Celeste Rodrigues, uma bênção do fado
Ver e ouvir Celeste Rodrigues é olhar o presente de uma mulher que veio ao mundo para cantar e a cantar continua, com serenidade e lucidez. (...)

Celeste Rodrigues, uma bênção do fado
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20180807050534/https://www.publico.pt/n1829399
SUMÁRIO: Ver e ouvir Celeste Rodrigues é olhar o presente de uma mulher que veio ao mundo para cantar e a cantar continua, com serenidade e lucidez.
TEXTO: Não foi há muito tempo e já foi há muito tempo. A poucos dias do Natal de 2010, na noite de 21 de Dezembro, Celeste Rodrigues subia ao palco do São Luiz para celebrar com amigos os seus 65 anos de carreira no canto e no fado. Não foi um sinal de adeus, pelo contrário. Nesse mesmo ano já andava ela envolvida noutras experiências musicais, integrando, ao lado de Tim, Vitorino, Rui Veloso e Mário Laginha, o grupo Companheiros de Aventura. E assim continuou, sem deixar de cantar e sem nunca deixar o fado. Até hoje. Sempre com uma sobriedade e um bom gosto assinaláveis, sem espalhafato e por amor à arte, como se comprova pelas suas participações em concertos alheios, como convidada, ou nas noites das casas de fados. Pois esta sexta-feira volta a ser protagonista de um concerto numa sala lisboeta, o Tivoli BBVA (às 21h30), para mais “uma reunião de amigos, na plateia e no palco” – são palavras dela num encontro com a imprensa, em Abril, citadas por Maria João Caetano no Diário de Notícias. Mas não se julgue que é por falsa modéstia que Celeste Rodrigues relativiza o que nela parece ser único; não apenas a longevidade no activo (73 anos de carreira aos 95 de idade, marco que nenhum outro fadista atingiu) como a forma de estar, isto num meio propício ao surgimento de novas estrelas ou vedetas. Em 2014, numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, no PÚBLICO, disse Celeste: “Fujo às entrevistas. Fujo. Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar. ” Teria isso a ver com o sucesso da irmã, Amália? Resposta: “Não. Ela também não ligava muito ao sucesso. Há pessoas que com um sucessozinho já se acham o máximo. Ela não. Manteve-se humilde, a gostar de coisas simples. Do seu carapau de escabeche. ” E aqui Amália e Celeste, três anos mais nova do que a idolatrada irmã (que morreu em 1999), encontram uma clara afinidade: a preservação dos respectivos universos pessoais para lá da ribalta. Na citada entrevista, Anabela Mota Ribeiro pergunta-lhe se ela era muito tímida. “Ainda sou. No palco, fecho os olhos e pronto. Não quero luz na cara. ” Como se o mundo cá fora não existisse, nota a entrevistadora. “Não existe. Fechar os olhos é realmente uma maneira de estar connosco. ”Mas na vida Celeste Rodrigues mantém os olhos bem abertos. Quando a massacram com o nome de Madonna, irrita-se. Maria João Caetano dá disso nota, no texto do DN: “Parece que estou a fazer propaganda de mim própria e eu não gosto disso, nunca precisei disso, não preciso de nenhuma fama, eu gosto de cantar e é isso que quero, cantar. Ela foi simpática em gostar da minha voz e é só isso. ” Quando Madonna nasceu, em 1958, já Celeste cantava há muito: em 1945 foi com Amália cantar para o Brasil e em 1951 iniciou-se como cantora profissional em Lisboa, no Casablanca, ao Parque Mayer. E quando Madonna a conheceu em Lisboa, já Celeste ia com frequência aos Estados Unidos, por lá viverem as suas filhas. Voltando à entrevista no PÚBLICO: “Fiz um programa para o Ed Sullivan, cantei na televisão em Providence. Cantava nos liceus americanos. Fiz tournée na Califórnia, Massachusetts, Canadá. Telefonavam: ‘Venha’, e eu ia. ” Nessa entrevista, formulava um desejo: “Nunca pensei chegar aos 91 anos. Espero chegar aos 100, já agora. E assim. Em pé, a poder falar, andar, a poder pensar, entender. ” A vida tem-lhe feito a vontade, pois ainda faz tudo isso com desenvoltura. Cantar, na sua idade, é uma bênção. Uma bênção do fado. Vê-la e ouvi-la, hoje (e este concerto a isso apela, a um encontro com o seu fado), é tudo menos rememorar um passado. É olhar o presente de uma mulher que veio ao mundo para cantar e a cantar continua, com serenidade e lucidez.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher cantora
No Norte têm tudo
Os nortenhos são honestos, sinceros, directos, bem humorados e generosos. Não se importam de ser desconcertantes. Dizem o que lhes vai na alma e incitam-nos a fazer como eles, a sermos livres. (...)

No Norte têm tudo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os nortenhos são honestos, sinceros, directos, bem humorados e generosos. Não se importam de ser desconcertantes. Dizem o que lhes vai na alma e incitam-nos a fazer como eles, a sermos livres.
TEXTO: Vai-se ao Norte e vem-se de lá com a alma lavada e os olhos a brilhar de tanta coisa bonita que lá têm. A Maria João nunca tinha ido a Braga, a Guimarães e ao Gerês e desatava a chorar cada vez que era surpreendida por uma beleza. Chorei quando vi o rio Minho do alto do Gerês e chorei quando vi dezenas de famílias em lautas merendas com geleiras gigantes, garrafões de vinho, pessoas a dormir com a cabeça em cima da mesa, crianças a brincar, homens a cantar, mulheres a falar alto, a fazer-nos rir. Foi a sensação de inocência que se desprendia daquela gente, a certeza que não sabiam o que aí vinha: a massificação do turismo, a expulsão dos pobres, a destruição da simplicidade, disfarçada pela falsidade do cute e do typical para consumo de ignorantes apressados que usam o Instagram para validar o encontro deles próprios com as várias pseudo-culturas pelas quais passam ao de leve. No Norte são as pessoas do Norte que nos endireitam. Quando comecei uma longa descrição do vinho que eu queria o empregado exasperou-se: "já está a complicar muito, porra! Fique-se com esta garrafa e não me fale mais de vinho". Escusado será dizer que era um vinho verde magnífico, sem indicação do ano de colheita, sem a maldição da madeira e sem desvario alcoólico. Tinha 11 graus e um bocadinho de açúcar residual. Custou 9 euros. Os nortenhos são honestos, sinceros, directos, bem humorados e generosos. Não se importam de ser desconcertantes. Dizem o que lhes vai na alma e incitam-nos a fazer como eles, a sermos livres.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens consumo mulheres
Verdade desportiva. Ah! Ah! Ah!
O futebol é uma das máfias nacionais, aquela que mais às claras actua, até por sentimento de impunidade, que duvido, mesmo que estes processos consigam contrariar. (...)

Verdade desportiva. Ah! Ah! Ah!
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: O futebol é uma das máfias nacionais, aquela que mais às claras actua, até por sentimento de impunidade, que duvido, mesmo que estes processos consigam contrariar.
TEXTO: O interessante e pouco surpreendente exercício de contenção de danos que sucessões de adeptos do Benfica, célebres, consagrados, eminentes juristas, e homens que só eles sabem quem são, fazem, com a cumplicidade activa da comunicação social reduzida a esta miséria, tem como objectivo dizer que, se houve ilegalidades, elas foram de um homem ou dois e não atingem o clube, nem essa coisa contraditória nos seus termos, chamada a “verdade desportiva”. Isto porque uma das sanções previstas, em absoluta teoria e em absoluta impossibilidade prática, inclui a proibição do clube jogar por uns meses e anos, ou ser despromovido para uma divisão inferior. A tese é que nenhum jogo foi ganho ou perdido, a célebre “verdade desportiva”, por causa de uma malfeitoria de espionagem ilegal ao sistema judicial e a várias bases de dados públicas, para obter informações sobre processos judiciais e dados sobre árbitros. A questão é muito simples: na história da corrupção em Portugal há quatro componentes, três de cima, e uma de baixo. Completam-se como peças de um jogo, neste caso o jogo do nosso atávico atraso nacional. Nacional, português, nosso, que todos nós pagamos para alguns receberem. As três de cima são as dos grandes: a corrupção na política, nos negócios e no futebol, profundamente interligadas. A de baixo, é a pequena corrupção do dia-a-dia, que os portugueses praticam como quem respira e que, entre outras coisas, gera o pano de fundo para toda a corrupção, nem que seja pela fragilíssima condenação de ilegalidades quando são parecidas com as que os de baixo praticam. São tudo valentões contra a corrupção, no café e nas caixas de comentários e Facebooks, mas depois, como se vê no futebol, fecham os olhos tão forte que até dói. O futebol é uma das máfias nacionais, aquela que mais às claras actua, até por sentimento de impunidade, que duvido, mesmo que estes processos consigam contrariar. Todos os componentes das máfias estão lá: associação de criminosos e comunidade à volta do crime consentido, se for a favor do “nosso” clube. A máfia em Itália e nos EUA também é assim, e parte o seu sucesso tem a ver com a parte comunitária: defesa da Sicília mais pobre, defesa da comunidade italiana nos EUA, protecção dos “seus”, definição de territórios, etc. . No futebol encontramos também a “emoção” da comunidade dos adeptos, do “Porto é uma nação”, ou “o Benfica é Portugal”, e no Sporting também deve haver uma variante, etc. E, por detrás disto um grupo de gente amoral, oportunista, conhecedora de todos os esquemas, vive e enriquece por conta do clube, protegendo-se por uma omertà que só é violada quando há competição pelo bolo, dando em troca aos adeptos “vitórias”. Estão todos sentados em cima de pilhas de dinheiro. Em qualquer empresa, os valores que circulam à volta da compra e venda de jogadores e treinadores no mundo igualmente mafioso dos “agentes”, seria notícia, aqui é trivial, aqui é a normalidade. Ninguém verdadeiramente se pergunta de onde vem e para onde vão estes milhões. Nem sequer aqueles que espumam quando sabem de algum alto salário nas empresas ou pequeno e médio no estado, dizem nada com os valores astronómicos que são pagos. Este dinheiro que circula por baixo da mesa, por offshores, e que dá origem em alguns países a processos de fraude e evasão fiscal, em que quase todos os jogadores e treinadores estão envolvidos, permite depois os cartões dourados, as despesas de tudo, desde os charutos à lingerie para prendas, os empregos para mulheres, primos e filhos, os carros, as mordomias, que tornam apetecível qualquer lugar no topo ou na base dos clubes de futebol. Depois, como na máfia, há a circulação de promiscuidades entre o futebol, a política e os negócios. Nem vale a pena falar muito, porque está tudo à vista e não é pago nem por bilhetes de futebol, nem lugares VIP, nem camisolas. É uma troca de favores, que vale milhões em isenções fiscais, em fiscalidade “favorável” em autorizações para urbanizações e construções, tudo. E a tudo isto deve-se acrescentar o papel, como na máfia, de vários Consiglieri e Fixers, entre a melhor advocacia portuguesa e uma extensa rede de cumplicidades e favores na comunicação social. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E, por fim, last but not the least, os exércitos para a guerra, a violência, a defesa do território, as vinganças, e para pôr na ordem adversários e traidores, — as claques. Claques pagas com merchandising e tráfico de droga e cujos disciplinados soldados atacaram os jogadores do Sporting, e “puseram” na ordem, com algumas sovas até com mortes, ainda por esclarecer, no Porto, quem se lhes opunha ou no mundo dos negócios obscuros que controlam, da segurança à “noite”. Ai não sabem! Sabem, sabem, todos, dirigentes desportivos, jogadores, treinadores, polícias e ladrões. Voltando à “verdade desportiva”, esse caso típico de um oximorón dialéctico, para os irritar com a intelectualidade. Então os homens queriam saber coisas sobre os árbitros, queriam saber coisas sobre as investigações sobre o clube, para quê? Para fortalecer o clube, permitir-lhe vantagens competitivas, fazer chantagem e corromper os árbitros, evitar sarilhos e garantir impunidade, e em linhas gerais aumentar o poder e o dinheiro disponível, inclusive para comprar e pagar melhores jogadores. E isso não tem nada a ver com o “relvado”? Com os jogos? Com as “vitórias”?Eles acham que nós somos parvos e temos medo. Nem todos.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Quando a palavra está em vez das imagens
Claude Lanzmann fez da sua obra uma asserção com um sentido prescritivo, que daria origem a uma grande polémica: do Holocausto, não há imagens. E se as há estão do lado da ficção e do fetichismo, isto é, do lado da "mentira" hollywoodesca. (...)

Quando a palavra está em vez das imagens
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20180801040724/https://www.publico.pt/n1837035
SUMÁRIO: Claude Lanzmann fez da sua obra uma asserção com um sentido prescritivo, que daria origem a uma grande polémica: do Holocausto, não há imagens. E se as há estão do lado da ficção e do fetichismo, isto é, do lado da "mentira" hollywoodesca.
TEXTO: Para a maior parte de nós, Claude Lanzmann (1925-2018) era o autor desse “objecto do século” (como foi nomeado por um dos seus mais exaltados exegetas e defensores), o filme Shoah, de 1985, esse “monumento” para o qual o realizador trabalhou durante 12 anos e fez 350 horas de filmagens, que resultaram em nove horas e meia de filme, inteiramente preenchidas com as palavras de testemunho de sobreviventes dos campos nazis. Nele, a palavra dos protagonistas é tudo, já que Claude Lanzmann fez do seu filme uma asserção com um sentido prescritivo, que daria origem a uma grande polémica: do Holocausto, não há imagens. Daí, a decisão ético-ideológica de não fazer uso de nenhum arquivo. Com esse filme, tornou-se um severo guardião da lei da interdição das imagens, que defendeu com fervor dogmático: não havendo imagens do Holocausto, não há representação, não pode haver ficção nem aquilo que na tragédia grega se chama catarse. O percurso intelectual e artístico de Claude Lanzmann não começou com este filme, nem sequer com o cinema. O seu primeiro filme, Pourquoi Israël?, é de 1973. Esta ligação a Israel foi uma descoberta importante na sua vida: muito embora tivesse nascido numa família de origem judaica, não teve na sua infância nenhuma educação religiosa e cultural do judaísmo. Antes do cinema, foi um jornalista de grandes reportagens, como aquela que fez em 1958, durante uma viagem à Coreia do Norte. Nessa altura, ainda vivia com Simone de Beauvoir, uma relação que durou sete anos, de 1952 a 1959. Foi, aliás, o único homem com quem Beauvoir coabitou. Ainda jovem, quando frequentava o liceu em Clermont-Ferrand, Lanzmann tinha tido um papel de primeiro plano na Resistência e integrado a Juventude Comunista. Depois estudou Filosofia, na Sorbonne, E foi condiscípulo de Deleuze, em Paris, no Liceu Louis-le-Grand (e seu amigo muito próximo, mais tarde). Quando conheceu Beauvoir, integrou a revista Les Temps Modernes, que esta tinha fundado com Sartre em 1945. Pela morte de Beauvoir, em 1986, tornou-se o director da revista. O seu último filme saiu este ano e chama-se Les quatre soeurs. Mais uma vez, é um filme-testemunho, de quatro mulheres sobreviventes de Auschwitz, retirado do material que filmara para fazer Shoah. Mas Lanzmann foi também um escritor. O seu livro de memórias, Le Lièvre de Patagonie (2009), escrito com alguma relutância e por insistência dos amigos, é de pleno direito uma obra literária, original e de grande fôlego. E nele desfilam figuras importantes da história intelectual da França da segunda metade do século XX. Na sua biografia mais recente, há um acontecimento trágico, ao qual deu projecção pública, nas páginas de um número da Les Temps Modernes: o filho, Félix Lanzmann, morreu em Janeiro de 2017, com 23 anos, vítima de um cancro. Claude Lanzmann foi um homem polémico, vigoroso, comprometido com o seu tempo e, muito especialmente, com a memória do Holocausto. Shoah é um filme que reclama do espectador um “espanto” que é aquele por onde também a filosofia começa. Numa entrevista aos Cahiers du Cinéma em 1985, Claude Lanzmann explicou assim o princípio que está na base do seu filme: "Comecei precisamente pela impossibilidade de contar esta história. O princípio do filme era, por um lado, o desaparecimento dos rastos: não ficou nada, e era necessário fazer um filme a partir desse nada. Por outro lado, a impossibilidade, para os próprios sobreviventes, de contar esta história, a impossibilidade de falar, a dificuldade – que se vê ao longo do filme – de dar à luz a coisa e a impossibilidade de a nomear: o seu carácter inomeável". Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Lanzmann inaugurava assim um discurso sobre o seu filme que deduz dele uma estética negativa e faz apelo às especulações da teologia negativa. Irrepresentável, inimaginável, invisível, infigurável, impensável, intransmissível: eis as fórmulas usadas com frequência, e que estão na base dos debates e das polémicas em torno do filme. Shoah, que Lanzmann definiu como "uma obra visual da coisa mais irrepresentável", é um filme constituído por um coro imenso de vozes, sem recurso a imagens de arquivo, a documentos da época. Esta escolha formal encontra no discurso de Lanzmann sobre o seu filme uma razão que serviu muitas vezes para enunciar o seu princípio da invisibilidade do genocídio. A questão polémica em torno de Shoah é o facto de a sua estética ter sido muitas vezes reivindicada como uma moral e como uma regra: as imagens de arquivo não nos dizem nada da "verdade". Ou, nas palavras de Lanzmann: "Sempre disse que as imagens de arquivo são imagens sem imaginação. " O arquivo, diz ele, só comunica informações, não afecta a emoção nem a memória. Ora, o seu filme não foi feito para comunicar informações, o que está na sua base é o princípio de que qualquer imagem seria incapaz de dizer a verdade do Holocausto e é por isso que ele filma incansavelmente a palavra dos testemunhos. Reside aqui o núcleo de uma enorme polémica em que Lanzmann se viu envolvido (por exemplo, com o historiador de arte e filósofo Georges Didi-Huberman). Mas também em torno do filme de Spielberg, A Lista de Schindler, quando Lanzmann o acusou de pretender reconstruir Auschwitz e de ter feito um filme “obsceno”. Numa entrevista ao Le Monde, afirmou: "Spielberg escolheu reconstruir. Ora, reconstruir é, de certa maneira, fabricar arquivos. E se eu tivesse encontrado um filme existente (. . . ) rodado por um SS e mostrando como três mil judeus, homens, mulheres, crianças, morriam juntos, asfixiados numa câmara de gás do crematório II de Auschwitz, não só não o teria mostrado, tê-lo-ia destruído". Percebemos a lógica destas palavras se tivermos em conta que no filme de Lanzmann, Shoah, perpassa o discurso do irrepresentável ou do interdito da representação, de tal modo que, nele, como observou Jacques Rancière em texto incluído no volume L'Art et la Mémoire des Camps, "o que há a representar não são os carrascos e as vítimas, é o processo de uma dupla supressão: a supressão dos judeus e a supressão dos rastos da sua supressão". Para Lanzmann, as imagens de arquivo têm o valor de prova documental, mas, falhas de imaginação, nada dizem da "verdade". O que suscitou uma crítica violenta de Didi-Huberman, para quem a questão não está no facto de Lanzmann ter optado exclusivamente por dar a palavra aos sobreviventes do Holocausto, mas no facto de deduzir que não há, absolutamente, imagens da Shoah e que qualquer imagem de arquivo está do lado da ficção e do fetichismo, isto é, do lado da "mentira" hollywoodesca, onde se encontra A Lista de Schindler. No filme de Lanzmann não há de facto imagens de execuções sumárias, nem corpos desmantelados e amontoados como meros pedaços de carne. O que há é a palavra das testemunhas, numa elaboração em que Claude Lanzmann revela pela primeira vez o seu génio filosófico.
REFERÊNCIAS:
Religiões Judaísmo
O Serviço Nacional de Saúde foi o "melhor poema" de António Arnaut
O homem que vai ficar para a história como o "pai" do Serviço Nacional de Saúde, o militante número quatro do PS, António Arnaut, morreu esta segunda-feira no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, aos 82 anos. O Presidente da República decretou um dia de luto nacional. (...)

O Serviço Nacional de Saúde foi o "melhor poema" de António Arnaut
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2018-08-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O homem que vai ficar para a história como o "pai" do Serviço Nacional de Saúde, o militante número quatro do PS, António Arnaut, morreu esta segunda-feira no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, aos 82 anos. O Presidente da República decretou um dia de luto nacional.
TEXTO: Foi enquanto ministro dos Assuntos Sociais do II Governo Constitucional (PS/CDS, liderado por Mário Soares) que António Arnaut assinou o despacho que deu origem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) há quase quatro décadas. Por isso será sempre lembrado como o “pai” do SNS. E ele tinha grande orgulho no título. “O SNS é o meu melhor poema", costumava dizer o advogado de Coimbra que, com três dezenas de livros publicados ao longo da vida, desde poesia a ficção e ensaio, ironizava com o facto de a sua faceta como escritor ser pouco conhecida, porque, “talvez por uma certa reserva camponesa”, não frequentava “as grandes feiras da moda”. Nascido numa família de pequenos proprietários rurais na Cumeeira, em Penela (Coimbra), a 28 de Janeiro de 1936, António Duarte Arnaut sempre destacou o outro momento alto da sua vida - a fundação do Partido Socialista -, “por ter sentido até às lágrimas” que “estava a participar na história do futuro”. Filiado na Acção Socialista Portuguesa desde 1966, o então ainda jovem advogado participou no congresso fundador do PS na Alemanha, em 1973. Depois da revolução de Abril, foi deputado da Assembleia Constituinte. Em 1978, convidam-no para ministro dos Assuntos Sociais, e é nesse cargo que assina, sem avisar os restantes ministros, o despacho que daria origem à lei que criou o SNS, universal e gratuito, em Setembro de 1979. "Foi uma decisão monumental. Apanhei-me ministro sem querer, tinha a caneta na mão e escrevi aquele despacho”, citam os jornalistas Luís Godinho e Ana Luísa Delgado na obra António Arnaut – Biografia. Mas a política partidária cedo o desiludiu: em 1983, o militante número quatro do PS – e que é, desde 2016, presidente honorário do partido - decidiu, desalentado, regressar a Coimbra e à advocacia. “Deixei a política activa por ter sentido, dolorosamente, que o contorcionismo e a flexibilidade de carácter eram a cartilha dominante”, explicaria num texto autobiográfico publicado há quatro anos. Nunca abandonou, porém, a intervenção cívica. Ainda no final do ano passado, na véspera de lançar em livro a proposta de criação de uma nova lei de bases da Saúde, em conjunto com o médico e ex-líder do Bloco de Esquerda João Semedo, insistia que o SNS era a “grande causa” da sua vida. “Eu estou vivo graças ao SNS. De outra forma não teria tido dinheiro para fazer tantas análises, tantos tratamentos quando estive doente. E, seja como for, entre o SNS e o PS, estou pelo SNS”, declarou então ao PÚBLICO. Foi justamente num dos maiores hospitais públicos do país, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde chegou a estar em lista de espera para ser operado às cataratas e onde era acompanhado há vários anos devido a doença prolongada, que morreu ao final da manhã desta segunda-feira. O Presidente da República decretou um dia de luto nacional e suspendeu a sua agenda desta terça-feira. O "filho de sapateiro" que dizia não se conformar "com as pequenas injustiças", apesar de aceitar as grandes "porque são inevitáveis", fez-se "ministro da nação, escritor e advogado", lembrou a Câmara de Penela no voto de pesar pela sua morte. E foi moldado pelos "tempos ásperos" da sua infância que acabou por se tornar numa referência na luta pelo direito à saúde. O combate por uma nova lei de bases da Saúde foi justamente a última grande causa do advogado, que nunca se conformou com a alteração da legislação fundadora do SNS em 1990 e "os golpes" que se seguiram. Com o livro Salvar o SNS, em que propõe o fim das parcerias público-privadas e das taxas moderadoras, empenhou-se em lançar uma ampla mobilização cívica em defesa do serviço público. Porque o SNS, justificou, “enfrenta uma crise profunda”. Já muito doente, a sua última mensagem pública acabaria por ser ainda em defesa do SNS. Num texto enviado na passada sexta-feira aos participantes do III Congresso da Fundação Para a Saúde - SNS, voltava a apelar: "É preciso reconduzir o SNS à sua matriz constitucional e humanista”. Graças a este esforço, a Lei 48/90 está num processo de revisão. Foi depois de ter sido questionado no Parlamento sobre esta iniciativa que o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, anunciou a criação de uma comissão para apresentar uma proposta de revisão, que está agora a ser estudada. “Obrigado” foi, sintomaticamente, a palavra que esta segunda-feira se repetiu até à exaustão nas notas e votos de pesar enviados à imprensa e multiplicados nas redes sociais. Sublinhando que Arnaut foi muito mais do que o “pai” do SNS, João Semedo enfatizou no Facebook que ele "foi um insubmisso e permanente lutador pela liberdade, pela igualdade e pela justiça social". E o ex-director-geral da Saúde, Francisco George, recordando embora que o co-fundador do PS foi responsável por colocar "Portugal no topo [na Saúde] a nível internacional”, fez questão de destacar a sua capacidade de "tomada de decisão inabalável". "Ia para a frente, não recuava, não estava sujeito a pressões, a interesses. "Era um “cidadão impoluto”, sintetizou o Presidente da República que recentemente o condecorou com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e esta segunda-feira lembrou a forma como Arnaut sempere foi “sensível à justiça e à solidariedade”. O país perdeu "uma grande referência da causa pública" que "nos legou algo que é precioso", reagiu o primeiro-ministro António Costa. “Perdemos um democrata da cabeça aos pés", rematou António Campos, que conheceu Arnaut quando este ainda era estudante na Faculdade de Direito em Coimbra, no início dos anos 60, e organizou com ele reuniões clandestinas para a fundação do PS e para as eleições de 1969 pela oposição democrática. Ele definia-se como "homem do povo", “cidadão, advogado, escritor e político". Logo bem cedo, na infância, ganhou o gosto pelas letras, que ficou a dever ao avô materno, que lhe leu muitos livros em pequeno. Aos 13 anos, com o dinheiro da semanada, já assinava o jornal República. Também cedo, em Coimbra, ainda no quinto ano de Direito, casou-se com a mulher que não perdia de vista desde menina. Levou capa e batina para evitar comprar um fato, que era caro, e fez “um figurão”, como contou ao Jornal de Letras em 2008. Envolvido na oposição ao Estado Novo desde jovem, participou na comissão distrital de Coimbra da candidatura presidencial de Humberto Delgado. E, em 1958, até conseguiu a façanha de pôr Delgado a ganhar na Cumeeira: “Os envelopes com os votos eram de cores diferentes, mas eu arranjei uns quase iguais aos do Tomaz [Américo Tomás], andei de casa em casa a explicar às pessoas como deveriam entregar o voto já dobrado”. Saiu-lhe cara a ousadia. Foi recrutado para o serviço militar e enviado para Angola onde, na zona de combate, em Nambuangongo, acabaria por perder a fé (tinha sido um dos subscritores da carta dos católicos a Salazar, o que lhe valeu passar a ter ficha na PIDE). Desde então "agnóstico cristão" assumido, acabaria por entrar para a maçonaria mais de uma década depois. Foi o fundador do PS Fernando Vale que o convidou, em 1972, mas Arnaut seria iniciado só depois da revolução de Abril. Mais tarde, entre 2002 e 2005, foi Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano (GOL) e só não continuou porque não quis. "Foi e será sempre um exemplo para todos os maçons" para quem "permanecerá como fonte inspiradora", acentuou esta terça-feira o GOL. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois da atribulada queda do II Governo Constitucional (cinco dias depois de ter assinado o despacho que lançaria as bases do SNS, o CDS desfez a coligação com o PS e provocou uma crise institucional), António Arnaut abandona a política partidária. Tinha então 47 anos, deixara o escritório de advogado há sete, e, no regresso, sem clientes e três filhos ainda a estudar, com o ordenado de professora primária da mulher a assegurar a sobrevivência da família, vê-se obrigado a “vender umas territas”. Contará mais tarde que o único que o ajudou, nesses tempos difíceis, foi Mário Soares. Miguel Torga, seu velho amigo, convenceu-o a relatar as suas desditas e desilusões em livro. Demoraria anos a fazê-lo, em forma de ficção, no romance Rio de Sombras (publicado em 2007), que abarca o período de 1968 a 1988. Ao longo da vida, nunca escreveu as suas memórias mas assinou três dezenas de obras que, lidas em conjunto, poderão funcionar como tal. Foi ele que o sugeriu: "É nos meus livros que me assumo e resumo. Por isso, quem me quiser conhecer melhor terá de me ler. "O corpo do presidente honorário do PS está desde as 18h30 desta segunda-feira na antiga igreja do Convento de S. Francisco em Coimbra e de onde sairá, às 16h30 de terça-feira, para o crematório da Figueira da Foz.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
Quem é Kathryn Mayorga, a mulher que acusa Ronaldo de violação?
“O que pensará Deus do que fizeste?”, é uma das perguntas que faz a Ronaldo numa carta revelada pela revista Der Spiegel. (...)

Quem é Kathryn Mayorga, a mulher que acusa Ronaldo de violação?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: “O que pensará Deus do que fizeste?”, é uma das perguntas que faz a Ronaldo numa carta revelada pela revista Der Spiegel.
TEXTO: A revista Der Spiegel descreve Kathryn Mayorga, norte-americana residente em Las Vegas, 34 anos, como “delgada, cabelo escuro e olhos verdes”. Durante a entrevista, que aceitou dar acompanhada pelos pais e pelo terapeuta, contou que se demitiu recentemente do seu trabalho como professora de educação física numa escola primária porque precisa “de todas as suas forças” para lidar com este caso e com a exposição mediática a que a denúncia apresentada a vai submeter. A entrevista terá sido interrompida por mais de uma vez, para dar a Kathryn a possibilidade de se acalmar. Coube à mãe, Cheryl Mayorga, nesses intervalos, descrever o pesadelo em que diz que a filha vive depois de alegadamente ter sido violada pelo “Deus do futebol”. “A sua imagem está em todo lado, enquanto ela tem dias em que nem se consegue levantar da cama”, sublinhou a progenitora, dizendo-se a “100% com a filha”. Enquanto cresceu, com o pai, a mãe e um irmão, Kathryn chegou a jogar futebol. Contou que a escola lhe foi difícil porque sofre de défice de atenção e tinha dificuldades de aprendizagem. Disse que é por causa disso que, ainda hoje, se põe a falar muito depressa. Ainda assim, conseguiu licenciar-se em jornalismo na Universidade do Nevada. Depois de se ter licenciado, em 2008, casou-se com o namorado, um albanês que conciliava o seu trabalho como barman com a reparação de computadores. Cerca de um ano depois, porém, o casal separou-se e Mayorga voltou para casa dos pais, num dos melhores bairros de Las Vegas, com piscina e vistas sobre a cidade. Kathryn contou que atravessava um bom período quando terá sido violada, em Junho de 2009. “Trabalhava todos os dias, comia comida vegetariana e fazia muita coisa como modelo. ” Uma das suas funções, tinha então 25 anos, seria frequentar bares para ajudar a atrair clientela. “Por causa disso, tentaram descredibilizar-me. Tentaram dizer ‘Bem, o emprego que tens não é um emprego de uma rapariga decente”. Mais tarde, e porque nunca terá tido hipótese de se confrontar com Cristiano Ronaldo durante a mediação, ter-lhe-á escrito uma carta de seis páginas que a Der Spiegel diz que é difícil de ler. “Tu atacaste-me por detrás. Com um rosário branco ao pescoço! O que pensará Deus do que fizeste?!”, terá escrito, acrescentando que nunca lhe interessou o dinheiro mas que se fizesse justiça. À revista, alegou ainda que teve de abandonar o seu trabalho como modelo porque não conseguia sequer aproximar-se do hotel onde fora violentada. Tê-la-ão assaltado pensamentos suicidas. Contou que, durante o primeiro ano, bebia todos os dias. Mesmo quando viajava, custava-lhe esbarrar com o rosto do jogador nas t-shirts das crianças. Ao fim de cinco anos, terá começado a sentir-se melhor, muito por causa do seu trabalho como professora de educação física. Mas nunca voltou a ser feliz. “Vou-me abaixo. Culpo-o por me ter violado e culpo-me por ter assinado aquela coisa [o acordo]”, declarou.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha escola educação rapariga
Maria Filomena Mónica: “Não sou capaz de estar feliz mais de cinco minutos”
“Assim como luto contra o cancro, acho que é preciso lutar contra o vazio e o cinismo em relação aos sistemas políticos ocidentais”, diz Maria Filomena Mónica, 75 anos, recusando-se a baixar os braços, sobretudo intelectualmente. Escreve e isso diz que a salva. Publicou dois livros este ano, acabou outro. Procura o que fazer a seguir. Tem um cancro, mas afirma que não é uma tragédia. E fala disso e de tudo. “Não tenho interditos nem tabus” (...)

Maria Filomena Mónica: “Não sou capaz de estar feliz mais de cinco minutos”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.350
DATA: 2018-09-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Assim como luto contra o cancro, acho que é preciso lutar contra o vazio e o cinismo em relação aos sistemas políticos ocidentais”, diz Maria Filomena Mónica, 75 anos, recusando-se a baixar os braços, sobretudo intelectualmente. Escreve e isso diz que a salva. Publicou dois livros este ano, acabou outro. Procura o que fazer a seguir. Tem um cancro, mas afirma que não é uma tragédia. E fala disso e de tudo. “Não tenho interditos nem tabus”
TEXTO: Uma mulher está sentada nas escadas de um pátio interior em Lisboa. É um sítio de árvores e plantas com pátios à volta. Um rés-do-chão com o céu lá muito em cima. Da varanda, vê-se pouco mais do que o cabelo grisalho, quase branco, que mexe com a ligeira brisa do início de tarde. Está na sombra do corrimão, o sol aparece finalmente e ela posa para a máquina, obediente aos pedidos do fotógrafo. Quando ele lhe pede para atravessar o pátio, ela hesita. “Não sei se sabe, mas estou doente e qualquer coisa me constipa. Talvez tenha de ir buscar qualquer coisa lá acima. ” Arrisca. Está entre a sebe. Teme estar hirta, tensa. Descontrai-se. Maria Filomena Mónica, 75 anos, socióloga, escritora, autora de mais de 36 livros entre ensaio, memória, biografia ou crónica, em que se destacam as biografias de Eça de Queirós ou Fontes Pereira de Melo, as memórias Bilhete de Identidade e, mais recentemente, os volumes Ricos e Pobres (Esfera dos Livros) além das crónicas Nunca Dancei num Coreto (Relógio d’Água), fala de política, da casa, das netas, do trabalho, da doença, de ser de esquerda. “Pergunte o que quiser que eu respondo. ” O mote é o que anda a escrever e o que a quase fez parar de escrever. E isso é mesmo quase tudo, porque implica vida e morte. Coisas que lhe dão cinco minutos de felicidade, o máximo de que é capaz. No meio disso percebe-se que não há o mínimo problema em deixar que o instinto comande a conversa. É que na mesa da sala de estar há um livro que faz esquecer qual era mesmo a primeira pergunta: a edição americana de The Plot Against America, de Philip Roth. Está a ler este livro pela primeira vez? Estou. Gosto do Philip Roth. Como estava neste intervalo entre ter acabado Os Ricos e pensar no que fazer a seguir, precisava de ler um romance que me tirasse a cabeça das neuras. Pedi um conselho a uma amiga e ela disse-me para ler este e não explicou mais nada. O livro chegou hoje. Li até à página 14. Bastou para ver porque é que a minha amiga o aconselhou, pelos paralelismos com o Trump. Ver como num país com tradições democráticas pode surgir alguém que seja antijudeu que pode transformar a América num país horrível. Mas houve um livro dele que me comoveu muito, Patrimony, sobre o pai. Eu estive bastante deprimida durante a doença da minha mãe. Li o Patrimony a meio da doença, e não é que fosse catártico, mas compreendi o que ele estava a sentir em relação à doença do pai. Na crónica que dá título a este seu livro, escrita após receber a notícia da sua doença, conta que a primeira palavra que disse foi “não”. Porque acha que essa palavra a define? Há pessoas que me dizem: “Se calhar inventaste!” Quando eu era bebé, a minha mãe tomava notas. Fui a primeira filha, e para os outros filhos ela não fez isso, mas eu tinha um livro do bebé onde ela conta coisas sobre como eu me estava a comportar Foi lá que li “esta miúda não regula bem da cabeça. A primeira palavra que disse foi ‘não’”. Na opinião dela, eu não regulei bem da cabeça até aos dois, três anos. Mas está lá, acho que define um bocado a minha personalidade. Sou muito adversarial. Mesmo em conversas que são supostas ser doces ou amáveis ou com amigos, tendo sempre a desviar para outro terreno, em que contesto. Os consensos aborrecem-na. Aborrecem-me. Isto liga-se com aquilo que estou a pensar escrever, sobre o facto de eu ser portuguesa, o que é que isso significa para mim. Nunca tinha pensado escrever sobre isso. Entrei em 61 na Faculdade de Letras, num clima muito machista. Os meus amigos eram o Vasco Pulido Valente e o José Medeiros Ferreira, e o Zé foi o único que teve a ousadia de falar comigo. Eu era rapariga e eles criavam distância. Provavelmente, eu tinha um ar de não pertencer àquele habitat, porque andava muito bem vestida — a minha mãe dava imensa importância às roupas —, os meus pais não queriam que eu fosse para a faculdade. Quando lá cheguei, senti-me muito isolada. E depois era bonita. Na altura não era míope e passava a vida a chatear o meu pai para me comprar uns óculos para ter um ar mais velho. Fiquei muito desencantada com a faculdade, e esta costela oposicionista estava lá desde os dois anos. A seguir ao 25 de Abril achei que tinha chegado o paraíso a Portugal. Eu já estava em Oxford há dois anos e vim cá em Janeiro de 74 para fazer investigação na Biblioteca Nacional [BN]. A Revolta dos Capitães apanhou-me na BN a recolher elementos para a tese de doutoramento e vieram cá uns amigos meus estrangeiros e acharam que eu tinha um temperamento muito adequado para ir para o Parlamento. Diz noutra crónica que gosta de discussão. Isso. E diziam: “Mas tens de ir para um partido da oposição, porque não tens feitio para um partido de poder. ”Nunca levou isso a sério? Pensei para aí durante uma semana, mas foi na altura em que estava a tentar, com alguns colegas, fazer um sindicato dos professores, e percebi duas ou três coisas: não tenho jeito para a militância, não suporto reuniões e estava na faculdade em reunião contínua no conselho directivo, num lugar de topo, porque eu era a primeira doutorada e Portugal — ia ser, estava quase a acabar o doutoramento — em Sociologia. O Salazar tinha proibido a disciplina convencido de que era uma disciplina de esquerda. Percebi que o que me interessava era mesmo estudar e saber. Acabei por nunca me filiar num partido. Mas há um impulso para desobedecer. Há. Se há uma ordem, eu desobedeço. O António [Barreto] diz que eu nunca começo uma conversa normal sem dizer não. E esse “não” aparece na crónica sobre a doença. À doença não posso dizer que não, infelizmente. Mas tanto quanto possível, não quero viver a partir da doença. Sim senhora, tenho um cancro, não me importo de falar disso, é um cancro relativamente raro e incurável. O que não quis desde o início foi ficar na cama a reflectir sobre a desgraça. Foi uma decisão instintiva. Não foi coisa que passasse pela minha razão. Tenho 75 anos, na altura tinha 71. Não era trágico. Se eu tivesse 17 anos seria trágico. Já tinha uma vida. Acho que nem chorei. E como a única coisa que não queria era perder a razão e ter Alzheimer, como a minha mãe, o médico ficou muito espantado e disse: “Ah, você é tão fria! Nunca vi ninguém reagir assim a um diagnóstico. ” Respondi: “Sim, sim, senhor doutor”; com o médico tenho uma grande distância e cerimónia, porque percebo que ser oncologista é difícil; eles não se podem aproximar demais dos doentes. Tenho muita familiaridade é com a enfermeira que me trata. Mas depois fiquei um bocado abatida, especialmente nos primeiros quatro meses a quimio era muito forte, e era semanal; a maçada de lá estar cinco ou seis horas a injectarem-me veneno não era agradável, mas não me quis deixar ir abaixo. O trabalho continuou. Acho que o trabalho me salvou. Mesmo agora não posso ficar muito tempo sem começar a escrever, senão não saio da cama. Chama “sismo” à doença. Foi um abalo telúrico na minha vida [risos]. E foi por acaso. Não tinha sintomas, não tinha um tumor, nada, fui ao médico de clínica geral e ele olhou para as análises. Passava-se alguma coisa. Mandou-me repetir, não me quis assustar e enviou-me a um especialista de hematologia porque ia precisar de um acompanhamento do foro oncológico. Assustei-me; percebi. Ele disse que não me preocupasse, que seriam quatro meses de quimio e que faria a vida normal. Não foi bem assim; foram três anos de quimio, mas começou depois a ser mais leve, e o progresso da medicina é tão rápido. . . Parei, há seis meses que não faço quimio. Toda a gente achou que me ia cair o cabelo e quando me encontram dizem: “Mas tu não tens nada cara de ter um cancro. ” Eu brinco, digo, “não, é uma pose!”. A maior parte das pessoas acha que sou muito exibicionista, mas eu acho que não sou exibicionista, acho que sou, se calhar, um bocado excêntrica: não me caiu o cabelo. Isso dá algum consolo. Percebo que as mulheres que perdem o cabelo fiquem tristes. Determinei que se o cabelo me caísse não usaria turbante. Rapo o cabelo e ando tal e qual. Não, ando com o cabelo rapado e se virem que tenho um cancro, tenho um cancro. O cabelo ficou fraquinho. Sente que continua a haver um interdito em relação ao cancro? Sim, até há muito pouco tempo dizia-se “morreu de doença prolongada”. Não quero exibir o cancro e não o quero esconder. Não sei explicar os motivos, mas o que está ligado ao cancro é uma conotação muito negativa e trágica. Há pouco estava a tirar fotografias com medo de apanhar uma corrente de ar, porque o médico me disse que iria ficar sem sistema imunitário e o mais provável é morrer de pneumonia e não do cancro. Estar tão doente teve outra consequência aborrecida, mas q. b. Não consigo psicologicamente sair de Lisboa. Não fiz férias porque quero estar mesmo perto do hospital. Já caí duas ou três vezes. Este cancro, como é na medula, rói os ossos por dentro, e estou muito frágil. Agora tenho muito cuidado, por exemplo, a subir as escadas. Tenho receios e quando era saudável não tinha. >> Leia ainda: Cancro — partilhar a história é importante, mas cada caso é um caso <<Ficou o Verão em Lisboa. Fiquei. Não é isso que me custa, o que me custa é não ter ido para Oxford. Desde meados de 80 até estar doente, passava sempre três meses de Verão em Oxford. Não gosto de calor. Quando tinha os filhos pequenos, gostava de ir para a praia, e o meu marido detesta praia. Mas adorava estar em Oxford, fazia-me muito bem intelectualmente, porque tinha a melhor biblioteca do mundo. Agora com a Internet a coisa melhora um bocadinho, mas andava de bicicleta, o meu colégio era muito perto de um prado grande, o Port Meadow, que nunca conheceu fertilizantes e é enorme. Tinha uma vida muito saudável. Era bom porque tinha a parte da natureza e a parte intelectual. Fiquei lá com dois grandes amigos dos tempos de Oxford, amigos de 71. Um deles, o Gabriel Gorodersky, ajudou-me a prosseguir em Oxford sem medos. Quando lá cheguei, achava que estava num estado tal de analfabetismo que era atrasada mental, não tanto porque não tivesse potência para fazer estudos, mas treze anos de colégio de freiras tinham-me deixado totalmente analfabeta, mesmo em matéria teológica. Depois quatro anos como aluna voluntária — agora seria trabalhadora-estudante — na Faculdade de Letras não me ensinou nada. Não sabia nada de filosofia. Fui para Oxford com uma bolsa da Gulbenkian e quando cheguei tinha imensa vergonha de ser tão analfabeta. Não falava com ninguém, para eles não perceberem que eu estava burra; e eu não tinha a certeza se era mesmo burra de nascença ou se era o país que me tinha feito burra. Faltava verificar. Esse meu amigo disse-me: “Estás parva! Ainda não conheces Oxford. Metade das pessoas que são aqui professores são analfabetos e burros e estúpidos. ” Desmistificou a universidade. Oxford não era assim o eldorado onde eu nunca poderia ascender. Se eu trabalhasse, ascendia. Eu tinha 26 anos, a maior parte dos alunos tinha 21, 22 anos. Sentia-me deslocada. Para eles, a ideia de que eu era divorciada e com dois filhos era ainda mais estranho. Acho que foi o momento mais doloroso da minha vida, não ter estado com os meus filhos lá. Mas o trimestre era curto. Oito semanas muito intensas. Eu estava lá durante oito semanas, depois vinha para Lisboa e estava com eles. Mas tive muitas saudades. Eram pequeninos, tinham sete, sete anos. Quando o médico sugere que é uma mulher fria. . . Pois, mas eu não quis desistir. Não acreditei que tivesse a bolsa e se não aproveitasse aquela oportunidade. . . Não deixei o meu marido por outro homem. Trabalhava e estava a estudar e achei que precisava de conhecer outro país e outra cultura. Isto era um bocado inconsciente, mas não queria estar limitada a um país machista que não valorizava nada, e numa classe social que desvaloriza a cultura, porque na família nunca ninguém ligou nada aos meus estudos. Achavam que eu era maluca. Pertencia à chamada “elite”. Mas a elite não preza a cultura, preza o sangue. Isso continua. Sei que a elite de que estou a falar é bastante reduzida, mas se julga que se preocupam com os estudos dos filhos engana-se. Digamos que metade se preocupa, porque apesar de tudo estamos no século XXI. Raramente os encontro. Que elite é essa? São os que viveram comigo todos os Verões em Cascais. Pertenciam a um clube muito restrito, a Parada, a que os meus pais não pertenciam, mas aonde eu ia com uma amiga, cuja mãe era sócia. Tenho uma irmã, logo a seguir a mim, a Isabel, que manteve sempre laços. Éramos duas irmãs casadas com dois irmãos, e a Isabel conta-me histórias. Sou amiga de alguns que pertencem à grande fidalguia portuguesa. Se são melhores ou piores que os novos-ricos? Não sei. O Belmiro [de Azevedo], por exemplo, pôs os filhos a estudar bem. Mas a cultura para estas pessoas não é muito importante. Um amigo que foi ao lançamento de Os Ricos disse-me que gostou imenso e que só tinha lido um livro na vida, mas disse aquilo com enorme naturalidade. Não têm complexos. No início, alguns achavam que eu era comunista. Depois devem achar que sou traidora à minha classe social de origem, mas nunca me senti ostracizada por não pertencer à Parada, nem depois do 25 de Abril, embora saiba que eles não gostaram das minhas atitudes políticas e acham que estou muito à esquerda. Eu sou de esquerda e sou de esquerda em parte porque não gosto da direita social. Foi de esquerda só por espírito de contradição? Não. Haverá parte disso, mas tornei-me de esquerda aos 14 anos, muito cedo, como uma reacção à visão da pobreza. Conta isso n’Os Pobres. Sim. Eu estava num colégio de freiras, mas não era interna, vivia na [Rua] Rodrigo da Fonseca. Éramos umas dez meninas e disseram-nos que iríamos visitar uns pobres à frente do Liceu Francês. Eu não queria acreditar que existiam miúdos como vi, que não iam à escola porque não tinham sapatos. O meu bairro era tipicamente da classe média, não era misturado, e fiquei tão indignada. Não quero viver numa sociedade em que exista esta desigualdade social tão gritante. Eu não era capaz de dizer isso na altura. Percebi que muitos dos meus amigos e amigas então achavam que era normal. Dá-se um cobertor no Natal. Eu dizia que isso não resolve. Cada um tinha um pobre. Eu tinha uma pobre, a Adriana, e o filho da Adriana não só não tinha sapatos como a Adriana tinha o marido preso por ter roubado para aí dois pães, sei lá, um delito menor. Tudo aquilo me indignou. Nessa altura eu não conhecia outros países, mas não me revia no Portugal daquela época. Foi aí que decidi que iria lutar por uma maior igualdade social. Isso não me fez ir para a política. Fez-me ir para a universidade e para Sociologia. Não estou arrependida das minhas opções. Sempre votei PS e só não voto agora porque eles não mudaram a Lei Eleitoral e não gosto desta lei, mas tive muitos colegas e amigos que eram de extrema-esquerda e que, com a idade, têm feito um percurso para a direita. Eu não. Acho que estou mais ou menos no mesmo ponto em que estava. Não quero viver num país, onde nasci, que se compraz com esta situação social, em que há pessoas que não têm o que comer, que não têm casa digna onde habitar. É uma sociedade muitíssimo injusta. Chama a estas crónicas “uma escrita efémera”. É a escrita dos jornais, mas tem outra experiência, a das memórias, a da biografia, o ensaio, a escrita com mais tempo. Em qualquer dos casos, quase sempre se expõe. O jornalismo ajudou-me imenso na academia. Ajudou-me num estilo mais claro. Preocupo-me que as pessoas entendam o que estou a dizer. O facto de eu ter alguma cultura geral que vem da academia ajudou-me no jornalismo. Quando escrevo que ia a sair de casa e encontrei um passarinho, não estou a falar de um episódio sem significado. Tento é pegar num pormenor e ver se daquele pormenor posso falar de um problema mais geral. Se encontro um menor a viver numa cabana e que é abandonado por todas as instâncias da assistência social, posso falar dele e da vida dele, mas depois tenho de abrir a lente e falar do problema estrutural. Acho que a academia e o jornalismo se podem casar muito bem. O jornalismo ajudou-me muito a sair de uma espécie de jaula que é o jargão académico. E o modo como se expõe? Escrevi a biografia [Bilhete de Identidade] em Oxford e lá era a coisa mais normal do mundo. Quem me inspirou muito foi a Mary McCarthy [escritora americana, 1912-1989], uma esquerdista com background católico. Ela escreveu duas memórias e perguntei-me: porque não fazer isso? Ela não tinha uma formação em Sociologia e eu tinha. Eu era capaz de analisar coisas no Portugal dos anos 30 ou 40 através dos meus óculos sociológicos e falar de mim, tentando mostrar como era a vida. Eu não queria exibir-me. Queria que o livro fosse bem escrito. Isso era prioritário. Estava à espera de que o livro causasse algum escândalo, ou que houvesse pessoas que se zangassem comigo, mas — e aí devia ser um bocado burra — as pessoas que eu estava a pensar que poderiam reagir ma, reagiram bem, e as que eu estava a pensar que iam reagir muito bem reagiram pessimamente; mas não me arrependo de ter a escrito. A biografia do Fontes Pereira de Melo não causou reacções porque era a primeira biografa dele, e a do Eça de Queirós causou reacção entre os queirosianos, coisa para a qual estou mais ou menos nas tintas. Eles têm uma coutada e vivem da coutada. O que é que esta outcast vem para cá escrever sobre o Eça?! Quanto ao resto dos livros, gosto de fazer biografias. Gosto mais agora de falar sobre as pessoa, do que sobre as estruturas, ou a sociedade em geral. Ainda não me falou da exposição pessoal que implica a exposição das pessoas que lhe estão próximas. Do António estou proibida de falar! Tenho de ter imensa cautela. A única coisa que posso dizer é “o meu marido chama-se António Barreto”. Ele não quer, é muito reservado, e acha que este tipo de atitude não é louvável. Cumpro. Ele tem aquele feitio, eu tenho outro feitio. Falo de mim com grande facilidade. Não faz autocensura? Não. Nenhuma. É verdade que isso deriva de eu ter 75 anos, sei que vou morrer muito em breve. Mas tinha muito menos quando escreveu a autobiografia. Sim. Não me custa expor-me, mas como eu disse queria ter um livro bem escrito em que usasse também o que eu sabia da Sociologia. Escrever como era a Rua Rodrigo da Fonseca, as fachadas da direita e da esquerda, socialmente se eram iguais ou não, ou como é que o Salazar via as mulheres. . . E falar de mim não me custa, vem-me naturalmente. Tenho pena de que isso às vezes fira as pessoas, e desde que publiquei o Bilhete de Identidade que estou mais atenta aos efeitos. Nalguns casos não estava à espera de que fossem tão violentos. Um dos problemas foi tentar explicar aos meus irmãos que a minha mãe era uma figura poliédrica, que a minha relação com ela era diferente da relação de cada um deles com ela. E não estava à espera de que eles se sentissem feridos, mas sentiram e sofro com isso. Mas se me perguntar se me arrependo, não. Escreve no prefácio que estas crónicas são comentários sobre os seus dias. Outra vez o registo pessoal. Como é que prepara estes textos? É. Sou relativamente disciplinada e ansiosa. Pego naquele papel que está ali, tiro uns apontamentos, penso no que poderei falar, ponho cinco ou seis temas. Vou riscando alguns. Tenho de entregar os textos à quinta, escrevo à terça, mas já tenho de ter a coisa bastante elaborada na cabeça. Como agora não saio e não tenho vida social, isso permite-me ter um controlo maior sobre o meu tempo, já não tenho filhos nem netos pequenos com pequenos acidentes. O único acidente que tenho é o meu corpo, se amanhã tiver de ir ao hospital por qualquer razão, não faço a crónica. Mas tendo a ser disciplinada e a não deixar até ao último dia. Há temas em que me custa meter porque são muito especializados. Economia. Economia nem pensar! Uma coisa em que sinto que a doença se agravou muitíssimo é na minha relação com os números. Tomo uns 20 comprimidos por dia e penso que isso me afecta a memória. O que é curioso é que não afecta a memória quando leio o Philip Roth, mas afecta a memória dos números. Há, apesar disso, uma dispersão temática. Tudo lhe interessa? Quase tudo, sim. E sou curiosa. Mas o que me interessa mais são as pessoas, e as pessoas com quem contacto. Desde que estou doente que só vejo dois amigos, praticamente. Hoje vou jantar com uma amiga, o que é raríssimo, ainda mais agora que sou vegetariana, que é uma coisa que nunca pensei ser. Porquê?Porque comecei a ter imensas infecções. Eram infecções recorrentes, os antibióticos não faziam nada e a enfermeira quis saber da minha alimentação. Eu não cozinho, nem o meu marido. Não cozinha porque não sabe. Nada, zero. Mas fala da cozinha. Numa das suas crónicas sobre tribos sociais diz que as famílias se distinguiam pelas que seguiam as receitas do livro de Maria de Lurdes Modesto das que iam pelas do livro da Isalita. É engraçado observar quão fundo vão as diferenças sociais. Comecei a pensar nisso ao ler um livro da Nancy Mitford [escritora inglesa, 1904-1973]. É muito notório nos vocábulos. Dentro desse grupo de Cascais, as pessoas não diziam “vermelho”, diziam encarnado. Há uns dez anos, já depois de ter publicado o Bilhete de Identidade, almocei com um amigo antigo, da Granja, o equivalente no Norte a Cascais, e disse-lhe que tinha passado um sinal vermelho, e ele: “Mas tu agora dizes vermelho!” E houve três coisas que ele me corrigiu num almoço! Sim, e lá em casa havia a Isalita e todas as amigas tinham a Maria de Lurdes Modesto como referência. Noutra crónica refere, a propósito da releitura de O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald: “Tenho andado a pensar nos ricos e percebi que, mais do que inveja, me causam perplexidade. ” Não percebo o que se faz com salários de 400 ou 500 mil euros! O que se compra? Depois de ter uma casa, um iate, uma mulher muito abonecada ou um homem também abonecado, algumas obras de arte que são investimentos. . . Sei que há o sentimento da ganância, mas o prazer que se retira de ganhar salários elevadíssimos, ou, pior ainda, de herdar uma fortuna causa-me perplexidade. Imagine que amanhã me caem dois milhões de euros em cima! Eu ficava um bocado baralhada. Primeiro, sendo iletrada do ponto de vista financeiro, não saberia investir. Nem sequer nos torna muito felizes. Se calhar, sobretudo para os homens, o dinheiro é uma maneira de lhes dar uma imagem muito positiva deles próprios. Tem que ver com virilidade? Tem que ver com “eu sou uma pessoa melhor do que os outros que ganham menos”. Mas acho que isso acaba por se desfazer passados dois meses. Olhar-se ao espelho e dizer que se é bestial deve fartar. Conta que o seu pai lamentou não lhe deixar nada. Ele ficou muito triste porque tinha herdado do pai dele e se tinha arruinado. Não dei por isso porque foi na altura em que me casei. Ele não tinha jeito para o negócio, mas era o filho mais velho e o meu avô insistiu em que ele prosseguisse o negócio. Interroga-se sobre o que é a felicidade e diz: “Sei exactamente porque não sou feliz. ” Isso é feitio. Tenho um feitio lixado. Não sou capaz de estar feliz mais de cinco minutos. O que a consegue pôr feliz? Dantes era estar apaixonada, mas as minhas paixões tendiam a ter uma componente sadomasoquista. Eu gostava de qualquer palerma que não gostasse de mim, o que não é um bom critério. Isto para aí aos 16 anos. Como eu era bonita, os rapazes tendiam a estar aos meus pés. E se havia algum distraído, eu achava que ele devia ser interessantíssimo, devia ter um mistério. A paixão é qualquer coisa de que não tenho muitas saudades. Por ser muito ficcionada? Sim, é muito ficcionada. Eu lia muitos romances, e achava que era tudo para o bem, mas acabava normalmente bastante mal. Prezei sempre a amizade, mas a amizade entre um homem e uma mulher é sempre muito difícil. Continua a achar que sim? Acho que para as minhas netas é mais fácil do que era para mim aos 20 anos. Agora que as coisas mudaram bastante, talvez seja possível haver amizade entre um homem e uma mulher, embora o sexo esteja sempre metido no meio. Não sei se é possível. No meu tempo não era possível. Diz muitas vezes que era muito bonita. Quando teve consciência disso? Só tive essa sensação a partir do olhar dos outros, aos 13, 14 anos. Até aí era muito maria-rapaz, e queria subir às árvores e andava sempre cheia de crostas. Mas ser bonita não é totalmente bom, não era em 1940-50. Era vista como um objecto sexual e eu não queria. Mesmo em Oxford. Oxford era muito machista, mas as pessoas estavam muito ocupadas, tinham de trabalhar bastante, e estudar bastante, nunca fui vítima de assédio sexual. Agora Oxford está cheio de placards, “se fores sair à noite, telefona para este número”, um número de apoio a raparigas. A minha neta mais velha disse-me noutro dia: nunca faço eye-contact com rapazes na rua. Perguntei porquê. “Não os conheço, tenho um bocado de medo. ” Acho que este movimento #MeToo, além de gerar puritanismo, gera medo; dificulta as relações entre rapazes e raparigas. Não trouxe nada de positivo? Focou um aspecto que acho muito importante: os poderosos quererem forçar subordinados a ir para a cama com eles. Acha que é sobretudo uma usurpação de poder? Sim. É verdade também, e eu vi na universidade, que as raparigas podem dizer que não, e isso o movimento #MeToo omite. Na relação entre alguém com poder e um subordinado, é horrível quem tem poder querer impor ter sexo como condição para outro subir na carreira, mas pode-se sempre dizer não e sofrer as consequências. Talvez seja um pouco a lei do pêndulo, pode-se passar um bocado demais para o lado de ver os homens como nossos inimigos. Não são. Em Portugal herdaram uma tradição machista horrível e há um número de mortes familiares grandes. Mas não se nota o puritanismo como, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a linguagem é muito vigiada. Este movimento politicamente correcto. . . percebo a origem, porque a linguagem vem de uma era em que discriminávamos muito certas classes ou certas raças, mas estamos a ir para um extremo em que o humor pode deixar de ter o potencial que teria. Um exemplo, A Vida de Brian, dos Monty Python. Acho que agora não seria possível fazer o filme. Era considerado sacrílego. O politicamente correcto atinge a capacidade satírica. >> Leia ainda a entrevista com Jessica Bennett, a primeira editora de Género do New York Times: As histórias de assédio nunca mais vão deixar de ser ouvidas <<Escreve: “Nasci num país pobre, pequeno e situado na periferia europeia. . . ” Até que ponto isso a moldou? É muito curioso que me esteja a fazer hoje essa pergunta. Hoje acordei a pensar no que iria escrever a seguir. Já escrevi sobre os pobres, sobre a classe média não dá; uma biografia de quem? Até pensei fazer uma biografa do Ramalho [Ortigão], que detesto por admirar o Eça, e conheço mais ou menos as coisas que o Ramalho escreveu. O Eça era um grande escritor, mas não tinha muito bom carácter. Ele gostava sempre muito das pessoas de quem precisava, e ele precisava do Ramalho para lhe tratar dos livros e das editoras. Mas não me apetece fazer uma biografia do Ramalho, embora em tempos tivesse pensado que gostava muito de fazer um quarteto como fez o Lytton Strachey [1880-1932 de Eminent Victorians], a dizer mal de quatro personagens que são um mito. Mas nós não temos muitos heróis. Temos o Nuno Álvares Pereira, mas não percebo nada da Idade Média. Pensei no Ramalho porque tenho muito material e já não posso ir para a BN. Tenho imensas saudades, adoro estar em bibliotecas. Mesmo numa biblioteca feia. Porquê? Porque o mundo fica cá fora. No 11 de Março, eu estava na BN e o Vasco [Pulido Valente], com quem eu vivia, telefonou para a senhora a pedir para dizer “à menina do M15”, onde eu me sentava sempre, para ir para casa porque havia aviões a sobrevoar Lisboa. Ou seja, hoje de manhã pensei: o que é que me marcou o facto de eu ter nascido aqui? Imagine que eu nunca tinha saído de Portugal? Era igual ao que sou hoje? Acho que não. Vou meditar um bocado. Essa ideia veio esta manhã, mas eu tinha andado a folhear uns livros e se calhar, subterraneamente, já lá estava a questão. O Teixeira de Pascoaes, o Herculano, o Eduardo Lourenço. . . Andei a reler e não tenho afinidades com nenhum. Ontem à noite estive a folhear um poema chamado D. Jaime, de Tomás Ribeiro, que foi publicado em 1862, um sucesso enorme naquele tempo, e é a coisa mais horrenda do ponto de vista da poesia nacional. Lirismo barato, nacionalismo idiota. Deve ter sido o livro mais vendido em todo o século XIX. Pensei: eu não pertenço. Há alguma coisa em mim que diga que sou mesmo portuguesa? Em que é que me mudou a minha estada em Inglaterra? Foi mais importante do que o facto de eu ter nascido aqui ou não?Às tantas diz aqui: “England made me”. . . Culturalmente foi. A importância que dou à liberdade e à independência. Se tivesse ficado sempre aqui, talvez não tivesse acontecido. Também não quero dizer que sou uma snob. Não tenho uma visão dourada de Oxford. O que Oxford me deu, além de assistir a seminários, foi liberdade e tempo, o acesso à melhor livraria de Inglaterra e à melhor biblioteca. E tempo! Eu ali tinha tempo para ler muitos, muitos romances. Sou, se calhar, híbrida; sou portuguesa e fui muito influenciada pela cultura inglesa. Admiro o Orwell como não admiro o Alexandre Herculano, não só pela maneira como escrevem mas pelos sentimentos que revelam. Essa identidade tem alguma coisa que ver com a língua? Tem. Nunca poderia escrever em inglês. Se eu não tivesse filhos com um pai português, será que eu tinha tentado ficar em Inglaterra? Será que alguma universidade acharia que eu tinha qualidade suficiente para ser uma académica inglesa? Talvez não. Se calhar era um bocadinho burra. Ainda tem essa dúvida. [Gargalhada] Tenho, nunca experimentei, mas nunca menosprezarei o que a Inglaterra me deu. Já escreveu que está triste com o “Brexit”. Acho que o Cameron cometeu um crime. Ainda por cima sou contra os referendos e referendar a Europa não tem pés nem cabeça para mim. Sublinha num dos textos a falta de credibilidade nos políticos, nos jornais e nos juízes, três poderes essenciais em democracia. E nem na Igreja. Eu não sou crente, mas verifica-se um vazio pelo descrédito das instituições tradicionais e há um cinismo que está a aumentar. Isso é perigoso. As pessoas deixam de ter uma âncora a que se agarrar e, por muito que eu critique o sistema eleitoral português, quero continuar a ser de esquerda e, sendo de esquerda, poder imaginar um país melhor. Não quero abdicar de alguns ideais nesse sentido: da igualdade versus desigualdade social. Mas tudo me puxa para dizer que não vale a pena, sobretudo os amigos da minha idade. Não é que eu tenha causas. Acho que é preciso lutar até ao fim. Assim como luto contra o cancro, acho que é preciso lutar contra o vazio e o cinismo em relação aos sistemas políticos ocidentais, porque são, apesar de tudo, os melhores. Se baixarmos os braços e dissermos “não vale a pena”, vem mesmo a extrema-direita para a Europa. Não sei se é geracional, mas vivemos o entusiasmo com o 25 de Abril. Muitos desses entusiastas até foram para a direita, e os que continuam na esquerda têm muito apego a causas fracturantes, o que também acho um perigo, porque a política tem que ver com um ponto de vista mais global. Eu, por exemplo, defendo que se deve despenalizar o suicídio assistido e, possivelmente, também a eutanásia, mas isso não é tudo. Não é só isso que me faz ser de esquerda, e é preciso que a minha geração ainda tenha capacidade de lutar. Acho que estamos todos a baixar os braços e eu não quero baixar os braços, quero continuar a lutar pelas coisas em que acredito. Mas nota-se uma desilusão com essa sua esquerda. O que mais a entristece? A esquerda que está no Parlamento não entusiasma. Quase não vejo televisão. Acho que a RTP continua a fazer propaganda do Governo seja ele qual for, e os outros canais são populistas. Não há debate. Não há um debate racional. Por isso gostei de ler o discurso de homenagem que o Obama fez ao John McCain. Eu não tinha uma opinião sobre o John McCain, não conheço suficientemente bem a história da América, mas pareceu-me um ser admirável. Ele pertence a uma certa aristocracia militar ou política, por mais que esta expressão possa irritar, mas não gosto de ver exibido um ressentimento social. Noblesse oblige quer dizer isso mesmo, quem pertence àquela classe tem também deveres e um dos deveres é uma noção de ética. O Trump pisou nisso tudo, e o John McCain tornou-se uma espécie de símbolo de um homem bom. O Obama, que acho que não foi bom político porque não fechou Guantánamo, é um grande orador. Ele sabe dizer as coisas muito bem. Ele e o McCain defrontaram-se em eleições. Com as redes sociais pode desaparecer um debate adversarial que é bom, saudável, de pessoas que se respeitam. O contrário do estilo Trump. Acerca dessa sua busca de saber o que a faz ou não portuguesa, tem neste livro um texto onde põe lado a lado Eça e Tolstói para dizer que tanto a literatura portuguesa como a russa andam à volta da identidade. E tem uma frase curiosa: “Alguns intelectuais ainda hoje se debatem com este problema e eu não. ” Foi em 2015. Afinal. . . [Gargalhada] Nunca me preocupei com a questão da chamada “identidade nacional” por ser uma frase que, para mim, era oca. Quando estava em Inglaterra, notei que quem se preocupava com isso eram sobretudo povos periféricos. Nunca vi um inglês preocupar-se com a identidade nacional dele. Com o “Brexit” a coisa é diferente. A questão tem sido posta de tal forma que me afastou dessa ideia de identidade nacional. Mas mais uma vez o que quero é voltar a mim. Isto pode parecer estúpido. Algumas pessoas pensam: mas ela é assim tão vaidosa que quer pensar tudo a partir do ego dela? Acontece que não tenho outra maneira de pensar as coisas a não ser de mim, do meu olhar. O que me interessa não é discutir a partir de termos míticos. Não sou capaz de discutir a identidade nacional em termos abstractos, nem pensar se odeio ou não odeio os espanhóis. É verdade que somos uma nação muito antiga. Como é que isso nos marcou? Mas têm de ser perguntas concretas, não pode ser uma espécie de exposição mítica de uma mentalidade portuguesa que eu não sei em que consiste. Perguntas concretas, neste caso, a si? Sim. A mim. Não sei se isto dá qualquer coisa. Uma das suas crónicas é dedicada ao jornalista e escritor britânico Christopher Hitchens. Fale-me desta sua admiração. Because he was a contrarian [porque ele era do contra]. Ele também deve ter dito “não” mal nasceu. Acho que era inteligente, escrevia bem, era subversivo, entusiasmou-se com o Portugal de 74 e depois percebeu que aquilo podia ter descambado num regime odioso. Tive pena de não o poder conhecer quando esteve cá, mas um amigo meu que estava em Nova Iorque quando ele morreu mandou-me uma fotografia dele em que ele está com uma pilha de livros ao lado, e fiquei muito contente porque estava encimada pela tradução da minha biografia do Eça de Queirós. Ele quando esteve cá na Casa Fernando Pessoa disse que gostava mais do Eça de Queirós do que do Pessoa. Eu também tenho dificuldade em ler Pessoa, e agora que estou nesta espécie de boiar tentei outra vez ler a poesia e só gosto do Cesário Verde. Não sou capaz de entrar na poesia do Pessoa. Gosto mais da prosa do Fernando Pessoa do que da poesia. Deve ser um sacrilégio dizer isto. Porquê? Deve ser a frieza emocional do Pessoa. Acha que ele era frio? Acho. E o Cesário não era. Acho que o Cesário é o único génio que conheço em Portugal. Sou capaz de explicar como é que surgiu o Eça de Queirós, o ambiente de onde ele veio, as leituras dele, etc. Escrevi também uma pequena biografia do Cesário, não há fontes quase nenhumas, mas adorei ler o Cesário e é o único poeta que releio. O que a faz chamar-lhe génio? Brotou de uma forma que não compreendo. Não sou capaz de explicar como escreveu aquela poesia. Infelizmente, é um poeta menosprezado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Acabou um projecto na semana passada. Quer falar dele? Acabei, deu-me um enorme trabalho e um enorme prazer. Não tinha ideia daquilo em que me estava a meter. Tive a sorte de ter um revisor, o Vasco Grácio, que fez mais de metade do trabalho por mim. Porque não sou meticulosa e ele é. O que vai sair agora são As Farpas originais do Eça. Estou muito contente por ter sido capaz, por ter acabado. São só do Eça e são todas as que o Eça escreveu. É mesmo o original do que ele escreveu em 1871-72. Estou contente, porque estou doente e a minha satisfação é ser capaz de trabalhar. Talvez saia ainda este mês. É isso que a satisfaz sobretudo, estar bem intelectualmente? É. Não suportava ter Alzheimer. Aí, sim, eu pediria a alguém me ajudasse a morrer.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
Bolsonaro já falou após esfaqueamento: "Nunca fiz mal a ninguém"
Candidato já falou sobre o ataque num vídeo gravado a partir do hospital. Cirurgia foi bem-sucedida mas estado do candidato presidencial "continua a ser delicado". (...)

Bolsonaro já falou após esfaqueamento: "Nunca fiz mal a ninguém"
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.42
DATA: 2018-09-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Candidato já falou sobre o ataque num vídeo gravado a partir do hospital. Cirurgia foi bem-sucedida mas estado do candidato presidencial "continua a ser delicado".
TEXTO: O candidato de extrema-direita à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro, está internado em estado grave, mas estável, depois de ter sido submetido a uma cirurgia de urgência “bem-sucedida”. Bolsonaro foi esfaqueado durante um comício esta quinta-feira, na cidade de Juiz de Fora, estado brasileiro de Minas Gerais. A partir da cama de hospital e num vídeo pelo senador Magno Malta (do Partido da República–Espírito Santo) o candidato recordou o ataque e agradeceu o trabalho da equipa médica que o tratou. No momento sentiu "apenas uma pancada", como num jogo de futebol. Só depois se apercebeu do que tinha acontecido. "A dor era insuportável. " "Eu me preparava para um momento como esse, porque você corre riscos", disse o candidato, que falava ainda com dificuldade. "Como é que o ser humano é tão mau assim? Eu nunca fiz mal a ninguém", ouve-se na mensagem. “Ele fez a cirurgia, que foi bem-sucedida e está a reagir bem”, disse à Reuters por telefone o general Hamilton Mourão, candidato à vice-presidência da República junto com Bolsonaro. “Mas o seu estado continua a ser delicado. ”De acordo com médico da Santa Casa de Juiz de Fora, Luiz Henrique Borsato, o candidato presidencial deverá ter de ficar internado durante pelo menos uma semana. "Antes de uma semana ou dez dias, ele não vai receber alta", afirmou o médico em declarações à Globo, ressalvando que o prazo é uma estimativa e que tudo dependerá de como evoluir a recuperação. De acordo com um dos filhos do candidato, Flavio Bolsonaro, que antes tinha avançado que o corte era superficial, o ataque "foi mais grave do que esperávamos". "A perfuração atingiu parte do fígado, do pulmão e da alça do intestino. Perdeu muito sangue, chegou no hospital com pressão de 10/3, quase morto. . . Seu estado agora parece estabilizado", escreveu num tweet. O candidato era levado em ombros por apoiantes, em clima de festa, quando foi esfaqueado na zona do abdómen. Foi imediatamente retirado do local e levado para um hospital próximo. A Santa Casa de Juiz de Fora, unidade de saúde que recebeu Bolsonaro, informou, em comunicado, que "o paciente Jair Messias Bolsonaro deu entrada no hospital por volta das 15h40 com uma lesão por material perfuro cortante na região do abdómen". "O que houve foi um sangramento na veia abdominal, que logo foi estancado, e lesões nos intestinos grosso e delgado. Foi retirada a parte lesada do intestino grosso, e o intestino delgado foi costurado", descreveu o médico Borsato. O primeiro suspeito do ataque foi detido quase imediatamente pelas autoridades. Trata-se de Adélio Bispo de Oliveira, 40 anos, que terá sido militante do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) entre 2007 e 2014. De acordo com as autoridades, citadas pela edição brasileira do El País, "o agressor foi preso em flagrante e conduzido para a Delegacia da PF [Polícia Federal] naquele município". De acordo com o presidente da Federação dos Agentes da Polícia Federal (Fenapef), Luis Boundens, o suspeito terá dito estar a cumprir "uma ordem de Deus". Horas depois, um segundo homem foi detido, mas a sua identidade não foi revelada. Há uma investigação em curso para apurar as circunstâncias do ataque. Fernando Haddad, que é o candidato mais provável do Partido Trabalhista, disse que o incidente era “uma vergonha”. “Repudio totalmente qualquer acto de violência e desejo pronto restabelecimento a Jair Bolsonaro”, escreveu no Twitter. “Repudio a violência como linguagem política, solidarizo-me com meu opositor e exijo que as autoridades identifiquem e punam o ou os responsáveis por esta barbárie”, escreveu no Twitter Ciro Gomes, outro rival nas presidenciais. "Se Deus quiser, o candidato Bolsonaro ficará bem, temos a certeza de que não haverá nada mais grave, esperamos que não haja nada mais grave", afirmou o Presidente brasileiro, Michel Temer. “É intolerável que as pessoas falseiem dados durante a campanha eleitoral, é intolerável que nós vivamos num estado democrático de direito em que não haja possibilidade de uma campanha tranquila, de uma campanha em que as pessoas vão e apresentem os seus projectos”, declarou Temer durante uma cerimónia no Palácio do Planalto. "A violência contra o candidato Jair Bolsonaro é inadmissível e configura um duplo atentado: contra sua integridade física e contra a democracia", declarou a candidata Marina Silva (Rede). "Neste momento difícil que atravessa o nosso país, é preciso zelar com rigor pela defesa da vida humana e pela defesa da vida democrática e institucional do nosso país. Este atentado deve ser investigado e punido com todo rigor", escreveu no seu Twitter. "A sociedade deve refutar energicamente qualquer uso da violência como manifestação política. "Também a ex-Presidente brasileira Dilma Rousseff considerou o ataque "lamentável". Porém, sublinhou que "incentivar o ódio cria esse tipo de atitude". "Você não pode falar que vai matar ninguém. Não pode falar isso. Principalmente um candidato à Presidência. "Citada pela Globo, a antiga Presidente do Brasil defendeu que o autor do ataque deve ser responsabilizado. "Quem fez isso não pode ficar impune. Por que não pode ficar impune? Porque tem de servir de exemplo para ninguém fazer isso com nenhum candidato. Isso não pode acontecer num país democrático que se respeita, que quer ser civilizado. Não pode admitir que se esfaqueie qualquer candidato à Presidência da República. Não interessa quem seja. Não se admite isso. E nós não podemos flexibilizar certas coisas. Porque se a gente começa a flexibilizar, nós vamos ter consequências danosas", vincou. "Não é só para os candidatos, mas para as crianças, para os jovens, para os homens e mulheres desse país. "Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A visita de Bolsonaro a Juiz de Fora já tinha chamado a atenção porque um grupo de extrema-direita da cidade fez um cordão de isolamento, durante a visita do candidato a um hospital oncológico. Vestidos de preto, disseram ser polícias a fazer “segurança voluntária” ao candidato e impediram que alguns doentes, que tinham as suas sessões de quimioterapia marcadas, entrassem nas instalações. Nas últimas sondagens, Bolsonaro está à frente na primeira volta, mas perderia numa segunda volta contra todos os candidatos, excepto o do PT. No Twitter, um dos filhos do candidato, Flavio Bolsonaro, partilhou uma fotografia onde o candidato presidencial surge a sorrir e pronto para ganhar na primeira ronda de votos, lê-se na legenda.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens violência ataque homem mulheres morto vergonha agressor
Quatro casos de Legionella entre pacientes e funcionários do Hospital CUF Descobertas
Hospital admite que possa haver mais casos. Foco de infecção poderá estar nos duches. (...)

Quatro casos de Legionella entre pacientes e funcionários do Hospital CUF Descobertas
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Hospital admite que possa haver mais casos. Foco de infecção poderá estar nos duches.
TEXTO: Quatro novos casos de Legionella foram identificados numa unidade de saúde de Lisboa, desta vez no Hospital CUF Descobertas, do Grupo José de Mello Saúde, na zona do Parque das Nações, informou a Direcção-Geral da Saúde (DGS) numa nota publicada neste domingo no seu site. Todos os doentes são mulheres e todas se encontram estáveis. Numa conferência de imprensa realizada durante a tarde, o director clínico adjunto do hospital particular, Paulo Gomes, detalhou que foram infectadas duas pacientes que tinham estado naquela unidade "há umas semanas" e duas funcionárias auxiliares de saúde. "Todas as quatro estão estáveis e com prognóstico positivo", disse. Uma das pessoas infectadas está internada nos cuidados intensivos mas apenas para fins de monitorização, devido a patologias anteriores. O primeiro caso foi detectado durante a madrugada de sábado com a chegada ao hospital de uma utente — que tinha ali estado "semanas" antes — com sintomas coincidentes com um estado de infecção por Legionella posteriormente confirmado através de análises. A partir desse momento, foram seguidos protocolos clínicos que implicaram a pesquisa de sintomas similares junto de doentes e funcionários, o que resultou na identificação, durante o dia de sábado, de mais três casos. "Admito que possa haver novos casos", acrescentou. Apesar de não estar oficialmente localizado o foco de infecção, a administração do hospital "parte do pressuposto" de que estará no interior da CUF Descobertas. Paulo Gomes admite que a infecção poderá ter origem nas "águas sanitárias e duches", e não em torres de refrigeração, como aconteceu no recente surto no Hospital São Francisco Xavier. "Não é um problema de climatização, não temos torres de refrigeração", explicou o responsável clínico da CUF Descobertas. O hospital iniciou entretanto um processo de descontaminação das águas, através de um "choque químico", por via do aumento dos níveis de cloro, e de um "choque térmico" — ou seja, pelo aumento da temperatura da água. Horas antes, a DGS tinha informado que as autoridades de saúde estavam no hospital e que já tinham sido aplicadas medidas de primeira intervenção para controlar o surto e interromper a transmissão, incluindo o reforço da vigilância epidemiológica e ambiental. As medidas estão a ser aplicadas pela DGS “em articulação com o conselho de administração do hospital e em colaboração com o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge”, detalhava a DGS. Este novo surto de Legionella em Lisboa acontece depois de em Novembro passado 56 pessoas terem sido infectadas pela bactéria no Hospital São Francisco Xavier. O surto, com origem numa das torres de arrefecimento daquele hospital, provocou nessa altura seis vítimas mortais. Já em Janeiro deste ano, o Governo anunciou que vai avançar com um projecto de lei que determina auditorias obrigatórias de três em três anos a empresas de equipamentos, sistemas e redes com maior risco de desenvolvimento de Legionella. Segundo o diploma conjunto dos ministérios da Saúde e Ambiente, as empresas que não cumprirem arriscam multas que vão até 45 mil euros. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Legionella é uma bactéria responsável pela doença dos legionários, uma forma de pneumonia grave que se inicia habitualmente com tosse seca, febre, arrepios, dor de cabeça, dores musculares e dificuldade respiratória. A infecção pode ser contraída por via aérea (respiratória), através da inalação de gotículas de água ou por aspiração de água contaminada. A incubação da doença tem um período de cinco a seis dias depois da infecção, podendo ir até dez dias. Em Portugal, a doença dos legionários provocou nos últimos três anos 18 mortos e mais de 400 infectados. O maior surto recente remonta a Novembro de 2014, quando 375 pessoas contraíram a bactéria e 12 morreram no concelho de Vila Franca de Xira. Notícia actualizada às 18h30: acrescenta esclarecimentos do director clínico adjunto do Hospital CUF Descobertas
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei doença mulheres
Pedofilia: não basta pedir desculpa
A condenação do cardeal George Pell, o terceiro homem mais importante na hierarquia do Vaticano, exige mais do que o seu afastamento do Conselho de Cardeais, um pedido de desculpas, uma confissão de arrependimento e outra de vergonha. (...)

Pedofilia: não basta pedir desculpa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: A condenação do cardeal George Pell, o terceiro homem mais importante na hierarquia do Vaticano, exige mais do que o seu afastamento do Conselho de Cardeais, um pedido de desculpas, uma confissão de arrependimento e outra de vergonha.
TEXTO: O padrão é este: a seguir à divulgação com estrondo de mais um caso de abuso sexual de menores na Igreja Católica vem, primeiro, a informação de que a hierarquia encobriu os abusos e, depois, o natural e obrigatório pedido de desculpas. Foi o que aconteceu nas dioceses da Pensilvânia, nos EUA, na qual mais de 300 padres foram acusados por crimes praticados contra mais de 1000 vítimas, ou em Washington, que levou à demissão de um arcebispo, ou em Boston, no Chile, na Irlanda, etc. Estes casos tornaram-se tão frequentes e tão incomodativos para o Vaticano que o papa Francisco não teve alternativa a não ser reforçar ainda mais esse pedido de desculpas, ao escrever uma carta aberta na qual admitiu “vergonha e arrependimento” pela forma como o Vaticano lidou com estes crimes, aos quais chamou “atrocidades”. Sim, não basta pedir desculpa. É o próprio Papa quem diz que “nunca será suficiente o que se fizer para pedir perdão e procurar reparar o dano causado”. A condenação do cardeal George Pell, o terceiro homem mais importante na hierarquia do Vaticano, pela prática de abuso sexual de menores, exige mais do que o seu afastamento do Conselho de Cardeais, no qual pontificavam outros bispos acusados de crimes semelhantes, um pedido de desculpas, uma confissão de arrependimento e outra de vergonha. A lei australiana invocada esta semana para impedir a publicação das notícias sobre o julgamento do cardeal — o responsável pelas finanças do Vaticano voltará a ser julgado, no próximo ano, por outra acusação de pedofilia —, com o argumento de que a divulgação das mesmas pode ter influência no desfecho do caso, só reforça a necessidade de ir além do acto de contrição. O escândalo nunca se aproximara tanto da hierarquia católica. Os abusos sexuais no interior da Igreja Católica não são apenas um teste ao papa Francisco. O número crescente de vítimas de abusos sexuais com coragem para denunciar os crimes de que foram alvo não vai parar. Mas que ninguém esteja à espera que a Igreja seja capaz de se repensar e de admitir a necessidade de rever as suas posições sobre o celibato ou a possibilidade de os clérigos contraírem matrimónio. Como o Vaticano nunca o fará, os seus bispos transitarão de condenação em condenação, de penitência em penitência até à irresolúvel descredibilização de uma instituição manchada pela pedofilia.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA