiro, de que é autora. “O livro é uma biografia política do meu pai, que [em 1990] morreu com 92 anos, 70 dos quais com actuação política”, explica, precisando que, como historiadora, fez vários livros sobre o pai, mas que este sintetiza toda a obra anterior, enriquecida com investigação de base sobre períodos que não tinha ainda analisado, como por exemplo a consulta de arquivos em Moscovo. “Tudo o que está no livro foi documentado em arquivos, não é trabalho de memórias nem tem vida pessoal, só o que interessa para a vida política” de um homem que “foi um comunista e um patriota”. Em Lisboa, foi convidada a visitar a Torre do Tombo e a conhecer o dossier da PIDE sobre Luiz Prestes. Aos 78 anos, Anita Prestes continua a investigar e a divulgar a história do pai, o mítico “Cavaleiro da Esperança”, que entre o final de 1924 e o início de 1927 liderou uma revolta militar no Brasil, que ficou para a história como “a Coluna Prestes” — o capitão do Exército comandou centenas de homens e mulheres ao longo de 25 mil quilómetros, do Rio Grande do Sul pelo interior até ao Nordeste e depois para sul de novo, até Minas Gerais. A “Coluna Prestes” exilou-se na Bolívia e depois na Argentina, tendo Luiz Carlos Prestes viajado, em 1931, para a União Soviética onde fez formação ideológica. Em final de 1934, já como funcionário da Internacional Comunista, regressa ao Brasil para integrar e liderar o Partido Comunista do Brasil, que passa a ser uma secção da III Internacional. Com ele vinha a sua mulher, Olga Benário Prestes, de nacionalidade alemã. Nos documentos oficiais, ele é António Vilar, de nacionalidade portuguesa, ela é Maria Bergner Vilar. No Brasil, Luiz Carlos Prestes lidera o PCB e a Aliança Nacional Libertadora, que se opõem ao Governo de Getúlio Vargas. Em 1935, desencadeia-se o movimento para derrubar o Governo de Getúlio que ficou para a história como “Intentona Comunista”, uma insurreição militar que se inicia em Natal e que Prestes procura, sem êxito, que se torne nacional. A ANL é ilegalizada e, em 5 de Março de 1936, Luiz Carlos e Olga Prestes são presos na casa clandestina onde moravam havia pouco tempo, o n. º 279 da Rua Honório, no Rio de Janeiro. Olga e Luiz Carlos não mais se voltarão a ver. Ele fica preso até 1945. Ela é deportada para a Alemanha, referenciada como comunista e de origem judaica. Olga estava grávida de Anita Leocádia, que nascerá em Berlim, a 27 de Novembro, na prisão de mulheres da Gestapo, em Barnimstrasse. “Nasci na prisão, depois é que a minha mãe foi para o campo de concentração”, conta Anita Prestes. Anita está com 14 meses quando é entregue à avó paterna, Leocádia Prestes, que se desloca a Berlim acompanhada pela sua filha Lygia, irmã de Luiz Carlos e tia de Anita. A Gestapo decide entregar a bebé como forma de sossegar a campanha internacional em curso no Brasil, nos EUA e na Europa pela libertação da família Prestes. “A Gestapo estava disposta a ver-se livre de mim, porque era muito emocional o impacto na opinião pública, eu era uma criança presa. Já em relação à minha mãe era diferente, ela era uma comunista”, explica agora Anita. “Até 1945, havia a esperança de que a minha mãe estivesse viva. A minha avó viveu na ansiedade de saber como vamos libertar Olga”, acrescenta. De facto, a líder comunista será transferida para o campo de concentração de Lichtenburg, depois para o de Ravensbruck e por fim para Bernburg, onde é executada numa câmara de gás a 23 de Abril de 1942. Por seu lado, a bebé Anita vai para o México. “Tinha em casa a foto dos meus pais, desde nova explicaram-me que eles lutaram por um mundo melhor para as crianças. No México havia muita solidariedade e muito apoio a exilados por causa da abertura do Presidente Lázaro Cárdenas del Rio. Cresci sempre com muita solidariedade”, assume Anita. “Agradeço muito à minha avó e à minha tia que me deram a entender que a solidariedade era pelos meus pais e que eu tinha de me fazer por mim”, conclui. É com nove anos que Anita regressa ao Brasil, para viver dois anos no Rio de Janeiro. É então que conhece o pai. “Em 1945, houve amnistia e fomos para o Brasil, o meu pai voltou [da prisão]. Foi eleito senador. Os comunistas eram legais. ” Demonstrando como nos padrões da militância comunista da III Internacional os objectivos políticos estavam acima de conjecturas pessoais e de emoções privadas, Prestes e o PCB defendem que a eleição do novo Presidente seja feita apenas depois da eleição da Assembleia Constituinte, de modo a garantir a estabilidade. Uma posição política que ainda hoje surpreende, já que foi sob a governação de Getúlio que Prestes foi preso durante dez anos e que Olga foi deportada e entregue à Gestapo e à morte. Em 1946, Prestes lidera a bancada comunista que conta com 15 deputados. São dois anos de harmonia familiar, mas também de formação política intensa para a jovem Anita. “Eu era filha da Olga, o grande amor da vida dele, ele levava-me para todo o lado, para os comícios, para a vida política. Fui criada num ambiente político. ” E ao lado de um homem que era já então um mítico revolucionário e um líder. “A quantidade de presentes que recebia enchia armários. Distribuíamos os presentes pelos primos e pelos pobres. Sempre fui muito orientada no que tinha para olhar para os outros. ”Mas em 1947 o Governo de Gaspar Dutra consegue a ilegalização do PCB e os mandatos dos deputados são cassados. “O meu pai foi para a clandestinidade, mas correspondíamo-nos”, conta Anita, recordando: “Eu tinha segurança. Ia para a escola com dois guardas, o partido tinha medo que me fizessem mal. Mas aos 14 anos fui para Moscovo com a minha tia Lygia. ”É na URSS que Anita faz os estudos secundários. E começa a sua militância comunista. “Eu era já tão comunista que queria ficar no Brasil e ser guerrilheira, mas fui para Moscovo e até pertenci ao Komsomol [Juventude do Partido Comunista da União Soviética]. Tive uma autorização especial para entrar porque era estrangeira. Ser comunista foi um processo natural”, explica. Em 1958, Prestes volta a viver legalmente no Rio de Janeiro e casa-se com Maria do Carmo Ribeiro Prestes, de quem terá sete filhos. Em 1964, com o golpe militar que deu início à ditadura militar, Prestes passou à ilegalidade. Em 1971, o Comité Central do PCB decide que ele deve exilar-se. Viaja clandestinamente para a Argentina, daí voa para Paris e depois para Moscovo. Já Anita terminou em 1974 o curso de Química Industrial na Escola Nacional de Química da actual Universidade Federal do Rio de Janeiro, e dois anos depois o mestrado em Química Orgânica. Sem nunca abandonar a militância comunista, acabou por exilar-se em 1973 de novo na União Soviética, onde em 1975 recebe o título de doutora em Economia e Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscovo. Desde aí dedicou-se a fazer a história do comunismo no Brasil e da actividade política de Luiz Carlos Prestes, de quem foi assessora política até à sua morte. Regressada ao Brasil após a amnistia de 1979, doutora-se em História Social pela Universidade Federal Fluminense e é professora de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Com a amnistia de 79, também o pai regressa ao Brasil. Escreve então “Carta aos Comunistas”, um documento onde defende a orientação doutrinária tradicional do partido, entrando em ruptura com o PCB, que acaba por abandonar em 1982, com um grupo de militantes. Não voltou a militar em nenhum partido, mas foi tomando posição na vida pública brasileira: apoiou a candidatura de Leonel Brizola, mas nunca aderiu ou apoiou o Partido Trabalhista (PT) nem Lula da Silva. “Desde o início, o meu pai foi muito crítico com o PT. Em 1980, havia a ilusão, mas o PT não é um partido revolucionário, nem socialista. Era já então um partido burguês”, considera Anita Prestes. E vai mais longe dizendo que “Lula foi derrotado três vezes e na quarta entendeu que só conseguia ser eleito se fizesse cedências ao capitalismo internacional, por isso escreveu a ‘Carta aos Brasileiros’ [onde se comprometia a não mudar a política económica]”. Hoje em dia, Anita Prestes continua a ter uma visão crítica dos governos de Lula, bem como dos de Dilma Rousseff: “Eu e os meus companheiros achamos que é um prolongamento do neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso. ”A historiadora sustenta que “as políticas compensatórias dos dois governos de Lula e do primeiro de Dilma conseguiram melhorar as condições dos mais pobres, mas não acabou a miséria, basta andar nas ruas das maiores cidades do Brasil”. Defende que o momento político “é bastante complexo, o Governo Dilma e o PT estão extremamente desgastados e nos estudos de opinião a apreciação da Presidente obtém apenas 8%”. Mas admite também que “conseguiram paz social até 2013”. E foi a partir de então, afirma, que “os reflexos da crise mundial do capitalismo tiveram consequências no Brasil”: explodiram as “manifestações de protesto, que eram desorganizadas, sem liderança e sem proposta e que não resultaram num movimento político”, até porque tinham orientações políticas diversas e “houve mesmo elementos fascistas”. Estas manifestações, analisa, revelaram que “o povo estava desiludido com os partidos, à semelhança da Argentina em 2001”, assim como o facto de que “há uma grande despolitização”. Sublinha, no entanto, que “as palavras de ordem causaram espanto”, pois revelaram “a defesa dos serviços públicos, dos transportes públicos, da saúde pública, do ensino público”. E destaca também o quanto essas manifestações mostram que “há uma insatisfação muito grande com a incompetência da Presidente”. O ano de viragem foi 2013, “em que a situação começou a mudar”. Daí que em 2014, nas presidenciais, Dilma tenha tido “uma vitória curta contra Aécio Neves, que representa alinhamento com os EUA, enquanto o PT tentou alinhamento com os BRIC [que para além do Brasil inclui a Rússia, Índia e China]”. Desde então, segundo Anita Prestes, a governação do PT tem reflectido problemas e contradições: “Dilma nomeou Kátia Abreu ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ela é representante dos latifundiários e dos interesses agrários e a reforma agrária está parada. E Joaquim Levy, ministro da Fazenda, é o representante da Bradesco [banco] e propôs ajuste fiscal, que é um exemplo da típica política ortodoxa fiscal. Assim, o PT está dividido e a reforma fiscal está parada. ”Já no que toca à destituição ou não da Presidente, Anita considera que é uma questão que revela o mesmo tipo de contradições. “Entre os tucanos, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), também há divisões, a área mais radical quer o impeachment de Dilma mas o grande capital não quer, os presidentes da Bradesco e do Itaú [os dois maiores bancos brasileiros] que são os representantes do grande capital. ” Prova de que “os representantes do grande capital são a favor da permanência de Dilma”. É precisamente a notícia da sua condenação à revelia, em 1973, que Anita Prestes viu em primeiro lugar quando abriu o dossier referente a Luiz Carlos Prestes que existe no Arquivo da PIDE, na Torre do Tombo em Lisboa, que visitou a convite do seu responsável, Silvestre Lacerda. “Se não tivesse saído do Brasil, se calhar não estava aqui para contar a história”, comenta olhando o recorte de jornal. Vê o dossier com algum cuidado mas sem grande surpresa e sem deixar transparecer emoção. Afinal, é uma historiadora batida em arquivos e está habituada a ver materiais históricos sobre a vida política do seu pai. Alguns dos materiais são-lhe tão familiares que os explica à Revista 2. A começar pelo álbum comemorativo dos 50 anos de Prestes, apreendido quando foi enviado por correio para Portugal dirigido a Maria Helena Mântua — cidadã portuguesa que também tem um dossier no Arquivo da PIDE. Um álbum onde Anita Prestes reconhece duas cabeças do seu pai desenhadas por Carlos Portinari — “Ele era muito simples, era um camponês”, diz Anita sobre o pintor brasileiro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Reage com interesse a um documento que aparentemente não se lembra de ter visto: o Avante! clandestino que inclui a saudação de Prestes à liberdade de Cunhal, após a fuga de Peniche em 6 de Janeiro de 1960. Entre a leitura do que consta nos relatórios internacionais enviados à PIDE pelos serviços secretos franceses e norte-americanos, lá vai comentando que “a PIDE era bastante competente no que fazia”. E recorda que “havia um informador na comunidade dos portugueses no Brasil, o mesmo que dava informações sobre Humberto Delgado”, depois de o “General Sem Medo” ter pedido exílio da embaixada do Brasil em 1959 e rumado àquele país, onde viveu até ser assassinado pela PIDE, em 1965, em Espanha. “Havia, no Brasil, muitos portugueses de esquerda e comunistas, a PIDE tinha interesse em ter informador”, sublinha. E recorda a primeira vez que ouviu uma palestra de Delgado no Rio de Janeiro: “A gente não entendia o que Delgado falava, tinha sotaque muito carregado, se tivesse falado em francês, o pessoal tinha percebido melhor. Mas com o sotaque dele, nem sabíamos quando havíamos de bater palmas. ”
REFERÊNCIAS:
Uma modelo para primeira-dama
A mulher de Donald Trump evita ter de falar em público e prefere o recato do lar e a educação do filho de nove anos aos périplos que o marido e candidato à presidência americana faz pelo país. (...)

Uma modelo para primeira-dama
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A mulher de Donald Trump evita ter de falar em público e prefere o recato do lar e a educação do filho de nove anos aos périplos que o marido e candidato à presidência americana faz pelo país.
TEXTO: Antes de conhecer Donald Trump e de passar a viver no mundo glamoroso das limusinas e das penthouse, dos diamantes e do caviar, Melania Knauss levava uma vida bastante discreta. Cresceu num dos anónimos bairros de betão da Jugoslávia, nos tempos em que o país era liderado pelo socialista Josip Tito e nem se ouvia falar de “capitalismo exacerbado”, quanto mais em “trumpismo”. “Ela nunca foi pessoa de sobressair nem de ser o centro das atenções”, comenta Mirjana Jelancic, a amiga da escola primária de Sevnica, uma cidade que fica agora no centro daquilo que é a Eslovénia. E depois veio o casamento com “o Donald”. A ex-top model passou a ter uma linha de alta-joalharia, a que deu o nome Melania, a dar a cara por um creme feito com caviar a 134 euros o grama e a vestir Dior — como o vestido de 200 mil dólares que usou há dez anos, no dia do seu casamento, em Palm Beach. Agora, com 45 anos, Melania Trump, que tanto evita ter de falar em público, está no epicentro da campanha para as presidenciais americanas de 2016, ela que é uma mulher pouco convencional de um igualmente pouco convencional candidato. Depois de Louisa Adams, mulher de John Quincy Adams, que ocupou a Casa Branca em 1825, Melania será a primeira primeira-dama nascida fora dos Estados Unidos. É a terceira mulher de Trump — mais uma estreia para uma primeira-dama. Ronald Reagan foi o único Presidente divorciado a chegar à Casa Branca. Melania poderá ser também a mais poliglota primeira-dama — fala quatro línguas, incluindo um inglês com forte pronúncia. E será, sem sombra para dúvidas, a primeira primeira-dama que já foi fotografada nua, em pose em cima de um tapete de peles e algemada a uma pasta de couro a bordo do jacto privado de Trump (fez capa da edição inglesa da revista GQ em 2000). “Ela traz-lhe um grande equilíbrio [a Trump]”, garante Roger Stone, que já foi consultor político do agora candidato e conhece o casal ainda antes de ser casal. É esperta — “e não apenas um acessório” —, diz Stone. “E será a mais glamorosa primeira-dama desde Jackie Kennedy. ”Não é a primeira vez que Melania Trump está envolvida numa campanha política. Durante as primárias de 2000, Trump conseguiu ser eleito pelo Partido Reformador (uma facção do Partido Republicano) e ganhar no estado da Califórnia (acabaria por desistir pouco depois). De uma forma geral, Melania tem sabido manter uma persona discreta e sempre como braço-direito do marido, ainda que de tempos a tempos possa confundir a vida pessoal com a política. Aconteceu, por exemplo, em Abril de 2011, quando Trump pensava candidatar-se às presidenciais e protagonizava a campanha dos birthers — as pessoas que duvidavam de que o Presidente dos Estados Unidos tivesse nascido em território norte-americano. Melania foi à televisão defender publicamente o marido, afirmando o quanto ele “é notável”, “uma mente de génio”. O jornalista televisivo Joy Behar interpelou-a: “Que obsessão é esta com a certidão de nascimento? Também lhe pediu a sua quando se conheceram?” A resposta não tardou: “Quer ou não ver a certidão do Presidente?”, respondeu-lhe Melania, sublinhando que aquilo que se tinha visto até então era muito “diferente” de uma certidão de nascimento. “Era tão mais simples se o Presidente Obama a mostrasse. Não é só o Donald que a quer ver. É essa a vontade de todo o povo americano. . . ”Até agora, nesta campanha para as presidenciais de 2016, Melania Trump tem mostrado mais o seu lado recatado e doméstico do que o provocador. Raramente tem acompanhado o marido nas muitas viagens que este tem feito pelo país com o seu Boeing 757. Dizem os amigos que ela prefere ficar em casa — melhor, nas casas, porque tem a de Nova Iorque e a de Palm Beach — com Barron, o filho do casal que tem agora nove anos. O seu peripatético marido, 24 anos mais velho do que ela (Donald Trump está com 69 anos), disse por várias vezes ao longo da campanha que sabe que ela o segue pela TV e que está sempre do seu lado. “A minha mulher disse uma coisa mesmo interessante”, dizia Trump na CNN no mês passado. “Ela é a minha especialista em sondagens, ok?” — é já famosa a obsessão de Trump com os números que a sua candidatura colhe nas sondagens. “Ela mostrou-me os grandes níveis de aprovação que eu poderia ter quando me disse: ‘Sabes que vais ganhar se de facto te candidatares, certo?’”Em 1998, durante a Semana de Moda de Nova Iorque, Paolo Zampolli queria dar uma festa de arromba para a sua agência de modelos ID. Escolheu o Clube Kit Kat, um dos lugares mais in da noite nova-iorquina, e encheu o sítio com modelos. Entre elas, estava também Melania Knauss, uma eslovena escultural que ele tinha descoberto a trabalhar em Milão e Paris. Zampolli disse que todos os anos percorria os principais eventos de moda europeus para descortinar quem tinha não só a beleza no sítio certo, mas também a cabeça e o temperamento resiliente para se aguentar no estafante palco da moda nova-iorquina. Em Melania, encontrou alguém “estável e focada”. A amiga eslovena Mirjana Jelancic diz que ela já era assim mesmo nos tempos da escola. Melania Knav — mudou o apelido para Knauss quando a sua carreira de top model disparou —, era não só uma beldade como uma rapariga inteligente e de gostos práticos, que até sabia costurar e “criava roupas lindas”, disse a amiga durante uma entrevista feita na terra natal das duas, Sevnica. E soube manter esse estilo de vida quando chegou a Nova Iorque, em meados dos anos 1990: Melania preferia poupar dinheiro a mergulhar na vida social, confirma outra amiga, a também modelo Edit Molnar. “É muito caseira”, diz Molnar ao telefone a partir de Paris, onde agora vive. “É mesmo o oposto de Donald Trump. ”Molnar recorda-se daquela noite no Clube Kit Kat — Melania só foi por lealdade com Zampolli, o dono da agência de modelos que a representava. Trump também por ali cirandava com um date e tinha acabado de se separar da segunda mulher, Marla Maples. Molnar lembra-se de como ele ficou embeiçado por Melania: “Esta mulher é incrível. Quero-a”, lembra-se de o ouvir dizer. Melania não lhe deu o número de telefone, mas ele insistiu e deixou-lhe o dele — e ela usou-o poucos dias depois. Diz Zampolli que não levou muito tempo até estar sentado com ela e Trump na limusina preta para irem jantar com o ilusionista David Copperfield ao famoso Cipriani. Era o início de uma vida na limusina de Trump, no helicóptero de Trump, no jacto de Trump. “As pessoas vão começar a gostar dela quando a conhecerem”, diz Zampolli. “E não vai demorar muito que se apaixonem por ela. ”A partir do momento em que se tornou a namorada de Trump, Melania passou a ser também alvo da cobiça alheia — em muito graças à fanfarronice do agora candidato sobre a vida sexual do casal. O controverso e provocador animador de rádio Howard Stern entrevistou-os por telefone em 1999 e não resistiu a perguntar a Melania o que é que ela tinha vestido naquele momento. “Pouco”, respondeu-lhe ela com algum pudor. Melania é dona de um sex-appeal que poucos podem negar quando se vê o resultado da sessão fotográfica que fez a capa da GQ em Janeiro de 2000. Os olhos de um azul-esverdeado glacial. Os lábios carnudos. O corpo sedutor em cima de um tapete de peles a bordo do jacto de Trump. Um cintilante colar ao pescoço, nada a cobrir-lhe o corpo. “Sexo a 9 mil metros de altitude. E Melania Knauss ganha direito às suas milhas”, titulava a GQ. A sessão fotográfica tinha sido uma ideia de Antoine Verglas, fotógrafo de moda que já tinha no portfólio modelos como Cindy Crawford e Claudia Schiffer. A revista andava à procura de fotografias sexy sobre jet-setters — quem melhor do que Knauss, a beldade cujo namorado era ele próprio dono de um jacto? Verglas, que além de fotógrafo de moda é maquilhador e cabeleireiro, passou todo o dia no hangar do aeroporto de La Guardia, dentro do jacto que Trump mandou desenhar para si próprio e que inclui, entre outras curiosidades, cintos de segurança que apertam com fivelas de ouro de 18 quilates. “Como estava a fazer a capa de uma revista para homens, já ia preparado para ter uma sessão fotográfica muito sexy”, diz Verglas quando o entrevistámos este mês num café de Manhattan. “É uma mulher fácil de fotografar: é que ela não tem nenhuma imperfeição. ” Verglas explica que apesar de Melania aparentar estar nua, na verdade ele cobriu-lhe algumas partes do corpo e “ela própria recusou determinadas posições mais expostas”. Mas aparece em várias poses: algemada a uma pasta de couro; de soutien vermelho e fio dental, óculos escuros e botas altas de pele, com um revólver na mão ao estilo Bond girl. . . O artigo foi feito durante a campanha de Trump com o Partido Reformador e a GQ citou Melania sobre a possibilidade de ele se candidatar à Casa Branca e fazer dela primeira-dama: “Tudo o que faço é por ele, estou ao lado do meu homem. ”Um ano mais tarde, Melania aparecia também na edição de fatos de banho da Sports Illustrated. Diz Verglas que enquanto fotografava Melania também estava a fazer sessões com Carla Bruni, que entretanto se casou com o antigo Presidente francês Nicolas Sarkozy. Entre uma e outra — têm idades aproximadas e estão ambas casadas com “presidenciáveis” —, Verglas aponta as diferenças. Bruni é muito mais gregária e namorou com homens famosos uns atrás dos outros, incluindo Mick Jagger e Eric Clapton. A própria Bruni esteve brevemente associada a Trump nos tempos em que ele cortejava a princesa Diana, mal esta se divorciou do príncipe Carlos. Em contrapartida, Melania era uma rapariga a quem “não se lhe conheciam histórias de namorados”, que se manteve “afastada dessa cena” e deixava-se ficar por casa, um modesto apartamento em Nova Iorque. E, como diz Verglas, “isso é bastante invulgar nesta nossa profissão”. Mais recentemente, quando Verglas a voltou a fotografar, já Melania estava na mansão de 118 quartos de Mar-a-Lago, em Palm Beach. “Pensei: ‘Isto é extraordinário, uma rapariga da Eslovénia em Mar-a-Lago. . . É a história da Cinderela. ”Em Junho, Melania estava ao lado do marido a descer as escadas da Trump Tower quando este se preparava para anunciar a sua candidatura a uma multidão exultante. E dois meses mais tarde também estava ao lado do marido para o primeiro debate republicano, em Cleveland. Mas tem sido da filha de Trump, Ivanka, que mais comentários se têm ouvido. “É uma grande responsabilidade estar casada com um homem como o meu marido”, afirmava Melania à revista Parenting há poucos anos. “Preciso de ser rápida, esperta e inteligente. ” Disse ainda que o marido “respira negócios” e que adora o seu papel como mãe a tempo inteiro. “Conhecemos muito bem o papel de cada um e vivemos felizes com isso. Acho um disparate que a mulher, mal se casa, tente mudar o homem que ama. Não se muda uma pessoa. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No The Apprentice, um reality show apresentado e produzido por Trump, Melania fez uma visita guiada ao sumptuoso apartamento do casal na Quinta Avenida, com uma vista sobre o Central Park de cortar a respiração e uma decoração à la Versailles. “É uma mulher sortuda”, disse-lhe um dos concorrentes enquanto ela servia de cicerone. “E ele não é?”, disparou Melania, com uma flute de champanhe na mão. Com Alice Crites, em Washington, e Nejc Trusnovec, na EslovéniaExclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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O espião que valia milhões
A CIA nunca tinha ganho um desafio nas ruas de Moscovo, onde recrutar espiões era demasiado perigoso. Adolf Tolkatchov estava desiludido com o comunismo e é a sua história agora contada em livro a dar o retrato dos anos mais tensos da Guerra Fria. (...)

O espião que valia milhões
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.3
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A CIA nunca tinha ganho um desafio nas ruas de Moscovo, onde recrutar espiões era demasiado perigoso. Adolf Tolkatchov estava desiludido com o comunismo e é a sua história agora contada em livro a dar o retrato dos anos mais tensos da Guerra Fria.
TEXTO: Era o agente mais valioso e bem sucedido que os Estados Unidos tinham infiltrado na União Soviética em duas décadas. Os seus documentos e desenhos permitiram revelar segredos da investigação sobre radares e armamento soviético. Fez sair placas de circuitos e desenhos técnicos do seu laboratório militar. As suas acções de espionagem permitiram aos Estados Unidos dominar os céus e confirmaram a vulnerabilidade das defesas aéreas soviéticas — mostrando que os mísseis de cruzeiro americanos e bombardeiros estratégicos conseguiam voar sem ser detectados pelo radar. No final do Outono e início do Inverno de 1982, a CIA perdeu o contacto com ele. Faltou a cinco reuniões. A vigilância do KGB nas ruas era esmagadora. Nem mesmo os agentes clandestinos do gabinete da CIA em Moscovo a conseguiam furar. Na noite de 7 de Dezembro, data prevista para um encontro, o futuro da operação foi posto nas mãos de Bill Plunkert. Depois de uma experiência como aviador da Marinha, Plunkert juntou-se à CIA e recebeu treino para agente de operações clandestinas. Era um homem dos seus 30 anos, com 1, 89m, quando chegou à representação de Moscovo no Verão. O seu objectivo era passar despercebido ao KGB e estabelecer contacto. Nessa noite, por volta da hora do jantar, Plunkert e o chefe do escritório da CIA, com as respectivas mulheres, saíram da embaixada americana para o parque de estacionamento, que estava sob vigilância permanente de milicianos fardados que prestavam contas ao KGB. Meteram-se no carro, com o chefe a conduzir. Plunkert sentou-se ao seu lado. As mulheres atrás, segurando um grande bolo de aniversário. A espionagem é a arte da ilusão. Naquela noite, Plunkert era o ilusionista. Debaixo das roupas civis usava uma segunda camada, típica de um homem russo. O bolo de anos era falso, com uma cobertura que parecia de bolo mas que na verdade escondia um dispositivo criado pelos feiticeiros das operações da CIA, chamado jack-in-the-box [o nome de um restaurante americano de fast food]. A CIA sabia que as equipas de vigilância do KGB seguiam sempre um carro atrás e raramente se colocavam ao seu lado. Era possível um carro da CIA escapar-se numa esquina ou outra, ficando momentaneamente fora de vista. Nesse curto intervalo, o agente da CIA poderia sair do carro e desaparecer. Simultaneamente, o jack-in-the-box erguia-se da caixa, confundindo-se com a cabeça do agente que acabara de sair. O dispositivo nunca tinha sido usado em Moscovo, mas à medida que as semanas passavam a CIA estava cada vez mais desesperada. Plunkert tirou as suas roupas civis americanas. Com uma máscara que lhe tapava toda a cara e óculos de sol, estava agora disfarçado de um velho russo. O KGB seguia-os à distância. Eram sete da tarde e a noite já tinha caído há muito. O carro virou numa esquina. Plunkert abriu a porta e saltou para fora. Nesse preciso momento, uma das mulheres colocou o bolo no assento da frente. O topo abriu-se e dele saltou uma cabeça e um torso. O carro acelerou. Lá fora, Plunkert deu quatro passos no passeio. Ao quinto, o carro do KGB virou a esquina. As luzes iluminaram um velhote russo no passeio. O KGB ignorou-o e acelerou no encalço do carro. O jack-in-the-box tinha resultado. Nos primeiros anos da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, a Central Intelligence Agency escondia um segredo desconfortável sobre si própria. A CIA nunca tinha ganho um desafio nas ruas de Moscovo. Recrutar espiões lá era demasiado perigoso para qualquer cidadão soviético ou oficial que se candidatasse. O próprio processo de recrutamento, desde o primeiro momento em que um possível espião era identificado e abordado, estava cheio de riscos de ser descoberto pelo KGB, e se fosse apanhado a espiar, um agente enfrentaria seguramente uma pena de morte. Uns quantos agentes que se voluntariaram ou foram recrutados pela CIA fora da União Soviética faziam os seus relatos em segurança quando chegavam a casa. Mas na maioria a CIA não conseguia ter agentes a espiar no coração das trevas. E foi então que apareceu a operação de espionagem que virou o jogo. O agente era Adolf Tolkatchov, engenheiro e especialista em radares aéreos, que trabalhava bem por dentro do establishment militar soviético. Ao longo de seis anos, Tolkatchov encontrou-se com responsáveis da CIA 21 vezes nas ruas de Moscovo, uma cidade pejada de vigilantes do KGB. A história de Tolkatchov é detalhada nas 944 páginas de telegramas da CIA que eram confidenciais e que foram desclassificadas sem restrições para o livro The Billion Dollar Spy. A CIA não leu o livro antes da publicação. Os documentos e entrevistas com os participantes oferecem um retrato detalhado de como a espionagem foi conduzida em Moscovo durante alguns dos anos mais tensos da Guerra Fria. Tolkatchov movia-se pelo desejo de vingança. A mãe da sua mulher foi executada e o pai enviado para campos de trabalho durante os anos de grande terror de Estaline, na década de 1930. Também dizia estar desiludido com o comunismo e afirmava-se “um dissidente”. Queria retaliar contra o sistema soviético e fê-lo entregando os seus segredos militares aos EUA. Os oficiais da CIA responsáveis pelo seu caso comentaram que ele parecia determinado em causar o máximo de danos possíveis à União Soviética, apesar dos riscos. O castigo pela traição era a execução. Tolkatchov não queria morrer nas mãos do KGB. Pediu e recebeu da CIA um comprimido suicida para tomar no caso de ser apanhado. A Força Aérea estima que a espionagem de Tolkatchov poupou aos Estados Unidos dois mil milhões de dólares em investigação e desenvolvimento de armas. Tolkatchov desviava a maioria dos documentos do seu escritório durante a hora do almoço, escondidos no sobretudo, e fotografava-os com uma Pentax 35mm, agarrada a uma cadeira no seu apartamento. Em troca, Tolkatchov exigia dinheiro da CIA, sobretudo como sinal de respeito. Não havia muito que comprar na Moscovo daquela altura. Também queria álbuns de música ocidental — Beatles, Led Zeppelin, Uriah Heep e outros — para o seu filho adolescente. Tolkatchov tornou-se um dos agentes mais produtivos da Guerra Fria. Mas pouco se sabe da operação — um período de maturação da CIA, quando conseguiu o que se pensava ser inatingível: encontrar-se pessoalmente com um espião debaixo do nariz do KGB. O escritório da CIA em Moscovo era uma sala do tamanho de uma garagem, enfiada na embaixada americana. Os oficiais apinhavam-se em pequenas secretárias, analisando mapas pendurados na parede, picados com pioneses vermelhos para assinalar locais perigosos do KGB, e planeavam cada jogada meticulosamente. David Rolph, que estava na sua primeira missão da CIA no estrangeiro, assumiu o “caso Tolkatchov” em 1980. Ao final da tarde de 14 de Outubro, saiu do escritório e foi para casa. Uma hora depois, voltou à embaixada com a mulher, vestidos como se fossem para uma festa. O miliciano russo que fazia a guarda reparou que entraram no edifício. Rolph e a mulher percorreram os estreitos corredores até chegar a um dos apartamentos e abriram uma porta que já estava entreaberta. O apartamento pertencia ao vice-chefe de tecnologia da representação da CIA de Moscovo, que ajudava os agentes com equipamentos e disfarces, desde sofisticados aparelhos de transmissão rádio a registos falsos. O vice-oficial dirigiu-se em silêncio para Rolph. Os dois homens tinham aproximadamente a mesma altura e constituição física. Num silêncio absoluto, Rolph começou a transformar-se ficando cada vez mais parecido com o anfitrião, naquilo que se chama transferência de identidade. Ele tinha um cabelo comprido e despenteado. Rolph colocou uma peruca comprida e despenteada. Ele tinha uma barba farta. Rolph pôs uma barba farta. Ajudou Rolph a ajustar o disfarce, depois deu-lhe um aparelho de transmissão rádio, antena e auricular para monitorizar as transmissões do KGB na rua. Da porta, Rolph ouviu uma voz. Era o chefe da tecnologia que tinha acabado de chegar e falava alto de propósito, assumindo que estavam a ser escutados por aparelhos do KGB. “Ei, vamos sair e ver a nova loja de máquinas?”, pergunta o chefe. O verdadeiro vice-chefe respondeu bem alto: “Óptimo! Vamos. ”Mas o verdadeiro vice-chefe não saiu do apartamento. O homem que saiu e que se parecia com ele era Rolph. O verdadeiro vice-chefe puxou uma cadeira e preparou-se para uma longa espera. A mulher de Rolph, com o seu vestido de noite, sentou-se também e ali ficou nas seis horas seguintes. Não diziam uma palavra, porque o KGB poderia estar a ouvir. O objectivo da transferência de identidade era deixar o perímetro da embaixada sem ser identificado. O KGB geralmente ignorava os técnicos quando saíam do complexo para ir buscar comida, flores ou peças de carros numa velha carrinha Volkswagen bege e verde. A carrinha saiu ao anoitecer. O chefe estava ao volante e Rolph no lugar do passageiro. As janelas da carrinha estavam sujas. Os milicianos limitaram-se a encolher os ombros. Uma vez na rua, a carrinha seguiu lentamente por um caminho irregular. Ao sair disfarçado da embaixada, o objectivo de Rolph era escapar ao KGB, mas nas horas que se seguiram preparou uma nova abordagem, procurando despistar os agentes. A sua missão era “tornar-se escuro” e iludir totalmente o sistema de vigilância. Mas ficar “escuro” exigia um longo e desgastante teste de nervos, antes de conseguir olhar Tolkatchov nos olhos. Numa corrida contra a vigilância, o agente tinha de ser tão ágil como um bailarino, tão distractor como um mágico e tão atento como um controlador de tráfego aéreo. A carrinha parou numa loja de flores, a sua primeira paragem de rotina, para ver se os carros de controlo do KGB ou as equipas a pé se descuidavam ou tropeçavam. Rolph ficou sentado e quieto, por detrás da janela suja da carrinha e não viu nada. Depois de mais uma hora e meia de condução, Rolph iniciou mentalmente uma contagem decrescente. A regra era avançar para a fase seguinte apenas se tivesse pelo menos 95% de certezas de que estava “escuro”. A razão era simples: no carro estava protegido. A pé ou sozinho tornava-se muito mais vulnerável. Rolph pesou aquilo que vira nas ruas escuras. Estava seguro. Olhou para o chefe de tecnologia, que lhe fez um ok com o polegar para cima. A carrinha ainda estava em andamento quando Rolph tirou o disfarce e o colocou num saco. Agarrou no saco de compras que tinha sido preparado para Tolkatchov e vestiu um casaco de lã. A carrinha parou por instantes. Saltou para fora e desapareceu rapidamente. A passos largos, numa avenida ampla, foi directo a um grupo de pessoas que esperavam por um daqueles eléctricos que rondam as principais artérias de Moscovo. Olhou para os passageiros do eléctrico, tomando atentamente nota daqueles que entravam ao mesmo tempo que ele. Então dirigiu-se abruptamente para a porta e saiu na paragem seguinte, vendo quem saíra juntamente com ele. Ninguém. A pé, deu início à última etapa. Estava fisicamente bem preparado e tinha a cabeça limpa, mas as voltas para despistar a vigilância são extenuantes. O tempo naquele Outono estava húmido e pesado. Sentia a boca seca, mas não havia sítio nenhum onde pudesse parar em segurança. O rádio estava silencioso. Entrou num pequeno teatro. Esta era a sua segunda paragem de disfarce. Olhou para o cartaz da programação e para os avisos pendurados na parede. O objectivo era obrigar os homens do KGB a fazerem alguma coisa de improviso, a escorregarem, para que ele os detivesse antes que chamassem reforços. Rolph saiu do teatro com bilhetes para um espectáculo que não fazia qualquer tenção de ver. Foi até uma loja de antiguidades, longe das suas rotinas habituais. Nada. Depois entrou num edifício de apartamentos próximo e começou a subir as escadas. Isto iria certamente desencadear uma emboscada do KGB; eles não poderiam permitir que ele desaparecesse de vista num prédio com vários andares. Na verdade, não tinha onde ir e não conhecia absolutamente ninguém que vivesse ali. Estava apenas a provocar o KGB. Num dos lances de escada, sentou-se e esperou. Não apareceu ninguém a correr. Virou-se. Há três horas e meia que não se via rasto do KGB. Ainda assim, para ter a certeza, caminhou até um pequeno parque com bancos alinhados. Olhou para o relógio. Estava a 12 minutos do local de encontro. Era hora de ir. Estava 100% seguro. Levantou-se do banco. De repente, foi sobressaltado por um barulho no auricular, depois outro e ainda um terceiro. Era claramente das equipas de vigilância do KGB. Ficou especado, rígido, tenso. Os barulhos eram por vezes usados como sinais entre agentes da KGB. Mas também poderia ser de um operador desastrado que tinha carregado no seu botão por acaso. Rolph repetia várias vezes as palavras “quando estás escuro, estás escuro”. Na sua cabeça, significava que quando se está “escuro” pode-se fazer qualquer coisa porque ninguém está a ver. Nada. Nenhum sinal que alguém estivesse no parque. Rolph deixou cair os ombros e respirou fundo. Quando estás escuro, estás escuro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O encontro com o espião correu muito bem. Tolkatchov passou-lhe 25 rolos de fotografias com cópias de documentos ultra-secretos. Voltou para a carrinha, colocou novamente a cabeleira e a barba e regressou à embaixada. Os guardas não olharam para ele duas vezes. O portão abriu-se. Um pouco depois, os milicianos anotaram que David Rolph e a mulher tinham deixado a festa na embaixada e voltado para casa.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Igreja de Santo António, Lisboa: No quarto de Santo António
Estávamos no século XII e o homem que viria a ser Santo António era apenas uma criança e chamava-se Fernando. Brincaria aqui, neste espaço que é hoje uma cripta debaixo da igreja com o seu nome? (...)

Igreja de Santo António, Lisboa: No quarto de Santo António
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estávamos no século XII e o homem que viria a ser Santo António era apenas uma criança e chamava-se Fernando. Brincaria aqui, neste espaço que é hoje uma cripta debaixo da igreja com o seu nome?
TEXTO: Há uma força extraordinária na ideia de que “foi aqui que aconteceu”. Por isso, segui várias dezenas de pessoas que entravam na igreja de Santo António, em Lisboa, e guiei-me pelos sinais que, em muitas línguas, indicam o caminho para a cripta. Foi por aqui, por este corredor estreito, que o Papa João Paulo II passou em 1982, quando veio rezar ao local onde, supostamente, terá nascido Fernando de Bulhões, o homem que ficou conhecido como Santo António, o santo de Lisboa (e de Pádua, onde morreu). E eu, lisboeta de sempre, nunca tinha descido ao quarto de Santo António. Que João Paulo II aqui esteve não há dúvidas. E, como ele, milhares de pessoas que, atraídas pela ideia de que “foi aqui” que Santo António nasceu, ajoelham-se em oração — tal como as senhoras espanholas que descem comigo. O espaço é pequeno. À nossa esquerda, protegido por uma grade em ferro trabalhado, está um discreto altar com a imagem do santo com o Menino ao colo, para onde algumas pessoas conseguiram lançar moedas. Por uma pequena janela entra luz. Não é fácil o exercício de imaginar aqui um quarto e o santo, nessa altura ainda a responder pelo nome de Fernando, entretido a brincar enquanto ao lado, na cozinha, a mãe o chamava para o jantar. Aparentemente, as espanholas devotas não se entregam aos mesmos pensamentos que eu. E, de facto, são inúteis. Não sei, sequer, como era uma casa em Lisboa no início do século XII e a verdade é que há muitas coisas que desconhecemos sobre a vida, e sobretudo os primeiros anos, de Santo António. Há até dúvidas quanto à data exacta do nascimento: a mais citada é 15 de Agosto de 1195, mas admite-se também que possa ter sido uns anos antes, em 1191. Terá nascido, então, numa casa perto da Sé de Lisboa. O local, Igreja e Real Casa de Santo António (inicialmente apenas uma capela, cuja administração foi entregue à autarquia pelo Papa em 1433), é, desde há muito tempo, propriedade da Câmara de Lisboa e foi, entre o século XIV e o XVIII, a Casa Consistorial, onde se reunia o Senado e onde estava instalada a caixa-forte para guardar os cofres com as reservas da Câmara e da Fazenda Pública. A igreja onde me encontro foi construída sobre esse local onde se supõe que viveria a família. Mas também sobre esta há dúvidas. Não existem documentos que comprovem que os pais fossem, como mais tarde (a partir do século XIV) se estabeleceu, Martim ou Martinho de Bulhões e Maria Teresa Taveira. Daí que, sobre o filho, a única certeza que parece existir é que tinha como primeiro nome Fernando. O que é curioso é a descrição física do santo, que leio num dos textos disponíveis no Museu de Santo António, ao lado da igreja. Diz-se aí que, segundo as primeiras descrições feitas para o processo de canonização (que ocorreu muito rapidamente, um ano após a sua morte, em Pádua, com apenas 36 anos), seria “de baixa estatura, pele escura e corpulento”. Muito diferente, portanto, da imagem de um homem de rosto imberbe, de menino, e feições delicadas que surge nas estátuas e nas outras representações que me rodeiam nas salas do museu (incluindo as que decoram embalagens de farinha, de bolachas, notas de 20 escudos, etc. ). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Curiosamente, em 2014, investigadores ligados ao Museu Antropológico da Universidade de Pádua tentaram reconstituir o que seria o rosto de Santo António a partir do crânio, que foi preservado. O resultado é um homem de rosto simpático, mas de feições mais largas e rudes e, sobretudo, com barba rija e sobrancelhas fortes. Mas acredito que mesmo que agora se passasse a usar esta imagem, mais terrena e mais latina, isso não afectaria em nada a sua imensa popularidade. É difícil encontrar um santo que seja tratado com tanta alegria e familiaridade como este. E é curioso, porque se lermos o que se sabe da sua vida percebemos que era, acima de tudo, um Doutor da Igreja, estudioso, excepcionalmente culto e um cativante orador. O que ficou, contudo, foi um santo casamenteiro e brincalhão, que quebra as bilhas às raparigas e ao qual se chega até a roubar o Menino quando não faz o que lhe pedimos. Pouco importa, por isso, se esta cripta está de facto no local onde foi o quarto de Santo António. Está porque queremos que esteja — e, afinal, foram os muitos “5 milreizinhos” recolhidos nos tronos do santo que ajudaram a reerguer esta igreja depois do terramoto de 1755, quando tudo ruiu e restaram apenas duas coisas: o altar-mor e a imagem de Santo António.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte filho homem
Porque sim: Regresso
Setembro já chegou: as aulas vão começar, os debates políticos decisivos aproximam-se ?e pode ser que nos entusiasmem. É tempo de recomeçar (...)

Porque sim: Regresso
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Setembro já chegou: as aulas vão começar, os debates políticos decisivos aproximam-se ?e pode ser que nos entusiasmem. É tempo de recomeçar
TEXTO: Setembro é sempre um tempo de regresso. Terminadas as férias, retomo em pleno todas as minhas actividades. As aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa começam este mês e novos alunos vão ouvir-me com atenção, cheios de expectativas para um ano escolar com muito boas notas, como quase todos ambicionam. Terei mais temas para as minhas crónicas semanais nesta Revista 2, porque o Verão é mais propício a textos mais simples e despreocupados (verifico agora que escrevo semanalmente há 20 anos: a minha primeira crónica, intitulada “Não falem mais de geração rasca”, foi publicada na Notícias Magazine em Novembro de 1994 mas, infelizmente permanece bem actual, quando escrevi: “penso (. . . ) que todos devemos meditar no modelo de sociedade que estamos a criar, onde todos parecem viver numa vertigem e onde quase não sobram minutos para nos olharmos”). Estas férias confirmaram algumas das minhas ideias mais recentes, que os 20 anos decorridos desde a primeira crónica ajudaram a sedimentar (descanso mas nunca deixo de olhar à minha volta). Foi evidente a mudança das famílias: os pais estão mais atentos aos filhos, as praias enchem-se de famílias em que homens e mulheres brincam com as crianças, com os progenitores do sexo masculino a não terem qualquer receio em demonstrar afecto pelos mais novos; os adolescentes aproveitam a disponibilidade dos adultos para solicitar transportes para praias distantes, ou para discotecas onde é difícil chegar sem carro; a Internet é agora o centro do entretenimento juvenil, local que se visita a todo o instante e onde tudo interage e se combina; a política quase desaparece do quotidiano e custa a crer que estamos a um mês de eleições tão importantes, que podem fazer mergulhar o país numa situação de difícil governabilidade: as poucas notícias que saíram não entusiasmaram ninguém e tudo se esqueceu numa conversa na areia ou numa meia hora de um bar ao ar livre. As noites de férias confirmaram o fascínio que exercem sobre os jovens: vi-os em grandes grupos no Algarve e na Praia Grande, às vezes a beber na rua porque os bares estão cheios ou nem sequer os querem acolher, porque assim é mais fácil fingir que não venderam álcool a menores de 18 anos (num local de férias que visitei, um parque de estacionamento estava cheio de carros com porta-bagagens abertos, onde centenas de adolescentes se abasteciam de cerveja e por ali ficavam a conviver). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Estas reacções à nova lei do álcool foram, aliás, uma das novidades deste Agosto que acabou há uma semana: ficou demonstrado que as restrições ao consumo dos menores de 18 anos, previstas no novo enquadramento legal, só terão algum sucesso se forem acompanhadas por acções de formação nas escolas e por medidas restritivas rigorosas nos locais de consumo de álcool, que devem passar, nos casos de reincidência de venda ilegal, por cessação das respectivas licenças de venda. Todavia, parece uma batalha difícil: está tão ritualizado o consumo de cerveja pelos jovens que já todos se organizaram para as novas regras de consumo, basta arranjar um amigo mais velho que depressa a bebida chega a todos…Setembro já chegou: as aulas vão começar (nas escolas básicas e secundárias nada cedo), os debates políticos decisivos aproximam-se e pode ser que nos entusiasmem. É tempo de recomeçar.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE