A vida de um casal banal vista à lupa em Forever
A nova série da Amazon Prime com Maya Rudolph e Fred Armisen, uma criação de Alan Yang e Matt Hubbard, está disponível desde 14 de Setembro. (...)

A vida de um casal banal vista à lupa em Forever
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: A nova série da Amazon Prime com Maya Rudolph e Fred Armisen, uma criação de Alan Yang e Matt Hubbard, está disponível desde 14 de Setembro.
TEXTO: Forever tem ideias com piada e absurdas, dois talentosos actores cómicos no centro e dois criadores versados em comédia. Mas está mais preocupada com ideias dramáticas e em explorar o que é realmente um casal que fica junto ao longo do tempo do que em fazer piadas a cada cinco segundos. Sem pressa de chegar a lado nenhum e com espaço para episódios que fogem ligeiramente à narrativa principal, a série tem uma fotografia vários furos acima do que é comum em algumas comédias convencionais e zero medo de montagens puramente visuais, que contam a história de ambos sem diálogos. Que não se vá ao engano: ainda há muito por onde rir. Afinal, a protagonista Maya Rudolph, filha da lendária cantora soul Minnie Riperton, é daquelas actrizes capaz de sacar gargalhadas do espectador através de subtilezas como uma ligeira expressão facial, um olhar ou uma reacção. E Fred Armisen, que, tal como ela, pertenceu ao elenco de Saturday Night Live, também é dotado nesse sentido. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Oscar e June, o casal Hoffman, são pessoas banais de classe média alta a viver na Califórnia. Ele, um dentista, vive perfeitamente contente com seguir as mesmas rotinas algo aborrecidas dia após dia, mês após mês, ano após ano. Mas ela quer mais e, ao longo do tempo, vai tentando quebrar a normalidade, sugerindo irem de férias para a neve e não para um lago, o que irá mudar para sempre a existência deles. Esta é, em traços gerais, a premissa da série da Amazon Prime focada nas pequenas coisas da vida e do dia-a-dia, que saiu a 14 de Setembro. Só que não é bem isso. O que realmente se passa aqui é mais complexo do que isso, só que não se percebe até se chegar ao terceiro episódio. Antes de os oito episódios terem sido disponibilizados, os responsáveis não queriam que se soubesse do que a série trata realmente, para os espectadores irem descobrindo, sem pré-concepções, ao longo do visionamento. Por isso, optamos por não descortinar mais sobre a série para cumprir os desejos de Alan Yang, o co-criador de Master of None e ex-argumentista de Parks and Recreation que realizou também o interessantíssimo teledisco de Moonlight, de Jay-Z, que imaginava como Friends seria se tivesse um elenco negro e Matt Hubbard, que trabalhou em 30 Rock e também escreveu para Parks. Yang é um dos três realizadores da série, que incluem também Janicza Bravo e Miguel Arteta, e alguns dos outros argumentistas também trabalham em The Good Place, que tem um tom bem mais abertamente cómico, mas é igualmente profunda. Além de Rudolph e Armisen, a série inclui também nomes como Catherine Keener, que é sempre uma presença bem-vinda seja em televisão — este ano também pode ser vista em Kidding, a série com Jim Carrey que ainda não tem estreia marcada entre nós — ou cinema. E, no sexto episódio, que é particularmente forte e tocante que foge do casal principal, Jason Mitchell, que foi Eazy-E em Straight Outta Compton, e Hong Chau, que foi nomeada este ano para um Globo de Ouro por Downsizing. Isto para não falar das caras que povoam o mundo refrescantemente diverso, de uma forma muito prática sem chamar a atenção para isso, criado por Yang e Hubbard.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha negro medo cantora
Somos todos Lodge 49, uma comédia que é um drama sobre a vida normal
Dívidas, surf e as cicatrizes da crise e carros a cair aos bocados. Quando se perde tudo mas não o riso, o que resta senão a vontade de pertencer a um clube, uma Maçonaria à irmãos Coen? Esta segunda-feira, no AMC, chega a resposta. (...)

Somos todos Lodge 49, uma comédia que é um drama sobre a vida normal
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.15
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dívidas, surf e as cicatrizes da crise e carros a cair aos bocados. Quando se perde tudo mas não o riso, o que resta senão a vontade de pertencer a um clube, uma Maçonaria à irmãos Coen? Esta segunda-feira, no AMC, chega a resposta.
TEXTO: Aquele momento em que uma pessoa chega a casa, serve um copo de vinho, deita mais vinho para o lava-loiças e depois lhe pega fogo: Lodge 49 é isto. Mas também é uma t-shirt desbotada, os cobradores a bater à porta, os dispensários de erva, um detector de metal na praia e carros a cair aos bocados. No último trecho do Verão vem uma dramedy – um drama que é também uma comédia, ou uma comédia dramática – e que não é sobre nada de especial. Ou seja, é sobre a vida normal, o heroísmo do dia-a-dia e a ânsia de pertencer a qualquer coisa quando se perdeu muita coisa. Como uma casa penhorada pela crise ou a cabeça com dívidas acumuladas. Quando se vê Lodge 49, que se estreia dia 10 às 22h50 no AMC, e seguindo a tendência que nos põe à procura de uma gaveta onde enfiar o que de novo nos chega e o que de velho nos lembra, lá vêm as referências: O Grande Lebowski e os seus preguiçosos encantadores, a crise de 2008 e os efeitos que tem até hoje na classe média e nos mais pobres, o tom despreocupado de safari pelas vidas americanas de High Maintenance, mas também um travo a filme indie e uma dose intencional de Thomas Pynchon (o autor, o estreante televisivo Jim Gavin, quis piscar o olho a O Leilão do Lote 49). “Não temos de viver assim. Tem de haver outra maneira”, diz a certa altura Wyatt Russell – que, diga-se num aparte tão necessário quanto desnecessário, é filho de Goldie Hawn e Kurt Russell – sob o cabelo loiro sujo de Dud, ou Sean Dudley, surfista fora de água. Ele é o centro da história e depois há a sua irmã gémea Liz (Sonya Cassidy), Ernie Fontaine (Brent Jennings) e outros adoráveis losers que orbitam em torno da sociedade “tipo Maçonaria” (mas numa versão irmãos Coen) que é a Ancient and Benevolent Order of the Lynx. Sem pai, sem dinheiro, sem casa e sem o pé para poder voltar ao surf, Dud só quer pertencer a qualquer coisa e é alegria apesar da tristeza. Esta é “a série mais estranha na TV”, diz a Vice, e “a série mais descontraída na TV para o bem e para o mal”, avisa o Uproxx. É também, vista do seu primeiro episódio, encantadora na sua indolência e tem a força nas suas personagens. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Jim Gavin escreveu um livro de sucesso e tentou escrever uma proposta de um episódio-piloto que servisse de amostra para os seus dotes e daí retirar um contrato futuro num trabalho de outrem. Paul Giamatti gostou tanto que levou o que viria a ser Lodge 49, a amostra que se tornou no pano todo, ao AMC. Adora a ideia de pertença a clubes e organizações, irmandades onde de repente se veste um manto e uma faixa e se é rei por um dia. E também sabe as dores de ver a casa de família penhorada depois da crise, e de lá ir “viver” depois de vazia. “Há qualquer coisa naqueles tempos, naquelas tardes vazias, no temor tisnado pelo sol, aquela sensação de um passado e de um futuro perdido… Acho que muitas pessoas sentiram isso naqueles anos, e ainda sentem”, diz Gavin sobre a crise de 2008 seus efeitos à Vice. “Uma catástrofe em câmara lenta. ”Na Lodge 49 não há Dunkin’ Donuts nem Hooters. Há a singela loja Donuts e o Shamroxx, um pub irlandês focado no físico das empregadas que é assumidamente “a terceira ou quarta cadeia de restaurantes mais popular da América”. O mediano é a norma, como na vida real em que nem todos são extraordinários e nem todas as séries são sobre zombies, professores que dão em traficantes ou raparigas que combatem monstros das profundezas. Na televisão em que tudo tem um truque, a série que o AMC transmite agora – nos EUA a série foi integralmente disponibilizada online e está a passar também semanalmente – faz o que lhe compete, fala muito de dinheiro e das consequências do que foi a recessão da última década, mas sem fazer dela a sua moeda. Para a frente haverá alquimia, embustes e sobretudo mais Dud, Liz e companhia. Gente entre corvos que não deixam dormir e betinhos que perguntam, ao comprar erva: “aceita bitcoin?”.
REFERÊNCIAS:
Quem ainda não trabalhou com o Netflix? Michael Douglas também já lá está
The Kominsky Method estreou-se na sexta-feira no Netflix, com Douglas e Alan Alda nos principais papéis — de velhos profissionais em Hollywood, terra da eterna juventude. (...)

Quem ainda não trabalhou com o Netflix? Michael Douglas também já lá está
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: The Kominsky Method estreou-se na sexta-feira no Netflix, com Douglas e Alan Alda nos principais papéis — de velhos profissionais em Hollywood, terra da eterna juventude.
TEXTO: Tal como a migração de actores e realizadores do cinema para a televisão já não apresenta grande novidade, a rota desses mesmos para a nova televisão, o Netflix e quejandos, também já não deveria sê-lo. Mas a verdade é que ainda se assinala, com maior ou menor surpresa e com maior ou menor impacto conforme o nome (uma Nicole Kidman na HBO não pesa tanto quanto um Sam Worthington no Netflix) quando Hollywood está atrás de mais uma porta do streaming. Desta vez, é Michael Douglas que está na soleira. Quando House of Cards se estreou no Netflix, pioneiro da produção original da empresa californiana, os 500 mil dólares que Kevin Spacey, o sr. Beleza Americana e Suspeitos do Costume, recebia por episódio eram notícia não só pela sua mera presença numa série de TV, e na TV pela Internet, mas pelos valores ao nível dos dos protagonistas da televisão em sinal aberto americana. Cinco anos, um escândalo de abuso sexual e um mundo de mudanças depois, não se pestaneja sequer com os salários de Reese Witherspoon, Jennifer Aniston ou Javier Bardem a rondar o milhão por episódio para as suas novas séries para a Apple e a Amazon, respectivamente. Os actores já nos ensinaram tudo sobre o seu mercado em constante expansão e Michael Douglas vem ensinar o seu método na sua nova série no Netflix. The Kominsky Method estreou-se sexta-feira no Netflix e nela Sandy Kominsky (Michael Douglas, com 74 anos) é um reputado e veterano actor que dá aulas de actuação a jovens esperançosos. A série, criada por Chuck Lorre (A Teoria do Big Bang ou, na sua estreia no Netflix, Disjointed), é tanto sobre as angústias, caricaturas e ironias da profissão de actor quanto sobre a velhice — e sobre a velhice no masculino. Os dois rostos da série são Douglas e o seu amigo e agente Norman Newlander, interpretado por Alan Arkin (84 anos), mas há brindes como as entradas de Danny DeVito ou Lisa Edelstein (que ocupa o lugar de filha de Norman), e sobretudo o prazer de ver a cidade de Los Angeles por outros olhos: com cataratas, ou alguma miopia, na terra dos shots de gérmen de trigo e das aulas de hot yoga. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A série sabe que não está a inventar nada de novo neste horizonte televisivo de onde se vê sempre o nascer de qualquer coisa. No tom de comédia, intromete-se a nostalgia e alguma amargura, mesmo sendo uma crítica já bastante batida sobre Hollywood. Como escreve o crítico da CNN Brian Lowry, e tal como Grace and Frankie (a comédia com Jane Fonda e Lilly Tomlin) ou Calma, Larry, a série distingue-se por ser “um olhar divertido sobre envelhecer não graciosamente, mas de má vontade”. São oito curtos episódios em que o rei das sitcom fala de próstatas, jovens insensíveis e amizade. A certa altura, Norm lembra: “Não sou o Tom Hanks. ” Mas o igualmente respeitado Alan Arkin é ele próprio, um dos chamarizes de The Kominsky Method e uma prova viva de como se sobrevive aos dentes vorazes de Hollywood, do cinema e das modas, plataformas e formas da televisão.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha sexual abuso
Faz sentido investir nos mass media para aumentar a atividade física?
As campanhas de mass media para a promoção da atividade física são consideradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) um dos melhores investimentos no contexto do combate às doenças crónicas não transmissíveis como a diabetes, as doenças cardiovasculares, ou a depressão. (...)

Faz sentido investir nos mass media para aumentar a atividade física?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: As campanhas de mass media para a promoção da atividade física são consideradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) um dos melhores investimentos no contexto do combate às doenças crónicas não transmissíveis como a diabetes, as doenças cardiovasculares, ou a depressão.
TEXTO: A publicidade na televisão, rádio, imprensa, outdoors (cartazes) implica um investimento considerável, correspondendo geralmente à maior fatia do orçamento global de uma campanha. Mas a utilização dos canais de comunicação em massa traz claras vantagens, tendo em conta que se tratam de meios com um grande impacto, cobertura e eficácia, resultando num custo por contacto muito baixo. Adicionalmente, campanhas de mass media bem desenhadas, com mensagens consistentes e implementadas com intensidade suficiente, durante períodos de tempo sustentados, podem contribuir para o aumento da literacia, influenciar atitudes e crenças e assim contribuir para a mudança de comportamentos, nomeadamente quando integradas num mais vasto “pacote” de iniciativas. A campanha “This Girl Can” (“Esta Rapariga Consegue”), do Reino Unido é claramente um dos melhores exemplos de como uma campanha de promoção da atividade física bem executada, e com recursos substanciais, traz resultados concretos (ver caixa). No Reino Unido, tal como na generalidade dos países, a participação no desporto e em outras atividades físicas evidencia disparidade de género. Em 2015, comparativamente aos homens, menos 2 milhões de mulheres, entre os 14 e os 40 anos, participaram em atividades físicas, apesar de afirmarem que queriam ser mais ativas. O “medo de ser julgada” foi identificado como a principal barreira à pratica de atividade física das mulheres naquele país. Julgamentos sobre a sua aparência a fazer exercício físico, a falta de habilidade para o desporto e o sentimento de culpa por retirar tempo à família para praticar atividade física alimentavam este sentimento e impediam o envolvimento destas mulheres nestes comportamentos. Combater a disparidade de género na atividade física, em particular em atividades mais intensas como em muitos dos desportos, é também combater o “medo de ser julgada”. Este foi o insight que levou a Sport England – uma das entidades responsáveis pelo desporto e atividade física no Reino Unido – a desenvolver uma campanha nacional para ajudar a ultrapassar a barreira que impede mulheres de todas as idades de serem mais ativas: o medo de serem julgadas. " This Girl Can" celebra mulheres ativas, independentemente do seu desempenho físico, da sua aparência ou de quão vermelhas ficam as suas bochechas quando fazem exercício físico. Os resultados absolutamente excecionais do envolvimento do público-alvo e da comunidade com a campanha (engagement) não deixam dúvidas sobre o sucesso ao nível da sua notoriedade e da perceção e identificação com as suas mensagens-chave, tendo sido premiada nacional e internacionalmente. Mas, mais importante, os efeitos que esta campanha teve na alteração do comportamento do público-alvo (ver caixa) contribuíram para a diminuição da disparidade de género na atividade física, o objetivo primordial da campanha. Não há uma receita mágica que garanta, à partida, o êxito de campanhas de promoção da saúde e da atividade física, e esta incerteza, aliada aos valores avultados de investimento necessários, é geralmente um problema para os decisores políticos. Apesar dos imponderáveis, a construção de campanhas de mass media eficazes não está, no entanto, na esfera das ciências ocultas. Há evidência científica que fornece bases muito concretas para a construção de campanhas com elevada validade e profissionais das áreas da comunicação, marketing e publicidade com a competência e experiência à altura deste tipo de desafios. Contrariamente às marcas comerciais, o setor público evidencia também uma desconfiança generalizada sobre o verdadeiro retorno do investimento em campanhas de mass media. Esta incerteza tem fundamento, tendo em conta que a maior parte das campanhas de promoção da saúde em Portugal não são adequadamente avaliadas. Um investimento público avultado deve ser acompanhado de uma avaliação completa, que considere todos os objetivos da campanha – reconhecimento e afinidade, atitudes e crenças, motivações e intenção. Em alguns casos, até a própria alteração de comportamentos, algo muito difícil de atingir. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foram precisamente os resultados consubstanciados da campanha “This Girl Can” que levaram o Reino Unido a investir, em 2017, numa nova fase da campanha, desta vez com um público-alvo mais alargado, focada nas mulheres com mais de 50 anos, mas com o mesmo espírito de empoderamento e o mesmo objetivo de diminuir a disparidade de género nesta área. O desenho de campanhas de promoção da atividade física requer mensagens consistentes e a sua comunicação sustentada durante muito tempo, apesar da relação causal com a melhoria da saúde da população poder demorar anos a ser demonstrado. Este é, por isso, outro desafio para os governos: trata-se de uma aposta no futuro da saúde da população, sem retorno político imediato. Resultado de uma colaboração entre o Programa Nacional para a Promoção da Atividade Física (PNPAF) da Direção-Geral da Saúde e o Instituto Português do Desporto e Juventude, será lançada, ainda em 2018 (com nova aplicação em 2019), a primeira grande campanha pública de promoção da atividade física em Portugal nos mass media. Em 2019, o seu impacto será divulgado e poderemos todos avaliar o retorno deste investimento. Fica uma dica: “Qual é a Sua Atividade Física?”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens comunidade medo género mulheres rapariga
O homem ao espelho
O homem vê-se ao espelho porque devemos fazer tudo na nossa vida como se estivéssemos sempre a ser observados, não devemos nunca envergonhar-nos do que fazemos. Olhamos para o espelho com orgulho porque, se agirmos sempre bem, ninguém tem nada a apontar-nos. (...)

O homem ao espelho
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O homem vê-se ao espelho porque devemos fazer tudo na nossa vida como se estivéssemos sempre a ser observados, não devemos nunca envergonhar-nos do que fazemos. Olhamos para o espelho com orgulho porque, se agirmos sempre bem, ninguém tem nada a apontar-nos.
TEXTO: Depois de um dia inteiro de praia, de mergulhos infinitos e brincadeiras sem fim, eles tinham alguma dificuldade em chegar a casa, sobretudo porque havia uma subida íngreme para fazer. De nada adiantava dizer que a mãe tinha feito aquela subida gravidíssima, duas vezes, da segunda a empurrar o carrinho do mais velho, em final de tempo. Ambos nasceram em Setembro. Não havia birras, mas havia corpinhos moles sem energia, que caminhavam num passo espapaçado pelo calor e pelo cansaço. Por isso, parávamos e tornávamos a parar e um caminho que se faria em cinco minutos, num passo enérgico, levava horas, com muitos intervalos pelo meio. A primeira paragem era antes mesmo de começar a subir. Frente a um mupi com uma fotografia de um homem, uma silhueta, a ver-se ao espelho e uma frase de Epicuro. “Faz tudo como se alguém te contemplasse. ” Ali ficávamos, com eles a juntar as letras e, de seguida, a fazer perguntas. “O que é ‘contemplasse’? O que é ‘Epicuro’? Por que é que o homem está a ver-se ao espelho?” Então, com jeitinho, puxávamo-los e começávamos a subir e a explicar que Epicuro era um filósofo grego. “O que é um filósofo?” É um homem que pensa sobre o mundo, sobre as coisas, das mais simples às mais complexas. Explicávamos como os gregos tinham sido importantes para a forma como vemos o mundo. A segunda paragem era à frente da escola primária. “O que é ‘contemplasse’?”, perguntavam já sentados num banco de pedra fria, debaixo da sombra dos pinheiros. É como se alguém nos olhasse durante muito tempo, nos observasse e pensasse coisas boas sobre nós. É alguém que pensa: “Quero mesmo ser como ele ou como ela!”, reforçávamos, dando uma entoação de admiração à frase. E ali ficávamos, uns minutinhos, à espera que ganhassem forças para a última etapa, chegar a casa. O cartaz, que seria da junta de freguesia ou da câmara, ficou anos largos no mesmo sítio, fazendo parte da nossa rotina do final de dia de praia. Parar, ler, perguntar, responder. A leitura foi ficando mais rápida e as perguntas mais elaboradas. “Por que está o homem ao espelho? Está a olhar para ele próprio e preocupado com o que os outros pensam dele?”O homem vê-se ao espelho porque devemos fazer tudo na nossa vida como se estivéssemos sempre a ser observados, não devemos nunca envergonhar-nos do que fazemos. Olhamos para o espelho com orgulho porque, se agirmos sempre bem, ninguém tem nada a apontar-nos. “Então, ele devia estar a dar um bom exemplo, a deitar lixo no caixote, qualquer coisa assim…”, dizia um deles, mais prático. “Sim, a ver-se ao espelho está só a mostrar que é vaidoso”, acrescentava o outro, derrubando a nossa tese de um homem bem consigo próprio, invejado pelos outros. O homem ao espelho permaneceu no seu lugar durante a adolescência deles. O caminho já se fazia connosco a ficar para trás e eles à frente, rápidos, a sentarem-se no banco de pedra à nossa espera — poucos minutos, bem entendido. “Contemplar também pode ser meditar? Não tem que ver com a nossa relação com Deus — nós contemplamo-Lo?” Sim, contemplar pode ser um sinónimo de meditar. Sim, tem que ver com a nossa admiração por Deus, pela Sua obra, pela natureza, pelos outros seres humanos. Nós contemplamos aquilo que Ele fez. E aqui podíamos entrar noutra discussão que se prolongaria depois dos banhos tomados, do peixe grelhado e da talhada de melão: Deus existe?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Com a popularidade que a vila piscatória ganhou, o nosso homem foi substituído por publicidade rotativa, em tudo igual à da cidade. Mas a frase continua a ecoar-lhes na cabeça. Há dias, comentávamos o caso Kavanaugh — o que disse Christine Blasey Ford perante o senado norte-americano. Como, 35 anos passados, os risos dos dois rapazes que a trancaram num quarto, bêbedos, continuavam a ecoar-lhe na cabeça. Discutimos a diferença como são tratados homens e mulheres. Eles têm desculpa, elas terão de viver com o trauma para sempre. Eles podem rir-se do que aconteceu. “Grab her by the pussy”, aconselhava Trump quando não sonhava ainda com a presidência (ou talvez já sonhasse). Elas vão recordar o riso para sempre. Elas vão ter de continuar a viver numa comunidade que desvaloriza aquilo por que passaram, que lhes diz que a vida dos homens vale mais do que a delas, digo. “Não é verdade!”, exclama o pai. De repente, deixamos de ser pais e filhos para sermos duas mulheres a debater com dois homens que se recusam a acreditar que não somos todos iguais, que nos acusam de desvalorizar se o caso fosse ao contrário, se um rapaz acusasse uma rapariga de assédio. A forma como vivemos não depende de sermos homens ou mulheres, mas de termos ou não valores, argumenta o nosso filho. “OK, devemos fazer sempre tudo como se alguém nos contemplasse”, conclui a nossa filha. Silêncio. É tempo de levantar a mesa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens filha escola humanos filho homem comunidade mulheres rapariga assédio
O relógio da Festa
Ao jantar, ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe que queria ajudar a construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!. (...)

O relógio da Festa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ao jantar, ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe que queria ajudar a construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!.
TEXTO: Com dez anos, naquele mês de Setembro, pensei que toda a população do mundo estava junto ao rio Tejo, em Lisboa. Nunca tinha visto e sentido tanta gente. Por vezes não se conseguia andar. Olhava para cima, na tentativa de alertar os adultos par o facto de estar ali. Sentia-me apertado. Quase esmagado. Aquela massa compacta de gente estava feliz. Invadiam todos os lugares da antiga FIL. Eram milhões de conversas, milhares de sorrisos, infinitos abraços. E no domingo à tarde o comício teve de vir para a rua. A grande nave era pequena de mais. Era a primeira edição da Festa do Avante!. Estávamos em 1976. Nunca se tinha visto nada igual. Foi a primeira vez que vi um palco gigante. Que vi músicos a sério. Sentia-me bem. A palavra que mais se ouvia era “camarada”. A segunda, “liberdade”. Tudo era novidade. Corredores de política. Corredores de comida. Corredores de música. Corredores de arte. Mas o espaço que ficou gravado na minha memória, porque passei lá imenso tempo, era o Espaço Internacional. Milhares de pessoas queriam ver o pavilhão da União Soviética, da RDA ou da Checoslováquia. Ali estavam os países socialistas e os partidos irmãos. Ali estava o imaginário. Os países socialistas ofereciam livros, cartazes, harmónicas, chapéus, palas para o sol, emblemas, balões, bandeiras e até relógios de bolso made in DDR. Algumas coisas consegui no meio de tantos braços esticados. Não me lembro o quê. Excepto o famoso relógio de bolso. Uma proeza. Uma prova de que a persistência dá frutos. Durante anos, o relógio de horas certas embelezou a minha mesa-de-cabeceira. Todos os dias lhe dava corda num ritual quase mecânico. Tinha orgulho naquele pequeno relógio de algibeira conseguido a pulso. Com o tempo o relógio perdeu importância. Parou um dia nas seis e seis. Foi depositado numa gaveta. Ao jantar, ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe que queria ir trabalhar. Não sei que idade tinha. Ficaram espantados. Tinha idade ainda para estudar. Era novo, muito novo. Disse-lhes que queria ajudar a construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!. De mochila às costas, apanhei o comboio e fui. Amigos iam para as vindimas ou para a paragem da Celulose. Ganhavam dinheiro. Eu optei por ir para a Festa. Voluntário. Gastar dinheiro aos meus pais. Foi um mês alucinante. Conheci tanta gente. Fiz tanta coisa. E depois naquele fim de tarde da sexta-feira mágica, os portões abriram-se e a maré humana invadiu tudo o que tínhamos construído. Ficou a sensação do dever cumprido. A sensação de que a persistência dá frutos. Antes de sair de casa, pedi ao meu pai para todos os dias dar corda ao relógio!Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foram anos seguidos a cumprir o meu voluntariado. A Festa ficou-me no sangue. Cresci a ver a Festa crescer. Preguei milhares de pregos. Coloquei tubos. Pintei murais. Reguei a relva. Recolhi o lixo. Desenhei letras. Serrei madeira. Dancei. Abracei. Beijei. Ali, naqueles metros quadrados a perder de vista, sentíamo-nos bem. Sentíamos paz. Dávamos sentido à vida. Éramos solidários. Éramos amigos. Ali, era outro mundo. Um mundo sonhado e desejado. Um mundo difícil de conseguir. Um mundo possível. Humanista. Era o electricista, o canalizador, o arquitecto, a costureira, o cozinheiro, o pintor, o artista, o técnico de som, o jardineiro, o médico, a enfermeira, o bombeiro, o reformado, o estudante. . . eram tantos e sempre tão poucos. Era tão gigante aquela tarefa colectiva. Ambiciosa. Construir uma cidade em três meses para durar três dias. A Festa começava com um esqueleto de tubos ao alto. Ia sendo construída, levantada do chão. Gostava de adivinhar as formas. Crescia todos os dias. E depois das paredes ao alto, artistas plásticos davam vida ao contraplacado castanho-claro. A Festa ganhava cor e mensagem. E quando as centenas de mastros se engalanavam com bandeiras de várias cores, a sexta-feira mágica aproximava-se. Eram três dias de sã loucura. Uma maravilha. Deixei de ajudar a construir a Festa no ano em que coloquei o relógio na gaveta. O rumo da vida assim o quis. Continuo a admirar o empenho e a dedicação que homens e mulheres entregam naquela quinta ajoelhada perante o Tejo. Lugar de liberdade. Lugar de cultura e saber. Lugar fraterno. O mundo necessita de muitos lugares assim. Nunca faltei à chamada. Nunca faltei a uma Festa. São já 42 edições. Existem amigos que só se abraçam uma vez no ano. É na Festa. Outros já partiram e ficaram no coração. A Festa do Avante! é um caldo de emoções. Ao fim do dia, a brisa combate o calor. Gosto de me sentar na relva e olhar para aquela cidade que cada vez está maior. Penso como é possível. De onde continua a vir tanta força para planear, organizar e dar vida a um dos maiores acontecimentos políticos da Europa. Não encontro uma resposta mas muitas respostas. A propósito desta crónica tirei o relógio da gaveta. Continuava nas seis horas e seis minutos. Dei corda e os ponteiros começaram no seu ritual como se o tempo não tivesse andado. Talvez o relógio made in DDR ainda não saiba que o Muro de Berlim caiu. Que perdeu a nacionalidade. Que agora é alemão unificado. Mas os ponteiros teimam em trabalhar. Numa luta por um tempo novo. O velho relógio alemão ainda não morreu.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens cultura mulheres
Travis Kalanick: conduzir por atalhos
O livro Visionários, do jornalista do PÚBLICO João Pedro Pereira, conta o percurso de alguns dos inovadores que marcaram a história das tecnologias de informação, desde a II Guerra Mundial até hoje. Chega às livrarias no dia 12 de Outubro. A apresentação está marcada para dia 30, na FNAC Chiado, em Lisboa, e será feita pelo presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira. (...)

Travis Kalanick: conduzir por atalhos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O livro Visionários, do jornalista do PÚBLICO João Pedro Pereira, conta o percurso de alguns dos inovadores que marcaram a história das tecnologias de informação, desde a II Guerra Mundial até hoje. Chega às livrarias no dia 12 de Outubro. A apresentação está marcada para dia 30, na FNAC Chiado, em Lisboa, e será feita pelo presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira.
TEXTO: Talvez aqueles minutos no banco de trás de um Uber tenham sido o tropeção final antes da queda. Travis Kalanick estava bem-disposto. Sentado no lugar do meio, conversava despreocupadamente com as duas mulheres que viajavam com ele. Às vezes, abanava-se ao som da música que saía do rádio do carro. No final da viagem, debruçou-se para apertar a mão ao condutor. E foi neste momento que a conversa começou. Virado para o banco de trás, Fawzi Kamel explicou ao fundador da Uber que era um motorista de longa data. No início, o tom até era amistoso, mas o diálogo azedou rapidamente. Kamel queixava-se de que os preços das viagens tinham caído, o que tornava mais difícil a vida dos motoristas. Isto, argumentava Kamel, era um problema sobretudo para aqueles que, como era o seu próprio caso, tinham investido em carros de gama alta que cumprissem os critérios necessários para fazer parte do serviço Uber Black – é a opção mais cara na aplicação e aquela que está mais próxima do conceito inicial de permitir que qualquer pessoa tenha um carro de luxo e um motorista à disposição. Kalanick ripostou que os serviços mais baratos e os cortes de preços eram necessários para fazer face à concorrência. “Parece fácil porque eu os derrotei. Mas se não tivesse feito as coisas que fiz, teríamos sido derrotados, garanto”, diz Kalanick a dada altura da discussão. Pouco depois, Kamel atira:— Mas as pessoas já não estão a confiar em si. Acha que as pessoas querem comprar mais carros? (. . . ) Eu perdi 97 mil dólares por sua causa. Estou falido por sua causa. Sim, sim, sim. Continua a mudar todos os dias. Muda todos os dias. — O quê? O quê? —? Kalanick estava agora claramente irritado. — Desce os preços. Fez isso. Começámos com 20 dólares. . . — Tretas. — Começámos com 20 dólares. Quanto é a milha agora? 2, 75?Kalanick perdeu as estribeiras. — Sabe que mais? Algumas pessoas não gostam de assumir responsabilidade pelas suas merdas. Põem a culpa de tudo o que lhes acontece na vida em cima dos outros. Boa sorte. — Saiu apressadamente do carro. Kamel ainda respondeu:— Boa sorte para si também. Sei que não vai chegar longe. É possível que Kalanick não soubesse que havia uma câmara ligada a captar toda a conversa. Ou, se sabia, mediu mal as consequências do episódio. Poucas semanas depois, a 28 de Fevereiro de 2017, Kalanick estava reunido com outros executivos numa sala de um hotel de São Francisco. O tema era delicado. A equipa queria dizer ao fundador e presidente executivo da Uber que a sua postura estava a tornar-se um problema. Por aquela altura, a reputação da empresa — bem como a de muitos dos seus responsáveis e de Kalanick em particular — já não era famosa. As queixas por parte do sector dos táxis, que acusavam a Uber de operar ilegalmente e de destruir os empregos, sucediam-se em vários países — e, em alguns, a Uber tinha mesmo sido impedida de operar. Os próprios motoristas que trabalhavam com a plataforma revoltavam-se pelas más condições laborais e a empresa era já amplamente vista como sinónimo de um trabalho precário e mal pago. No meio de tudo isto, as contas da empresa também não eram um cenário animador: os prejuízos em 2016 tinham sido de 2800 milhões de dólares, sem contar com as operações na China, onde a Uber tinha dificuldade em conquistar mercado. Mas os problemas não se ficavam por aqui. No início de 2017, uma antiga engenheira da Uber publicara online um relato das práticas de assédio de que fora vítima por parte do seu superior e da complacência mostrada pelo departamento de recursos humanos. Aquele texto foi um momento alto nas críticas a uma empresa que começava a ser conhecida pela cultura sexista e tolerante em relação a vários tipos de abusos internos, e também pelas práticas agressivas e legalmente duvidosas no que dizia respeito ao negócio. Em boa parte, isto era fomentado por Kalanick, que deixara de ter a imagem de um enfant terrible do mundo das startups tecnológicas e era agora visto como um gestor irresponsável que cultivava dentro da empresa um ambiente de residência universitária. A meio daquela reunião no hotel de São Francisco, uma executiva recebe um telefonema e, de seguida, pede a Kalanick para a acompanhar ao corredor. Um outro executivo juntou-se a eles. No ecrã de um computador portátil, Kalanick viu o desfecho inevitável: o vídeo da discussão com Kamel chegara à Internet. “Isto é mau. Eu sou péssimo”, terá reagido um Kalanick desalentado, segundo contou mais tarde um dos presentes. O desânimo não durou. Kalanick mostrou-se determinado a pôr em prática um plano para recuperar a reputação da empresa e a sua própria. No dia seguinte, escreveu um email aos funcionários, que a Uber divulgou publicamente. Pedia desculpas aos trabalhadores e a Kamel, e reconhecia que precisava de “mudar enquanto líder e de crescer”. Também começou à procura de um director de operações, um braço direito que o ajudasse a conduzir uma companhia que se espalhava por muitos países, com diferentes desafios de negócio e legais em muitos deles, e que se orgulhava de permanecer, apesar de tudo, com o espírito de uma startup. Naquele primeiro semestre de 2017, a Uber desdobrou-se em esforços para melhorar a sua imagem pública e para refazer a cultura interna. Contratou Eric Holder, o procurador-geral dos EUA durante os tempos de Barack Obama, para fazer uma análise aos meandros da empresa e sugerir melhorias (uma delas foi uma redefinição das responsabilidades de Kalanick). Depois de ter revisto 215 queixas relacionadas com assédio, bullying e discriminação, a Uber despediu duas dezenas de funcionários. Mas as tentativas de criar uma nova imagem afundavam-se perante os factos que iam surgindo. Um mês depois de o vídeo de Kamel ter sido publicado online, surgiu a notícia de que o presidente e outros funcionários tinham estado anos antes num bar de alterne em Seul, onde as mulheres apareciam numeradas para que os clientes as pudessem escolher. Kalanick estava acompanhado pela namorada da altura, que foi quem contou o episódio à imprensa. A situação requeria medidas drásticas. A 12 de Junho, Kalanick anunciou que ia tirar uma licença por tempo indeterminado. Continuaria a participar nas decisões estratégicas, mas deixava a gestão quotidiana para o resto da equipa de executivos. Aos problemas da Uber somava-se ainda uma tragédia pessoal: a mãe tinha morrido num acidente de barco, no qual o pai ficara gravemente ferido. Escreveu então uma mensagem aos funcionários, onde reconhecia que era preciso que tanto a empresa como ele próprio entrassem numa nova fase: “Se vamos trabalhar na Uber 2. 0, eu também preciso de trabalhar no Travis 2. 0, para me tornar o líder que esta companhia precisa e que vocês merecem. ” As coisas não correram como planeado. Dias mais tarde, Kalanick estava no luxuoso hotel Ritz-Carlton de Chicago, aonde tinha ido para entrevistar um candidato à vaga recente de director de operações, quando recebeu uma visita inesperada de dois representantes de investidores da Uber. Estes entregaram-lhe uma carta com o título “Move Uber Forward” (fazer a Uber avançar). Acusavam-no de má gestão e pediam-lhe que se demitisse do cargo. Os investidores que assinavam aquela carta tinham apenas uns 40% dos direitos de voto na empresa, o que significava que não tinham poder legal para afastar Kalanick. Mas tinha alguns trunfos para jogar: a ameaça de um processo judicial e a garantia de que, se optasse por sair, poderia apresentar a demissão nos seus próprios termos e tentar salvar a face. Kalanick passou as horas seguintes em telefonemas para aliados e advogados. No final, capitulou e assinou os papéis da rendição. Com 40 anos, e ao fim de oito anos conturbados, deixava a liderança de uma empresa que muitos viam como um gigante instável e desgovernado. Travis Kalanick nasceu a 6 de Agosto de 1976 e cresceu nos subúrbios de Los Angeles. Era bom aluno e competitivo, e teve desde cedo uma inclinação para o empreendedorismo. Aos 18 anos lançou a New Way Academy, um serviço destinado aos alunos que se queriam preparar para os exames de admissão à universidade. Entrou na Universidade da Califórnia para estudar informática e gestão, mas depressa desistiu do curso, para lançar, com vários colegas, o Scour, um serviço de partilha de ficheiros, que permitia aos utilizadores passarem uns aos outros ficheiros de música e filmes, de forma semelhante ao Napster. Em 2000, dois anos após ter sido lançada, a empresa foi acusada de violação de direitos de autor e processada numa quantia astronómica. A solução foi declarar falência, o que livrou Kalanick e os sócios de terem de responder em tribunal. Logo no ano seguinte, criou uma nova empresa, a Red Swoosh, que era essencialmente uma versão melhorada da anterior e dirigida ao mercado das empresas que quisessem disponibilizar conteúdos online. Mas a vida não era fácil. Com o negócio a correr mal, Kalanick tentou vários expedientes para manter as portas abertas. Morava em casa dos pais, esteve anos sem salário e, uma vez, decidiu não entregar o dinheiro do IRS dos funcionários, mesmo sabendo que era uma prática ilegal. Foi investigado pelas Finanças e o dinheiro acabou por ser foi devolvido. Em 2006, já em melhores condições financeiras, pegou nos funcionários e assentou arraiais na Tailândia durante umas semanas, para que não caíssem na rotina. Os esforços acabaram por compensar. Em 2007, a Akamai, uma empresa que vende serviços para armazenamento e distribuição de conteúdos online, comprou a Red Swoosh por cerca de 19 milhões de dólares. Não foi um negócio gigantesco, mas foi mais do que suficiente para livrar Kalanick dos problemas financeiros. A 30 de Dezembro de 2008, Kalanick publicou um texto no seu blogue (era um tempo em que as redes sociais ainda não tinham grande importância), no qual resumiu os tempos da Red Swoosh:“Em seis anos a gerir a Red Swoosh, estive mais de três sem salário. A necessidade ensinou-me a arte delicada do autofinanciamento. Sangue, suor e RAMEN [um caldo com massa e, por vezes, carne e legumes, que é muito popular no Japão] é o que gosto de lhe chamar. Estava sempre a pensar em como fazer as coisas de forma ultra-barata, hiper-eficiente, e ficar bem na fotografia. ”A ideia para o que viria a ser a Uber nasceu em 2009, pela mão do empresário canadiano Garrett Camp, que lançara anos antes um serviço de descoberta e recomendação de sites chamado StumbleUpon. Hoje, a Uber apregoa os seus benefícios enquanto complemento da rede de transportes das cidades e também se apresenta como parte da chamada “economia da partilha”. Trata-se de um conceito em que pessoas com recursos excedentes os disponibilizam temporariamente, através da Internet, a terceiros dispostos a pagar por isso. Estes recursos podem ser carros, casas ou lugares de garagem. Esta ideia de partilha é uma descrição benévola, e incorrecta, de muitos destes serviços. Como sabe qualquer pessoa que tenha usado o Airbnb, muitos alojamentos são negócios profissionais, muitas vezes geridos por empresas, e não um quarto vago na casa de um simpático anfitrião local. Também na Uber os motoristas tendem a ser profissionais, e não pessoas que dedicam umas horas a transportar outros no seu próprio carro, numa espécie de part-time. Estes conceitos permitem às equipas de relações públicas contar boas histórias em torno dos serviços da Uber. Mas a ideia original nada tinha a ver com o conceito de partilhar o carro próprio. O objectivo era resolver um problema muito concreto: os carros privados com motorista eram caros. Como em tantas outras coisas, a tecnologia poderia embaratecer o serviço. Bastava encontrar um meio de fazer com que o tempo dos motoristas fosse mais bem aproveitado, o que implicava dividi-lo da forma o mais eficiente possível entre vários clientes, em vez de ter alguém contratado para uma noite inteira e que, na verdade, só passaria umas horas a conduzir. Garrett Camp financiou ele próprio a ideia para o novo serviço, recrutou Kalanick como consultor e braço direito, e a UberCab começou a funcionar em 2010, em São Francisco. “Uber” é um prefixo usado para designar algo extraordinário e superior, e o nome foi escolhido para sublinhar as vantagens de usar o serviço em vez de um táxi convencional. Também por esta altura, Kalanick e a namorada (de quem entretanto se separou) compraram uma casa em São Francisco, onde organizavam frequentemente encontros com empreendedores e outras figuras do sector. A casa tinha uma conta no Twitter, com o nome JamPad e com a descrição “A igreja do capitalismo criativo”. Camp e Kalanick precisavam de alguém para assumir o cargo de presidente da UberCab. Depois dos anos na Red Swoosh, Kalanick disse que queria descansar da vida de gerir uma startup a tempo inteiro. Fez um apelo no Twitter a potenciais interessados e acabou por contratar Ryan Graves, então com 27 anos. Três meses depois, Kalanick mudou de ideias e decidiu assumir ele próprio a função. Graves foi despromovido para vice-presidente, mas teve um papel de relevo na empresa até sair, em 2017. Com Kalanick ao volante, a Uber — que foi proibida pelas autoridades de São Francisco de ter a palavra “cab” (táxi) no nome — foi crescendo. Primeiro, nos EUA, onde começou por se expandir para Nova Iorque e Chicago. Depois, no resto do mundo, com Paris a ser a primeira cidade não americana com o serviço disponível. Em Junho de 2012, chegou às estradas a concorrente Lyft. Logo no mês seguinte, a Uber lançou o Uber X, uma versão mais barata do serviço, com carros de gama mais baixa e preços que competiam com os dos táxis. Desde então, a plataforma desmultiplicou-se em serviços e funcionalidades, embora nem todas existam em todos os países. Há opções para partilhar o carro com outros em trajectos comuns e a possibilidade de chamar apenas carros eléctricos. O serviço UberEats faz entregas de comida ao domicílio. A empresa também começou a apostar nos carros autónomos e comprou a Otto, uma empresa de camiões criada por ex-funcionários do Google e que já são capazes de andar sozinhos em auto-estrada. Também está a desenvolver veículos voadores eléctricos e não tripulados (as primeiras versões terão um piloto), que poderão transportar pequenos grupos de pessoas. Os primeiros voos de demonstração estão agendados para 2020 e deverão ficar-se, nessa fase, por apenas duas cidades americanas: Dallas e Los Angeles, que é conhecida pelos problemas de trânsito. A Uber e Kalanick não se coibiram de seguir por alguns atalhos para ganhar vantagem sobre os táxis, sobre as outras plataformas semelhantes e, também, sobre as autoridades. Durante anos, a empresa usou secretamente uma ferramenta chamada greyball para iludir agentes de autoridades em vários países. Aquela ferramenta permitia identificar os telemóveis que seriam de agentes (nomeadamente, verificando se a localização coincidia com a das instalações das autoridades para as quais estes trabalhavam) e fazia com que a aplicação da Uber lhes mostrasse informação falsa. A empresa também usou uma técnica chamada fingerprinting, que lhe permitia continuar a identificar iPhones mesmo depois de a aplicação ter sido apagada. O objectivo era combater uma fraude na China, onde muitos condutores usavam iPhones para instalar a aplicação e criar contas falsas de utilizador, fazendo depois pedidos de carros. Como a Uber dava incentivos aos motoristas apenas por aceitarem um pedido, estes aceitavam os pedidos falsos e ganhavam dinheiro com isso. Porém, a prática violava as regras a que estão obrigadas as aplicações que são distribuídas pela loja da Apple. Por isso, a Uber usou técnicas de geolocalização e fez com que o código informático responsável por manter a identificação dos iPhones não fosse mostrado quando o software estava a ser examinado por técnicos que se encontrassem na sede da Apple. A trafulhice foi descoberta e valeu a Kalanick uma reunião pouco amistosa com o presidente da Apple, Tim Cook. A demissão de Kalanick na sequência do ultimato que os investidores fizeram no hotel de Chicago não correu como esperado. Em vez de uma saída digna, a imprensa rapidamente reuniu boa parte dos factos por trás da decisão e deu a conhecer o que afinal tinha acontecido: uma saída forçada por accionistas que temiam pelos seus investimentos e que não viam em Kalanick uma pessoa capaz de gerir a Uber. De fora, mas com uma importante posição accionista, o fundador ainda tentou influenciar os destinos da empresa e exerceu o seu direito de nomear dois membros do conselho de administração, no que foi visto como uma afronta pelos novos gestores da empresa. Foram publicadas notícias a dar conta de que, em privado, Kalanick planeava seguir o exemplo de Steve Jobs, que voltou à Apple depois de ter sido despedido para a salvar de uma situação difícil e acabou a transformá-la numa das importantes empresas tecnológicas deste século. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Março de 2018, contudo, Kalanick anunciou um fundo para investimentos no sector do imobiliário, do comércio electrónico e da inovação na Índia e na China. Nesse mesmo mês, investiu 150 milhões numa empresa chamada City Storage Systems, que recupera imobiliário para fins industriais e comerciais. Com uma posição maioritária na pequena startup de 15 pessoas, assumiu o cargo de presidente. Só com o passar dos anos se perceberá se aquelas notícias são verdadeiras e se Kalanick tem mesmo um grande plano para voltar aos comandos da Uber. Por agora, deixa como legado a criação de uma empresa que se tornou um gigante mundial e que transformou o conceito de mobilidade em muitas cidades. Mas que tem também um lado muito mais escuro, assente na procura da eficiência extrema que caracteriza muitos dos usos recentes das tecnologias de informação. O termo “uberização” é usado hoje para designar uma vaga de aplicações que permitem a qualquer pessoa invocar, com uns toques no ecrã, os préstimos de todo o tipo de biscateiros mal pagos. O maravilhoso mundo novo da tecnologia não é maravilhoso para todos.
REFERÊNCIAS:
A esquerda perde-se no seu labirinto. E o autoritarismo avança
E a esquerda mais progressista limita-se a reagir, tentando preservar o mínimo (estado social, emprego, educação, saúde), e abraçando questões identitárias, mas não criando uma base comum de luta aglutinadora. (...)

A esquerda perde-se no seu labirinto. E o autoritarismo avança
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: E a esquerda mais progressista limita-se a reagir, tentando preservar o mínimo (estado social, emprego, educação, saúde), e abraçando questões identitárias, mas não criando uma base comum de luta aglutinadora.
TEXTO: Ignorantes, incultos, fascistas. Estas foram algumas das designações que se leram por aí a mimosear os muitos brasileiros que votaram em Bolsonaro. Nos últimos anos com as lideranças autoritárias, musculadas e populistas a afirmarem-se em todo o mundo, de Trump a Orbán, tem sido sempre assim. Identificamos os sintomas. Alerta-se para os perigos. E quando a realidade se abate sobre nós culpabiliza-se quem aclamou estas figuras. A reactividade não serve. É preciso mais. A começar pela autocrítica à esquerda. Assumir que, em parte, o que se vislumbra hoje é também responsabilidade sua. A direita moderada tem respondido ao estado de emergência permanente em que vivemos na última década continuando a acreditar no crescimento económico infindável, na especulação e na auto-regulação dos mercados — ou seja, mais do mesmo do que nos trouxe até aqui. Mas a esquerda também não tem sabido encontrar ideias alternativas de futuro, suficientemente mobilizadoras e universalistas. E eis que esse vazio tem vindo a ser preenchido por despotismos, nacionalismos ou euroceptismo. Ninguém hoje pensará em revoluções no sentido clássico, não se trata disso, mas era preciso uma via alternativa, que não fosse o capitalismo liberal que cada vez mais, apesar das metamorfoses, vai dando mostras de desagregação (não sou eu que o digo, são perigosos revolucionários como Bill Gates, Elon Musk ou Mark Zuckerberg, apelidados agora de forma chique de “pós-capitalistas”). E muito menos esse caldeirão de capitalismo global e autoritarismo local, onde hoje parece caber tudo, dos EUA à Rússia, da China à Turquia, da Hungria a países da Ásia, não olhando a credos, culturas ou ideologias, cerceando democracias, liberdades, direitos humanos e tentações de igualdade. Perante isto, a esquerda progressista não escapa à tentação de classificar como fascista qualquer indução autoritária, simplificando os termos, banalizando-os, sem que exista uma análise sobre os motivos que levam uma parte considerável dos cidadãos a desconfiar dos processos políticos dominantes — abraçando sim, em alguns casos, novas formas de fascismo. Poder-se-ia pensar que perante tantos conflitos (crise ambiental, económica, migratória, precarização, exclusão, corrupção, xenofobia) esta seria a hora de serem forjadas novas políticas coerentes, mas nada. Não só a esquerda não o soube fazer, como parece ter perdido o contacto com fatias da população, zangadas, descrentes, precarizadas. Já não são apenas os velhos pobres. São também novos pobres, actividades outrora estabelecidas, agora vítimas da ineficaz redistribuição da riqueza, e outras porções populacionais não carenciadas, mas ressentidas e não inscritas. Questões complexas. E ninguém parece interessado em enfrentá-las. A direita musculada limita-se a propor o regresso a um passado mitificado. E a esquerda mais progressista limita-se a reagir, tentando preservar o mínimo (Estado social, emprego, educação, saúde) e abraçando questões identitárias, mas não criando uma base comum de luta aglutinadora. Não se trata de minorar o que tem vindo a ser conseguido em termos de modelos relacionais, por exemplo, entre mulheres e homens, e outras lutas identitárias, mas de perceber que, apesar da justeza destas, e de se insistir na sua vertente interseccional ou na reactividade das hegemonias, que a igualdade de oportunidades passa também por questionar os modelos capitalistas de produção mais perversos. Era preciso que a fixação nas identidades não nos desligasse das questões alheias aos diversos grupos de referência e que essa miríade de lutas convergisse para algo maior, que revelasse as questões comuns que atravessam o nosso tempo. E não se sente que esse denominador tenha sido encontrado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Fala-se com um adepto de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro e percebe-se que não se revêem necessariamente nos insultos sexuais ou raciais, mas gostam de sentir que os mesmos desafiam elites políticas ou culturais. O que é também demonstrativo de como a esquerda tem tido mais dificuldades de adaptação ao novo ecossistema comunicacional. Claro que é mais fácil vivenciá-lo de forma negativa, impondo o medo, ou transformando questões políticas em morais. Mas nitidamente a esquerda ainda não foi capaz de se adaptar a um mundo digital onde a interpretação da vida social já não é realizada apenas por uma elite para uma massa de outros. Essa relação hierárquica foi-se. Trump percebe-o e Bolsonaro beneficiou do mesmo. No seu caso, nem a linguagem, tal como a conhecemos, existe propriamente. O que se vislumbra são apenas gestos de força. Já não se trata de falar verdade. Apenas de sentir que se pertence ao grupo que grita mais alto. Muitos desses eleitores não acreditam propriamente no que lhes é dito. Só querem chegar às urnas e mostrar que são anti-sistema. Claro que não ajuda a explicar tudo. Longe disso. Mas não é por acaso que figuras como Bolsonaro ou Trump, mesmo nas falhas, ou precisamente nas insuficiências, são desculpadas. Quem o faz não os desculpa apenas a eles, mas também a si próprio. É essa a lógica da representatividade. Muita gente preferia não ter de lidar com essa realidade. Mas ela está aí. E a única forma de bater Trump ou Bolsonaro é olhar para os seus eleitores, tentar compreendê-los e perceber que nem todos são aquilo que achamos que são. Alguns fazem parte do grupo que apenas pensa nos seus privilégios. Mas outros estão apenas tão perdidos como nós. Sentem-se despeitados ou falhados. Mas a esquerda também tem falhado na ausência de alternativas. Injuriá-los não leva a lado nenhum. São eles que dão destaque a personagens terríficas como Trump ou Bolsonaro quando vão às urnas. Mas são também eles que lhes podem tirar o tapete.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Um Voldemort em cada esquina
Se juntarmos o mundo dos meus amigos de esquerda ao mundo dos meus amigos de direita, o mundo com que ficamos nas mãos é ainda mais deprimente do que a soma das partes. (...)

Um Voldemort em cada esquina
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se juntarmos o mundo dos meus amigos de esquerda ao mundo dos meus amigos de direita, o mundo com que ficamos nas mãos é ainda mais deprimente do que a soma das partes.
TEXTO: Não quero mais ouvir falar teu nome, cantava a diva Cláudia Barroso num sucesso da música brasileira gravado em 1972. Vou fazer tudo para poder te esquecer. Na voz quente e doce da rainha da música romântica popular naquele Brasil de 70 e 80, era a dor da saudade que escorregava pelas palavras abaixo. Não era o desprezo, o medo ou a repugnância que levavam Cláudia Barroso a não dizer um nome – de certa forma, era precisamente o contrário de tudo isso. Mas o que está na base de uma decisão radical como aquela – a de nunca mais dizer um nome – é só uma, seja ela motivada pelo amor ou pelo desprezo. É, para todos os efeitos, o mesmo que atirar um problema para trás das costas e fingir que ele não existe. Foi nesse lugar, lá onde se tentam enterrar os problemas que se fingem de mortos, que encontrei nas últimas semanas alguns dos meus amigos de esquerda – mais precisamente desde que o candidato que rima com Naro começou a ganhar embalagem para vencer as eleições no Brasil. Dizem os meus amigos de esquerda que o candidato que rima com Naro não deve ser tratado pelo nome, porque defende ideias desprezíveis e repugnantes. O fenómeno não é novo e está a transformar a política internacional numa espécie de mundo mágico, com um Aquele Cujo Nome Não Deve Ser Pronunciado em cada esquina. Aconteceu em 2016, com aquele candidato que rima com Rump e que ninguém esperava ver na Casa Branca depois das eleições presidenciais em que a favorita era Hillary Clinton. Durante a campanha que desembocou nessas eleições, o esforço de Barack Obama para não dizer o nome do candidato que rima com Rump era tão evidente que a jornalista Gwen Ifill sentiu que era preciso questioná-lo sobre isso. A resposta do então Presidente norte-americano foi muito parecida à que recebi dos meus amigos de esquerda sobre a decisão de não dizerem o nome do candidato que rima com Naro: “Parece que ele está a fazer um bom trabalho a dizer o seu próprio nome. Por isso, vou deixar que seja ele a fazer a sua própria publicidade. ”Mais tarde, quando o candidato que rima com Rump já se preparava para tomar posse como Presidente dos EUA, a Igreja de Todos os Santos de Pasadena, na Califórnia, tomou uma decisão que por certo agradaria aos meus amigos de esquerda: os fiéis iriam continuar a rezar pelo homem que ocupa o cargo de Presidente, mas não iriam pronunciar o nome do Presidente que rima com Rump. Para piorar a situação, alguns dos meus amigos de direita também decidiram mudar-se para o mundo mágico de Harry Potter, embora para uma zona muito distante, que isto hoje em dia não está para misturas nem que tenhamos andado todos a apanhar caricas do chão e a partir janelas com a bola quando tínhamos dez anos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dizem estes amigos de direita que a subida da popularidade do candidato que rima com Rump e do candidato que rima com Naro são proporcionais ao radicalismo das manifestações contra eles. É uma variação daquela velha máxima aplaudida nas áreas mais deprimentes da publicidade – falem mal, mas falem de mim. Ora, o problema é que se juntarmos o mundo dos meus amigos de esquerda ao mundo dos meus amigos de direita, o mundo com que ficamos nas mãos é ainda mais deprimente do que a soma das partes. Falar sobre os defensores de ideologias extremistas sem dizer os seus nomes e sem protestar contra eles como se a democracia estivesse em causa não é uma estratégia de campanha em países livres – é a única estratégia possível quando os países deixam de ser livres.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Ex-advogado de Trump declara-se culpado de mentir ao Congresso
Michael Cohen está a colaborar com a equipa do procurador especial Robert Mueller, que investiga as suspeitas de conluio entre a campanha de Donald Trump e a Rússia. (...)

Ex-advogado de Trump declara-se culpado de mentir ao Congresso
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.25
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Michael Cohen está a colaborar com a equipa do procurador especial Robert Mueller, que investiga as suspeitas de conluio entre a campanha de Donald Trump e a Rússia.
TEXTO: O advogado norte-americano Michael Cohen, que foi durante vários anos um dos mais próximos e leais colaboradores de Donald Trump, declarou-se culpado de mentir ao Congresso sobre as negociações de um projecto imobiliário em Moscovo. Esta declaração, que acontece de forma inesperada para o grande público, é mais um sinal de que as investigações do procurador Robert Mueller estão a chegar à fase final. Cohen apareceu esta quinta-feira num tribunal em Manhattan para admitir que prestou falsas declarações às comissões de inquérito do Senado e da Câmara dos Representantes que investigam as suspeitas de interferência da Rússia nas eleições presidenciais de 2016 nos EUA. Esta declaração de culpa surge depois de meses em que Cohen foi colaborando com os investigadores da equipa de Robert Mueller, de forma não oficial (até esta quinta-feira não se conhecia qualquer acordo entre as duas partes), em troca de uma possível recomendação de redução de pena assim que for conhecida a totalidade da acusação. O advogado foi acusado em Agosto noutro processo, em Nova Iorque, mas esta é a primeira vez que é acusado formalmente pela equipa do procurador Robert Mueller. Para além das investigações no Congresso sobre a Rússia, as suspeitas estão também a ser investigadas pelo FBI e pelo Departamento de Justiça, sob as ordens do procurador especial Robert Mueller. Em cartas enviadas no ano passado às comissões do Congresso, o advogado admitiu que esteve envolvido em negociações para a possível construção de um projecto imobiliário em Moscovo, em Setembro de 2015, em representação da empresa de Donald Trump, mas disse que esse processo parou em Janeiro de 2016, antes de Trump ter sido nomeado candidato do Partido Republicano à Casa Branca. Agora, a acusação diz ter provas de que essas negociações prolongaram-se, pelo menos, até Junho de 2016. "Em finais de Janeiro de 2016, eu determinei que a proposta não era exequível por uma variedade de questões empresariais e que não deveria continuar. Com base na minha determinação, a empresa abandonou a proposta", disse Cohen nas cartas enviadas ao Congresso no ano passado, citadas nos documentos entregues pela equipa do procurador Mueller ao tribunal de Manhattan, publicados esta quinta-feira no blogue Lawfare. Nas mesmas cartas ao Congresso, Michael Cohen disse que nunca discutiu a proposta imobiliária com o "Indivíduo 1" (Donald Trump), nem com ninguém da sua família. Para além disso, a equipa de Robert Mueller acusa Michael Cohen de mentir quando disse ao Congresso que nunca aceitou viajar até à Rússia para discutir o projecto, nem tentou convencer o "Indivíduo 1" a fazer a mesma viagem, com a mesma finalidade. Por fim, Cohen declarou-se culpado de mentir ao Congresso quando disse que não se lembrava de mais nenhuma resposta do Governo russo sobre esse projecto a partir de Janeiro de 2016. Para a acusação, essas declarações de Cohen são falsas e tinham como objectivo passar a mensagem de que qualquer possível envolvimento de Trump no negócio limitou-se a um período anterior à sua campanha eleitoral, pelo que cairia fora do mandato do procurador Mueller. No tribunal, Cohen disse que prestou declarações falsas ao Congresso "para ser consistente com a mensagem política do Indivíduo 1 e para ser leal ao Indivíduo 1". Em Setembro de 2015 (quando o projecto imobiliário em Moscovo começou a ser discutido, segundo disse Cohen ao Congresso), Trump tinha apenas participado num debate na televisão entre os pré-candidatos do Partido Republicano; e em Janeiro de 2016 os mesmos pré-candidatos preparavam-se para a primeira votação nas eleições primárias, no estado do Iowa. Só no Verão, em Julho de 2016, Trump viria a ser nomeado candidato oficial do Partido Republicano. Nesse Verão de 2016, Trump negou que tivesse qualquer interesse imobiliário na Rússia – uma declaração que voltaria a repetir em 2017 no Twitter: "Não conheço Putin, não tenho negócios na Rússia, e os meus inimigos estão a perder a cabeça. No entanto, Obama pode fazer um negócio com o Irão, o n. º1 no terrorismo, sem problemas!"Mas a equipa do procurador Mueller afirma que as discussões com vista à aprovação do projecto pelo Governo russo continuaram muito depois de Janeiro de 2016, e que Michael Cohen informou o "Indivíduo 1" e a sua família sobre as negociações. Para além disso, o advogado admite agora, perante o tribunal, que aceitou viajar até Moscovo e que "tomou medidas para garantir uma possível viagem do Indivíduo 1 à Rússia". Michael Cohen admite agora que se recorda de telefonemas e trocas de email em finais de Janeiro de 2016 com o Governo russo sobre o projecto em causa, tendo recebido uma resposta "do gabinete do secretário de imprensa do Presidente da Rússia". "O potencial significado da colaboração de Cohen é imenso" para o Presidente Trump, disse à ABC News Kendall Coffey, antigo procurador da Florida. "Não se pode saber se essa colaboração vai levar a acusações criminais, mas para a maioria dos empresários com negócios complexos, o facto de os seus advogados pessoais serem a principal testemunha é o pior pesadelo possível. "Em declarações nos jardins da Casa Branca, esta quinta-feira, o Presidente Trump disse que o seu antigo advogado pessoal "está a ser uma pessoa fraca e está a tentar garantir uma sentença reduzida mentindo sobre um projecto que era do conhecimento de toda a gente". Trump disse ainda que não aceitou a proposta de negócio em Moscovo. Na mesma declaração nos jardins da Casa Branca, o Presidente norte-americano disse que as declarações de Cohen não põem em causa a sua Presidência: "Mesmo que ele tivesse razão, isso não importa porque eu podia fazer tudo o que quisesse durante a campanha. ""Quando eu me candidato a Presidente, isso não significa que não posso continuar a fazer negócios. Havia uma forte hipótese de eu não ser eleito, e nesse caso teria voltado à minha empresa. Não havia razões para perder essas oportunidades", disse o Presidente dos EUA. Em Agosto, Michael Cohen deu-se como culpado de fraude fiscal e bancária nos seus negócios pessoais, e de violação das leis de financiamento de campanha num processo em que é acusado de pagar o silêncio de duas mulheres que dizem ter mantido relações amorosas com Donald Trump (a acusação diz que esses pagamentos foram, na prática, financiamentos de campanha porque tinham como objectivo melhorar as hipóteses de Trump de vencer as eleições, e as contribuições individuais estão limitadas a menos de três mil dólares). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O actual Presidente disse que só soube desses pagamentos depois de eles terem sido feitos, e por iniciativa de Cohen, mas o advogado disse em tribunal que agiu sob as ordens de Trump. A sentença de Cohen no processo de fraude fiscal e bancária e financiamento ilegal de campanha vai ser anunciada no dia 12 de Dezembro. O antigo advogado de Trump espera beneficiar de uma redução da pena por ter colaborado com os procuradores do processo em causa, mas também com a equipa do procurador especial Robert Mueller.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA