A escrita certeira da angústia feminina
Foi ao fundo do universo feminino para o devolver em toda a complexidade. A sua obra, hoje quase desconhecida, trata da solidão e do silêncio, da perversão e da ironia. Vinte anos depois da morte, vai ser editada na íntegra. O primeiro volume sai esta segunda-feira, pela Minotauro. (...)

A escrita certeira da angústia feminina
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi ao fundo do universo feminino para o devolver em toda a complexidade. A sua obra, hoje quase desconhecida, trata da solidão e do silêncio, da perversão e da ironia. Vinte anos depois da morte, vai ser editada na íntegra. O primeiro volume sai esta segunda-feira, pela Minotauro.
TEXTO: Simone tinha uma voz "baixa e espessa", a de Mariana não tremia; António falava com voz "fraca, insegura", e a voz da dona da casa "era velha, rachada, monocórdica"; Mateus tinha uma voz macia, e a de Dores era "monótona e cansada". Luísa disse coisas numa "voz um pouco arrastada", a da mulher de Marcelino era "seca e extremamente amarga". Ao longo de 30 anos de escrita, Maria Judite de Carvalho (1921-1998) criou dezenas de personagens, a maioria mulheres. Em quase todas, a voz aparece como elemento definidor de carácter ou de estado de espírito. O que pode então a voz dizer acerca de uma personagem? Muito, conclui-se ao ler esta escritora silenciosa que fez precisamente do silêncio a matéria primordial de uma obra sobre a solidão sustentada no acto de observar e de ouvir os outros, de se observar e de se ouvir a si mesma. “Quem, a não ser eu, perderia tempo a ouvir-me? Quem, se a minha vida ficou vazia de todos?”, interroga-se a protagonista de Tanta Gente, Mariana (1959), o seu conto mais conhecido e talvez o mais autobiográfico. Comecemos então pela voz para tentar chegar à escritora da reclusão e do abandono. Como era a voz de Maria Judite de Carvalho? "Quase arrastada, muito calma; as palavras demoravam a nascer; tinha uma voz reticente, como a obra dela, mas atenta ao interlocutor. Fazia pausas. No que escreveu, o leitor podia – e pode – preencher essas pausas com a sua própria experiência. Talvez por isso seja sempre tão actual", diz Inês Fraga, a neta de Maria Judite de Carvalho que tem acompanhado de perto a edição da obra completa da avó agora que passam 20 anos da sua morte. Escritora do íntimo, observadora do quotidiano que relatava sobretudo através do desespero e da solidão femininos, Maria Judite de Carvalho é autora de uma das mais complexas e estimulantes obras literárias da segunda metade do século XX português. Nos 13 livros que publicou, soube dar ao privado um carácter político; os seus contos e as suas novelas, o teatro, as crónicas e a poesia compõem um quadro social e de costumes difícil de superar. Pertence a um tempo, mas vai além dele, conseguindo a intemporalidade no modo como narra a dor, a desolação, a ruína privada, mergulhando no profundo das suas personagens, gente à deriva no dia-a-dia da cidade. Agustina Bessa-Luís chamou-lhe “flor discreta”; Jacinto do Prado Coelho dizia-a de uma “febre lúcida” e, no seu livro de ensaios Ao Contrário de Penélope (1976), escreveu: “O estilo de Maria Judite não apresenta um sinal de rebusca ou uma palavra a mais. Pelo contrário: sugere, penetra, define, magoa, pela estrita economia das palavras, por uma admirável contenção. ”Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), seu primeiro leitor, e seu marido durante mais de 40 anos, descodificou o projecto literário de Maria Judite de Carvalho: um projecto em que "as palavras não se pronunciam, mas se sugerem apontando para o mistério. ” Na sua História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva e Óscar Lopes sublinharam a “desapiedada denúncia da frustração e solidão humanas” daquela escrita. E, no dia da morte da autora, José Cardoso Pires definiu-a como “uma das personalidades mais notáveis da literatura portuguesa dos nossos dias”, acrescentando: “Se não foi, durante muito tempo, devidamente destacada, foi pelo próprio feitio e comportamento. Era uma pessoa profundamente recolhida e anti-exibicionista, mas com uma escrita de grande qualidade. ” E agora, 20 anos depois, Inês, neta de Urbano e de Maria Judite, resume: “Ninguém lê a minha avó sem entrever a mulher que ela foi. Há na sua escrita uma profundidade a que pressentimos que só se chega pela vivência. ”É uma discrição que parece ter transbordado da vida e da obra para contaminar também o seu percurso literário. Celebrada pela crítica, nunca conseguiu impor-se junto dos leitores, ficando reduzida a um culto que se foi estreitando com a passagem do tempo e com o desaparecimento dos seus livros nas livrarias. Mas essa contingência está prestes a deixar de ser desculpa para não ler Maria Judite de Carvalho. A partir desta segunda-feira, dia 28, e ao longo dos próximos dois anos, a Minotauro, chancela da Almedina, vai publicar a obra completa da escritora. Serão seis volumes, reunindo toda a sua obra e revelando ainda outra das singularidades criativas de Maria Judite de Carvalho: o desenho e a pintura. Todas as capas, bem como os separadores no interior de cada volume, reproduzem obras gráficas da escritora que morreu em Lisboa no dia 18 de Janeiro de 1998, aos 76 anos. “Queremos ver renascer a escrita dela e dá-la a conhecer às novas gerações”, afirma Sara Lutas, a editora, que confessa ter agarrado este projecto como “se agarra uma paixão”. No livro que abre a colecção, e que junta Tanta Gente, Mariana, o seu conto de estreia, ao volume de contos que se lhe seguiu, As Palavras Poupadas (1961), há um auto-retrato da escritora, cabelos negros caídos sobre os ombros e um olhar grande que parece querer abarcar tudo o que tem à sua frente, curioso, como o dos que a olham e querem ler nele tudo o que não sabem de Maria Judite. Nesses olhos vêem-se os de Mariana, a sua némesis, quando também Mariana olhava, à noite, na cama, e via mais do que a realidade do tecto que tinha por cima. “O papel florido tem o fundo que deve ser branco amarelado pelo tempo e está cheio de manchas de bolor onde descubro carinhas risonhas, por vezes muito perturbadoras. Perfis quase diabólicos, estranhos e quietos no seu riso, tanto mais perfeitos quanto mais tempo eu levo a olhá-los sem bater as pálpebras, como se o meu olhar completasse involuntariamente o desenho, avivando-lhe o traço, dando-lhe vida e relevo. Outras vezes são caras horríveis, vazadas no estuque do tecto ou formadas pelas sombras que os móveis despejam de si quando acendo a luz…” Tudo se passa no universo doméstico, é de lá que Maria Judite de Carvalho olha o mundo; esse universo é o modelo a partir do qual alguém se há-de rebelar, nem que seja apenas intimamente, ou ao qual se acomodará, aquietando-se na tal febre, ora lúcida, ora toldada. Às vezes com desespero, outras com ironia, ou com os dois sentimentos, um paradoxo que soube transpor para o que escrevia, numa perversidade desafiadora. "Estou certa de que a maioria das mulheres escrevem e pintam com o mesmo espírito com que a minha mãe bordava toalhas de chá. Para sentirem que são úteis, de certo modo. Femininamente úteis. Para não se sentirem a mais neste mundo, pagarem, em suma, a sua estadia”, dirá Emília, uma das personagens de As Palavras Poupadas. E Maria Judite tanto pode ser Emília como pode ser Mariana, uma mulher que olha, de frente ou através de um filtro que terá a forma de uma cortina numa janela a dar para a rua da cidade, sempre a cidade. “Lembro-me dela a desenhar em todo o lado. Tinha sempre um daqueles blocos Castelo junto ao telefone e desenhava rostos enquanto atendia as chamadas. Desenhava um e outro rosto de mulher, sempre a azul com uma caneta Bic. Uma vez pedi-lhe para me dar aqueles caderninhos e ela achou um disparate. Disse ‘filha, mas isto não tem qualquer valor!’ Eu adorava aqueles caderninhos”, conta Inês, afirmando que ela se censurava menos a desenhar do que a escrever. “Não valorizava muito, ao contrário da escrita, mas há uma ligação entre as duas coisas. ” Na escrita, como no desenho ou na pintura, são quase sempre mulheres, e há um aspecto curioso: “As mulheres, na obra da minha avó, são pessoas muito presas nos rectângulos das suas casas, confinadas aos rectângulos das janelas, que se pontuam pela imobilidade. E nos quadros, ali estão elas, aprisionadas em rectângulos de madeira ou estáticas nos rectângulos de papel. ”Inês Fraga fala da avô entre o entusiasmo e o pudor, com a ambiguidade que existe entre a vontade de a dar a conhecer para que seja lida e a consciência da obstinação com que sempre se preservou do olhar público. “Como neta quase me sinto a violar a sua vontade. É um equilíbrio muito precário entre o que acho que devo contar e o que ela sentiria, por ser extremamente reservada. Mas era uma grande escritora e os grandes escritores devem ser lidos”, diz-nos com a mesma alegria com que abriu as portas de casa e do espólio da avó a Sara Lutas. “Sabia que ela não podia estar em melhores mãos”, garante, lembrando os anos em que quase não se falou da obra de Maria Judite de Carvalho, em que nenhuma editora mostrou interesse em publicá-la. Até há muito pouco tempo. “Houve um silêncio muito grande em volta da minha avó. A figura dela era tão silenciosa. Era tudo tão etéreo à volta dela. . . ” Como se mesmo depois da morte essa espécie de nebulosa em que se moveu se mantivesse. Conviveram durante os primeiros 18 anos de vida de Inês, uma das duas filhas da única filha de Maria Judite de Carvalho com Urbano Tavares Rodrigues, Isabel Fraga, e desses anos a neta recorda uma mulher que era privada não por um qualquer tipo de sacrifício que tivesse imposto a si própria, mas por educação. “Ela foi educada assim; foi educada para a discrição, uma menina séria é contida, uma menina séria não manifesta as suas emoções. E ela nunca soube ser de outra maneira”, conta, como se a educação também se tivesse adequado a um modo de ser. Por isso, Maria Judite de Carvalho era conhecida como a mulher do escritor Urbano Tavares Rodrigues, alguém que também escrevia e pintava, que era educada, que suportava que ele tivesse outras mulheres, que vivia na sombra. E a sombra parecia o seu lugar natural. “Nunca ouvi uma queixa à minha avó”, afirma Inês. Maria Judite de Carvalho nasceu em Lisboa a 18 de Setembro de 1921 e ficou órfã aos sete anos. Foi educada de forma austera por umas tias num casarão escuro, como se conta. Quem ler Tanta Gente, Mariana encontrará paralelos entre a biografia e a ficção. Foi o então já marido, Urbano Tavares Rodrigues, que a incentivou a publicar esse conto. Os dois conheceram-se na Faculdade de Letras de Lisboa, onde Maria Judite de Carvalho, dois anos mais velha, o encontrou já professor. Casaram em 1949. Ela tinha 28 anos e ele 26. Pouco tempo depois iriam para França: perseguido pela PIDE, ele escolheu o exílio e ela seguiu-o. Primeiro para Montpellier, onde Urbano arranjou um lugar como professor, mais tarde para Paris, quando o marido se fixou. Ali conheceram não apenas alguma da elite portuguesa que fugira do regime de Salazar, mas também a francesa. Privaram, por exemplo, com Albert Camus, e também conheceram Simone de Beauvoir, um ícone do feminismo da época, que com os seus escritos influenciaria Maria Judite de Carvalho. “Apesar de muito marcada pelo Existencialismo e pelo Nouveau Roman, ela criou um estilo único que tinha a ver com o meio onde cresceu e com um carácter reclusivo”, refere Sara Lutas, que não esconde a emoção que foi encontrar os papéis escritos, as fotografias e as pinturas da escritora. Vai juntando peças de uma biografia dispersa, com muitos espaços por preencher, exactamente como a das suas personagens, sobre as quais nunca se sabe tudo. Apenas se intui. Dela, por essa altura de vida em comum com Urbano, sabe-se que voltou em 1950 a Lisboa, onde nasceu a filha, Maria Isabel de Carvalho Tavares Rodrigues (que assina como escritora com o nome Isabel Fraga), e que pouco depois regressou a França. Isabel ficou em Portugal, com os pais de Urbano. É então que Maria Judite começa a colaborar com a imprensa portuguesa, mais uma vez incentivada pelo marido. “Ele foi sempre o seu primeiro leitor”, conta Inês, lembrando também o carinho com que o avô sempre tratou Maria Judite, “apesar de tudo”. "Tudo" eram os outros casos que nunca interferiram nesse pacto em que ele lhe elogiava a escrita e ela estava sempre lá, reservada, tímida, avessa à qualquer tipo de glória, como também tantas vezes Urbano Tavares Rodrigues a descreveu. “Ela gostava da luz filtrada que vinha do mundo do meu avô”, salienta Inês Fraga. “Nunca procurou mais, estabeleceu relações de afecto profundas com muito pouca gente”, conclui. Não tem dúvidas quanto à qualidade da escrita da avó, mas percebe porque nunca se salientou. “Não sei até que ponto ela conseguiria estar na dianteira. Ela estava confortavelmente apoiada na imagem do meu avó. Mas se o meu avô não tivesse tido o amor à literatura, e se ele não a tivesse elogiado de forma hiperbólica, talvez ela tivesse tido com a escrita a mesma relação que teve com a pintura. ”Os livros foram saindo. Quase sempre breves, sempre elogiados. Inês lembra como a avó estava insegura quanto à publicação de Seta Despedida (1995). “Receava que fosse muito mórbido. Perguntou à minha mãe o que ela achava. Depois do meu avó, a minha mãe passou a ser a sua segunda leitora. ” Teve o aval de ambos e esse livro de contos, o último, foi publicado e ganhou um prémio, tal como outros títulos. Em 1992, a escritora chegou mesmo a receber a Ordem do Infante D. Henrique. Nada que a fizesse sobressair. Sempre fora assim, mesmo quando Maria Judite de Carvalho surgia citada a par de outros nomes de mulheres da mesma geração: Natália Nunes, Irene Lisboa, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís. “Ela sentia-se literariamente muito próxima de Irene Lisboa”, sugere Inês. Mas se sempre se foram estabelecendo paralelismos, há, contudo, um que se destaca, com uma mulher de outro continente: Clarice Lispector (1920-1977). Clarice e Maria Judite, as duas muito marcadas pelo mesmo livro de base: O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Uma e outra fixadas no mesmo desassossego íntimo do feminino, na solidão. Com Maria Judite, no entanto, a rasgar esse negrume com um humor tantas vezes surpreendente. Inês Fraga gostaria que a avó pudesse ressurgir, nem que fosse apenas com um pouco da luz que agora incide sobre Clarice. “Ela estava dispersa, inacessível a muitos leitores, e agora vai ter uma casa única e todos os livros disponíveis”, salienta Sara Lutas, que sublinha a intemporalidade da obra de Maria Judite de Carvalho. Sara e Inês convergem no discurso sobre a escritora – "foi única”, dizem quase em coro – e partilham uma inquietação: aplicar ou não o Acordo Ortográfico ao textos originais. Inês explica. “Conhecendo a minha avó, sei que ela não gostaria deste acordo. Mas eu tenho uma Maria Judite em casa”, diz, referindo-se à filha de dez anos que já leu algumas coisas da bisavó, “e ela aprende com ele, e como ela todas as pessoas da geração dela". Esta edição, pergunta, "é para apresentar a Maria Judite de Carvalho a novos leitores ou para mantê-la num nicho"? "Sei que muita gente vai condenar esta opção, mas ela foi feita de modo muito pensado e consciente. Por exemplo, o Tanta Gente, Mariana faz parte do Plano Nacional de leitura, é uma das obras recomendadas no 12. º ano. Isso pesou. Tudo o resto foi respeitado, o modo como ela grafa os diálogos, por exemplo, com aspas no primeiro e no último livros e travessões em todos os outros”, argumenta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Queremos que seja lida pelos mais novos, achámos que o mais importante é que seja mais lida”, diz Sara. Não é uma solução pacífica, concluem, e Inês tenta apaziguar-se. “O nome da minha avó era Judith e ela acabou por grafá-lo de outra forma, Judite, fez essa cedência, talvez tivesse concordado com esta. Era uma mulher sensata”, sorri, confessando que entretanto houve mais propostas de outras editoras para publicar a obra da avó, mas que a decisão já estava tomada. Na Minotauro, cada volume será antecipado por um texto de enquadramento escrito à época da publicação original. O primeiro é assinado por Urbano Tavares Rodrigues e é sobre Tanta Gente, Mariana. Os restantes volumes sairão de acordo com a ordem cronológica: o segundo trará Paisagens sem Barcos (1963), Os Armários Vazios (1966) e O Seu Amor por Etel (1967); o terceiro Flores ao Telefone (1968), Os Idólatras (1969) e Tempo de Mercês (1973); o quarto terá A Janela Fingida (1975), O Homem no Arame(1979) e Além do Quadro (1983); o quinto, Este Tempo (1991), Seta Despedida (1995) e os já póstumos A Flor Que Havia na Água Parada (1998) e Havemos de Rir (1998); e, por fim, o sexto corresponderá aos Diários de Emília Bravo (2002). Inês Fraga leu todos estes livros e espera que as duas filhas, Maria Judite e Clarice, o possam fazer com a mesma alegria e o mesmo deslumbramento. “A minha avô ensinou-me o essencial sobre o feminino. Sempre a vi serena e um dia surpreendi-me com o modo como estava curvada. Ela foi encolhendo e eu não dei por nada a não ser quando um dia a vi caminhar na rua. Ela muito pequenina ao lado do meu avô. Foi assim que a vi pela última vez, a caminhar de braço dado com ele pouco antes de morrer. ”
REFERÊNCIAS:
Vianna da Motta, o mestre infalível
Biblioteca Nacional de Portugal celebra os 150 anos do nascimento do grande pianista, compositor e pedagogo. Exposição documental propõe um percurso pela vida e pela obra deste homem "a quem nenhum domínio da arte era estranho". A partir desta quinta-feira e até 14 de Setembro. (...)

Vianna da Motta, o mestre infalível
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Biblioteca Nacional de Portugal celebra os 150 anos do nascimento do grande pianista, compositor e pedagogo. Exposição documental propõe um percurso pela vida e pela obra deste homem "a quem nenhum domínio da arte era estranho". A partir desta quinta-feira e até 14 de Setembro.
TEXTO: O pianista e compositor José Vianna da Motta (1868-1948), cuja dupla efeméride dos 150 anos do nascimento e dos 70 anos da morte se assinala com uma exposição documental na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) que é inaugurada esta quinta-feira, foi uma das personalidades mais notáveis da história da música em Portugal e um dos poucos artistas portugueses cuja carreira alcançou verdadeira projecção internacional. Fernando Lopes-Graça, que foi seu discípulo, considerava-o “um artista grande de mais para o nosso pequeno meio”. Às actividades de intérprete, pedagogo, compositor, musicógrafo, conferencista e maestro, Vianna da Motta associava uma vastíssima cultura artística, literária e filosófica que fez dele um precursor em Portugal do modelo do “músico-intelectual”. Formou sucessivas gerações de pianistas, cujo legado interpretativo se prolonga até hoje, contribuiu para uma viragem nos padrões do ensino da música e foi um dos primeiros compositores portugueses a preocupar-se com a incorporação da música tradicional e da poesia culta do seu país na criação musical erudita, à semelhança do que se passava com as correntes ligadas ao nacionalismos musicais oitocentistas. A mostra disponibilizada pela BNP é constituída por materiais provenientes do seu espólio que se encontra na Área de Música daquela instituição desde 1997. No ano do cinquentenário da morte do compositor (1998), uma exposição no Museu da Música, da qual existe um excelente catálogo coordenado por Maria Helena Trindade e Teresa Cascudo, tinha mostrado já parte deste acervo, mas entretanto passaram 20 anos e surgiram novas investigações e publicações. Para Sílvia Sequeira, organizadora da nova exposição e responsável pela Área de Música da BNP, “todas as ocasiões são boas para relembrar o legado desta figura maior da música portuguesa”. Apesar das amplas dimensões do espólio que se encontra na biblioteca, alguma documentação encontra-se ainda na posse da família, mas os herdeiros irão fazer a doação de mais algumas peças à BNP na inauguração, que incluirá um momento musical pelo Ensemble Mpmp. A mostra inclui manuscritos autógrafos, diários, correspondência, programas de concertos, recortes de imprensa, fotografias, partituras impressas (muitas delas anotadas pelo próprio Vianna da Motta), gravações, monografias da autoria do músico e estudos posteriores de outros autores. “O percurso é ao mesmo tempo cronológico e temático, procurando mostrar as principais facetas da carreira profissional, mas também aspectos da vida pessoal”, diz Sílvia Sequeira. “À medida que vamos mergulhando no espólio, aproximamo-nos mais do músico, mas também do homem. Vianna da Motta era muito metódico, anotava tudo. Temos por exemplo uma colecção de agendas que percorre mais de três décadas, a partir das quais é possível reconstituir passo a passo o seu dia-a-dia. ”Outra curiosidade são os cartazes de todas as produções de Wagner a que o músico assistiu em Bayreuth, tendo anotado na planta do teatro, no verso de um deles, os lugares em que se sentava em cada récita. A responsável pela Área de Música da BNP refere que Vianna da Motta era alguém que procurava incansavelmente o aperfeiçoamento, com grande consciência dos sucessos mas também das dificuldades. Por isso escolheu como título da exposição a expressão “Non sine altera” (não há uma sem a outra), inscrita no ex-libris do compositor, formado por duas coroas entrelaçadas, uma de louros e outra de espinhos. Nascido em São Tomé em 1868, José Vianna da Motta mostrou desde cedo grande talento musical, apresentando-se como menino prodígio em vários concertos que tiveram eco na imprensa lisboeta. O pai era farmacêutico e músico amador e tratou de garantir meios financeiros para que o filho prosseguisse a sua formação no estrangeiro. Conseguiu que o jovem Vianna da Motta tocasse perante a família real em 1874, tendo obtido, a partir dessa data a protecção do rei D. Fernando II e da sua segunda mulher, a condessa d'Edla, antiga cantora de ópera. Aos 14 anos, Vianna da Motta concluiu os seus estudos no conservatório de Lisboa e em 1882 partiu para Berlim, onde estudou com Xaver Scharwenka e Carl Schaeffer, membro da Sociedade Wagneriana. Em 1885, foi um dos últimos alunos de piano de Franz Liszt em Weimar e, em 1887, frequentou o curso de interpretação pianística de Hans von Bülow, experiência marcante na sua formação como intérprete. Essas aulas são descritas com detalhe nos meticulosos diários que o jovem Vianna da Motta escreveu durante a primeira década que passou na Alemanha e que se encontram também no espólio da BNP. Testemunho precioso do seu desenvolvimento humano e artístico e da forma como assimilou esse novo mundo em direcção a uma simbiose cultural luso-alemã, os Diários (1883-1893) foram editados pela BNP e pelo CESEM em 2016 num imponente volume coordenado pela musicóloga Christine Wassermann Beirão e pela cantora Elvira Archer, responsável pelas traduções e apaixonada intérprete e estudiosa da obra vocal do compositor. No prelo encontra-se também a publicação das Cartas de Portugal a Margarethe Lemke (1885-1908), cantora que foi a sua primeira mulher, com organização e notas de Christine Beirão. Vianna da Motta realizou a sua primeira digressão europeia como pianista em 1888, acompanhando o violinista Pablo Sarasate em Copenhaga e Helsínquia e o violinista Tivadar Nachez em Moscovo e São Petersburgo. Um jornal dinamarquês refere “o nível superior de rara distinção” daquele “português de 19 anos que o Sr. Sarasate só viu no dia anterior”, mas esta foi só uma das muitas menções elogiosas publicadas na imprensa da época. A intensa actividade como intérprete nos anos seguintes continuou a merecer o aplauso da crítica internacional, principalmente na qualidade de intérprete de Liszt, Bach e Beethoven. Em 1903, o cronista da Pall Mall Gazette de Londres afirma que o “sr. Vianna da Motta pertence à categoria dos maiores intérpretes de piano vivos” e que se tratava de “um artista da mais rara inteligência” e “génio”. Apesar de ter fixado a sua residência em Berlim, Vianna da Motta apresentou-se regularmente em Portugal, principalmente em Lisboa e no Porto. Fez a sua primeira digressão americana em 1892 e tocou pela primeira vez no Brasil quatro anos mais tarde com o violinista Bernardo Moreira de Sá. Em Nova Iorque conheceu o compositor, pianista e maestro Ferruccio Busoni, com quem viria a trocar uma interessante correspondência, publicada pela Caminho. Foi o primeiro pianista português a tocar em Lisboa as 32 sonatas para piano de Beethoven na mesma série de concertos (em 1927, no salão do Conservatório Nacional) e um dos raros a ter em repertório toda a produção do grande compositor alemão. No início do século XX, Vianna da Motta desenvolveu uma intensa actividade como professor em Berlim, mas com o início da Primeira Guerra Mundial perdeu o visto para permanecer na Alemanha, passando a leccionar na Escola Superior de Música de Genebra. Na Alemanha tinha aprofundado a sua cultura musical e intelectual e definido a sua personalidade artística a partir do legado da história, representado nas obras de Bach e de Beethoven, e da necessidade de procurar ligações com o resto das artes e com a filosofia, na esteira do wagnerismo e dos ideais pedagógicos de Liszt. Entre os seus numerosos alunos contam-se muitos pianistas de relevo, entre os quais Elisa de Sousa Pedroso, o compositor Luiz Costa e a sua filha Helena Sá e Costa, Campos Coelho (que veio a ser o professor de Maria João Pires), José Carlos Sequeira Costa, Maria Cristina Lino Pimentel, Nella Maissa e Maria da Graça Amado da Cunha, assim como o compositor Fernando Lopes-Graça. Em paralelo com a actividade artística, publicou regularmente artigos sobre a técnica e interpretação pianísticas e estudos sobre Wagner e Liszt; foi crítico musical e escreveu numerosos artigos para revistas especializadas alemãs e portuguesas. Em 1917 regressou definitivamente a Lisboa para assumir a direcção do Conservatório Nacional. Nesse cargo, que ocupou até 1938, coordenou em conjunto com Luís de Freitas Branco uma reforma curricular que incluía novas disciplinas de música e de cultura geral. Foi ainda director musical da Orquestra Sinfónica de Lisboa entre 1918 e 1920 e fundou, em 1917, a Sociedade de Concertos de Lisboa. A renovação do gosto musical era uma das sua preocupações, sendo bastante crítico em relação às programações do Teatro Nacional de São Carlos e à cultura operática italiana que continuava a atrair o público em detrimento dos concertos sinfónicos e do repertório germânico. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A actividade de Vianna da Motta como compositor concentrou-se principalmente entre 1881 e 1908. Ainda criança e adolescente compôs peças para piano que reflectem o gosto da época (marchas, mazurcas, valsas, polcas, variações e fantasias) e durante o período de formação na Alemanha dedicou-se à criação de composições instrumentais nos géneros clássicos e canções para voz e piano sobre textos alemães (uma recente edição crítica realizada por João Paulo Santos foi publicada na nova colecção de Partituras do Património Lírico Português, editada pelo Teatro Nacional de São Carlos e pela Imprensa Nacional). As obras compostas entre 1893 e 1908 caracterizam-se pela inspiração na canção tradicional portuguesa, incluindo peças para piano como as Rapsódias portuguesas, os três cadernos de Cenas portuguesas e a Balada op. 16. Vianna da Motta distinguia claramente as obras em que a música tradicional era usada como elemento de “cor local” das que tinham um objectivo programático de carácter nacionalista como as Canções portuguesas op. 10, a Invocação dos Lusíadas e a Sinfonia "À Pátria", cujos andamentos são precedidos por epígrafes retiradas de Os Lusíadas. Para o compositor, a “expressão para o sentimento da nação” era o objectivo mais alto ao qual devia aspirar a criação musical, mas sem fazer concessões à facilidade. Conforme disse em 1940 numa entrevista a Lopes-Graça, “o alargamento da cultura musical não se deve fazer abaixando o nível da música, mas sim procurando elevar o povo às alturas das grandes obras-primas”. Vianna da Motta morreu a 1 de Junho de 1948, em Lisboa. No obituário publicado no jornal O Século, Luís de Freitas Branco escreveu: “Para o público, Vianna da Motta era o músico de génio que ele via inclinar-se com singela majestade nos estrados dos palcos, perante as intermináveis ovações. Para quem teve a felicidade de com ele privar, havia além do genial artista o grande intelectual [. . . ]. Para nós músicos ele foi o mestre infalível a quem nenhum domínio da arte era estranho. ”
REFERÊNCIAS:
Foi preciso esperar mais de meio século por este Coltrane
Se já esperámos 55 anos, podemos esperar mais 20 dias. O quarteto do saxofonista John Coltrane, que morreu há 40 anos, gravou em 1963 uma sessão de estúdio que permaneceu até aqui desconhecida. Foi convertida agora em álbum e tem lançamento marcado para 29 de Junho. (...)

Foi preciso esperar mais de meio século por este Coltrane
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.166
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se já esperámos 55 anos, podemos esperar mais 20 dias. O quarteto do saxofonista John Coltrane, que morreu há 40 anos, gravou em 1963 uma sessão de estúdio que permaneceu até aqui desconhecida. Foi convertida agora em álbum e tem lançamento marcado para 29 de Junho.
TEXTO: Both Directions at Once: The Lost Album era mesmo um álbum perdido, mas acabou por ser encontrado. É o registo de uma sessão de estúdio do quarteto clássico do saxofonista e compositor John Coltrane, nome maior da música e uma das lendas do jazz norte-americano. Do álbum que tem lançamento marcado para 29 de Junho, apesar de ter sido gravado 55 anos antes, fazem parte cinco versões de temas conhecidos e dois inéditos: Untitled Original 11383 e Untitled Original 11386. “Isto é comparável a encontrar-se uma sala nova na Grande Pirâmide”, diz Sonny Rollins, da mesma geração de John Coltrane (1926-1967) e saxofonista como ele, citado pelo diário britânico The Guardian. Neste novo álbum cujo lançamento foi noticiado – e celebrado – em todo o mundo, o músico lendário tem a seu lado McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria). Estávamos em Março de 1963 e o quarteto estava a meio de uma estadia de duas semanas no clube nova-iorquino Birdland. No dia seguinte, lembra o jornalista Iker Seisdedos no espanhol El País, a mítica formação gravaria um dos seus maiores sucessos comerciais com o cantor Johnny Hartman, (John Coltrane and Johnny Hartman, 1963, Impulse! Records). Talvez tenha sido a antecipação do sucesso do disco com Hartman que levou a que a sessão do dia anterior ficasse por divulgar, defende Jamie Krents, o homem que levou a bom porto a presente edição enquanto executivo da Impulse!, hoje parte da Universal, um dos gigantes da indústria discográfica. Os dois inéditos, a que Coltrane não chegou a dar nome, juntam-se nesta sessão de estúdio em Englewood agora passada a ábum a versões de temas já registados: Slow blues, One up, one down, Impressions, Nature boy (de Nat King Cole) e Vilja (esta última da opereta A Viúva Alegre, do compositor austríaco Frazn Léhar). “Isto é o quarteto do Coltrane a começar a dirigir-se para a sua última fase, estável e sem surpresas, quando eles tocavam com frequência o mesmo punhado de canções”, disse ao Guardian Ben Ratliff, autor de Coltrane: The Story of a Sound. “Não há aqui um grande conceito, um grande design. Mas ele experimenta algumas melodias novas, toca um blues estranho, e faz uns pequenos ajustes em Impressions – e isso já é muito. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A gravação feita naquele 6 de Março de 1963 ficou perdida durante anos porque, ao que parece, não havia rasto de qualquer master no arquivo do talentoso e histórico engenheiro de som que a registou, Rudy van Gelder. Foi Coltrane quem, no fim desse dia, levou uma cópia para casa. Vivia na altura com Juanita Naima Grubbs, a sua primeira mulher (a mulher para quem escreveu o clássico Naima). Depois do divórcio, a ex-mulher do músico ficou com essa cópia e com outros materiais que sobraram desse álbum mítico chamado A Love Supreme. Quando morreu, em 1996, este espólio foi confiado à filha de um casamento anterior, Antonia, que o músico adoptara quando tinha apenas cinco anos. Depois de chegar a acordo com Antonia, a discográfica reuniu-se com Ravi Coltrane, filho de John, que morreu aos 40 anos com um cancro no fígado, e da pianista Alice McCleod, sua segunda mulher. Jamie Krents jamais consideraria editar algo que Ravi, saxofonista como o pai e responsável pela gestão do seu legado, considerasse não ter qualidade suficiente. Ravi Coltrane ficou surpreendido com o achado e com a coerência do registo e concordou com a sua edição. Afinal, dizem os críticos, aquele quarteto com que Coltrane gravou o álbum homónimo, assim como A Love Supreme ou Ballads e que viria a dispersar em 1965, foi um dos mais memoráveis da história do jazz. Ben Ratliff não tem dúvidas de que Both Directions at Once mostra a força desta formação, mostra “quão poderosas eram a sua vontade e a sua capacidade de concentração”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha concentração filho mulher homem casamento divórcio
O vício das ondas que vence o medo
Desde há uns anos, a Nazaré transformou-se na meca dos surfistas mundiais das ondas gigantes. Agora, dizem, é tempo de retribuir. Por isso, juntaram-se e criaram formas de dar a provar este mar. (...)

O vício das ondas que vence o medo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Desde há uns anos, a Nazaré transformou-se na meca dos surfistas mundiais das ondas gigantes. Agora, dizem, é tempo de retribuir. Por isso, juntaram-se e criaram formas de dar a provar este mar.
TEXTO: “Quem tem canhão, tem medo”, dizem-me em tom jocoso, adivinhando o nervoso miudinho que, depois de uns dias a achar que nada havia a temer, se tinha adensado quando faltavam apenas umas horas para a experiência. As previsões do estado do mar não ajudavam: “Vai estar grande”, alertar-me-ia outro amigo. “Está três metros de oeste com período de 15” – sabe-se lá o que isto quer dizer, mas também não pergunto com medo da resposta… – “dá ondas de seis no canhão… seis de surfista, que é mais de gente” – e aqui, eu, gente, sinto-me tudo menos apaziguada. “Tenta não morrer”, remata. Para a próxima, é melhor não perguntar nada a ninguém. O desafio é simples: ir até à zona do canhão da Nazaré com quem o trata por tu: o norte-americano Garrett McNamara, que colocou as ondas da vila portuguesa no mapa internacional do surf quando, em 2011, surfou uma vaga de 23, 8 metros, inscrevendo o seu nome no Livro dos Recordes do Guinness (marca que acabaria por suplantar dois anos depois numa onda de 30 metros). McNamara, porém, não enfrentou o desafio de levar impreparados jornalistas para o mar sozinho e chamou um verdadeiro exército de pesos-pesados para o acompanhar: entre outros, Hugo Vau, actual detentor do recorde depois de vencer a onda mais alta (35 metros, a 17 de Janeiro deste ano), o norte-americano Toby Cunningham, o italiano Alessandro Marcianò ou o lisboeta Sérgio Cosme, todos presentes no Surfer Wall, projecto museológico, criado em 2016, que pode ser visitado no Forte de São Miguel Arcanjo. Mas comece-se pelo início. E, depois do discurso de “nunca ninguém se arrependeu de ter ido; apenas de não o ter feito”, segue-se a primeira prova hercúlea: enfiar o corpo num fato que, à primeira vista, diria que nunca me serviria. Aliás, nem consigo imaginar como deslizar por tão apertada entrada. Uma perna ainda vá… Ambas? Lembro-me da minha primeira vez na neve, em que o cansaço de calçar as botas foi tal que quando cheguei, por fim, às pistas acabei por cair para o lado – hiperventilar antes de uma actividade física de tamanha envergadura, já aprendi, não é uma boa ideia. Mas, com mais um puxão daqui e outro dali (e uma mãozinha da parceira do Diário de Notícias – que a camaradagem no mar começa em terra), estou finalmente pronta para seguir para o cais, de fato bem justinho para manter o corpo quente e de colete salva-vidas bem apertado, que isto é seguro mas o grau de imprevisibilidade é considerável. Por todo o grupo, na maioria constituído por jornalistas, convidados para usufruir de uma experiência que pode ser vivida por qualquer um (“mas é melhor com o tempo mais ameno”), treme-se. De frio, certamente. Ainda que não me livre do pensamento “onde estava eu com a cabeça quando achei que isto era uma boa ideia”. Já não há volta. Ouvem-se risos nervosos e lê-se a coragem em rostos de expressão quase vazia. Há ainda quem tenha optado por um fato impermeável apenas para não molhar a roupa que manteve por baixo, deixando claro desde logo que dos barcos não sai. Não será um problema… A bordo destes também há divertimento. Já eu sinto-me preparada para abraçar qualquer actividade – ou quase… Mas seguimos bem acompanhados: além da inapta tropa de repórteres, Rita de Melo Ribeiro, que terá sido a primeira mulher portuguesa a entrar no mar de prancha, e o actor Afonso Vilela que, ainda que não tenha “a experiência deles”, referindo-se aos nossos anfitriões, soma três décadas de paixão pelas ondas. Ao menos, neste barco alguém sabe ao que vai. Lino Bogalho, da empresa Nazaré Water Fun, dá o briefing, depois de estarmos todos sentados nos assentos azul-turquesa do Sprum, um jetboat que se estreou há um ano nas águas nazarenas: “E se a certa altura acharem que vão saltar borda fora isso é NORMAL”, sublinha. “Haverá uma altura em que terão água pela cintura, o barco vai encher de água… NORMAL!”. Tudo normal, portanto, ainda que o aperto que sentimos no estômago nos indique que isto é tudo menos normal… Há quem jure que irá entrar em pânico, quem prometa gritos e quem mantenha uma postura imperscrutável. Nos 12 lugares disponíveis, temos estreantes para todos os gostos. “Isto não devia ter cintos?”, pergunta alguém. “Não se preocupem. Se voarem do barco, uma das motos de água apanha-vos. ” Demasiado tarde para fugir; entretanto, já zarpámos e o baptismo faz-se poucos segundos depois com um afundanço que nos deixa logo molhados e a saborear o sal do Atlântico Norte. No fundo, é como andar de kart ou estar dentro de um automóvel no campeonato de drift: há peões, afundanços, acelerações poderosas, travagens à queima-roupa. Sem perigo – ainda que de cada vez que o mar nos abrace os pensamentos se gelem. E naquela curva mais apertada, confesse-se, não se resiste a fechar os olhos (que seria a táctica mais usada durante o dia para vencer o medo). Enquanto driblamos as águas ainda no conforto do porto, outros já seguiram para mar aberto. E é com eles que vamos ter logo a seguir num dos barcos de apoio. Pelo sim pelo não, escolho um lugar na popa, onde se sente menos a ondulação. Mas, à medida que o oceano se abre e a confiança cresce, depressa mudo para um espaço onde se pode viver e testemunhar melhor as experiências. À vez, vamos sendo levados às ondas da praia do Norte. Afinal, não há vagas de três nem de seis metros, mas o vento não permite grandes antevisões da direcção que a ondulação toma. Ainda assim, depressa se percebe que ninguém está aqui disposto a correr riscos, sobretudo o nosso divertido anfitrião. A gargalhada de McNamara atravessa marés e chega-nos quase como um tranquilizante, enquanto o ouvimos sobre esta enorme depressão geológica que permite a formação de ondas gigantes. Quando já praticamente toda a gente foi (e, importante!, voltou), reúno forças para viver a experiência: pode-se fazê-lo montado numa prancha de surf puxada pelo jet ski, num sled – uma espécie de prancha de bodyboard agarrada à mota de água – ou simplesmente à pendura. Prefiro a última e sou levada por Toby Cunningham, que em 2003 quebrou o recorde mundial de ondas gigantes no México e que actualmente vive na Nazaré seis meses por ano. Esclareço-lhe os meus receios, mas para Toby este é apenas uma espécie de “passeio no parque”. Depressa ruma às ondas – “temos que ir tirar uma foto”, desafia-me. E há alternativa?, ainda penso… Não há nem é suposto existir. Vamos, por isso, em ritmo acelerado, aproveitando algumas ondas e evitando outras, numa experiência tão radical quanto espiritual (para o comum dos mortais como eu, sublinhe-se). Não tanto, porém, como aquela que levou um repórter de imagem à praia, após a mota do experiente Hugo Vau se ter virado. Nada que os demovesse e, sem que tivéssemos tido tempo de perceber o incidente, já ambos estavam de volta à acção – e com uma aventura e peras para relatar e, graças à boa-vontade da câmara submersa, mostrar. Está frio e, enquanto os barcos se vão enchendo de corpos enregelados a exibirem lábios quase roxos, há quem não resista a tanta movimentação e acabe mesmo por ir “borda fora”. Nada de estranho e nada que não se trate depressa: “O truque é olhar o horizonte”, aconselham-nos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Entretanto, o jetboat vai recolhendo quem quer repetir a experiência em mar aberto, e o divertimento a bordo é visível e audível. Já eu só penso em voltar a “cavalgar ondas”, mas está quase na hora do regresso. “E posso regressar de mota de água?”. Claro que sim. Tenho como guia o italiano Marcianò que, desde há uns anos, também elegeu a Nazaré como a sua casa de Inverno. Mas a nossa viagem não é a direito. . . Vamos, antes, aproveitando toda e qualquer onda, subindo até à crista e apanhando a boleia salgada, voltando atrás quando assim se justifica – e justifica-se muitas vezes. . . Já quase toda a gente voltou a terra. Excepto nós, outra mota com pendura e o Sprum. E, entre brincadeiras, vamos adiando o fim. Já sem ponta de medo e com a clarividência de que estar aqui, neste mar, com estas pessoas, a viver todas estas sensações só pode ser descrito como um privilégio que, ao fim de apenas umas horas, já sentimos como quase um vício. A Fugas esteve na Nazaré a convite da Mercedes-Benz Portugal
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Os tintos criados para temperar o calor
O serviço a temperaturas mais baixas, a frescura acídula e o potencial para temperar o calor não são apenas atributos dos vinhos brancos. Em Portugal há um conjunto de castas, de regiões e de produtores a criar tintos mais leves que se bebem com especial prazer nos dias quentes. (...)

Os tintos criados para temperar o calor
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: O serviço a temperaturas mais baixas, a frescura acídula e o potencial para temperar o calor não são apenas atributos dos vinhos brancos. Em Portugal há um conjunto de castas, de regiões e de produtores a criar tintos mais leves que se bebem com especial prazer nos dias quentes.
TEXTO: É hoje certo, sabido e assumido que a verdadeira revolução dos vinhos nacionais acabou por se concretizar nos vinhos brancos, os antigos parentes pobres da equação. Produtores e consumidores passaram décadas seguidas esquivando-se aos vinhos brancos aplicando pretextos variados para não os levar muito a sério. Por um lado a maioria dos consumidores entrincheirava-se em chavões vazios que garantiam que “o verdadeiro vinho era o tinto” enquanto o vinho branco pouco mais seria que um refresco. Ou que as propriedades medicinais do consumo de vinho, sempre de forma regrada, só seriam verdadeiramente quantificáveis no caso dos vinhos tintos. A maioria dos produtores e críticos defendia que as castas brancas nacionais seriam de qualidade inferior às castas tintas, que o clima maioritariamente quente e soalheiro não ajudava, que Portugal estaria fadado para a produção de vinhos tintos e generosos. E de repente tudo mudou, tanto do ponto de vista dos consumidores como dos produtores. O consumo de vinho branco passou a ser recomendado, descobriu-se por magia que afinal as calorias dos vinhos brancos até eram menores que nos vinhos tintos e que finalmente já era socialmente conveniente beber vinho branco. Ao mesmo tempo críticos e produtores descobriram dezenas de castas brancas nacionais estupendas, o clima passou a ser benéfico, a tecnologia ajudou em muitas operações e num ápice passámos a valorizar os vinhos brancos. O que seria excelente e verdadeiramente democrático se já tivéssemos ultrapassado o último tabu, o preço que estamos dispostos a pagar pelo vinho. Porque por muita igualdade de género que queiramos alardear a verdade é que ainda sentimos dificuldade extrema em aceitar que os vinhos brancos tenham preços equivalentes ou mesmo superiores aos vinhos tintos, sinal que de mesmo que de forma subtil, continuamos a estabelecer diferenças qualitativas entre os dois estilos. Agora que o Verão se aproxima, que as temperaturas escalam, que as esplanadas se começam a encher, que os pratos mais leves de verão ganham protagonismo seria de supor que os vinhos tintos perdessem lugar. Assim o é para os tintos mais pesados, de maior grau alcoólico, vinhos mais temperados pela madeira, tintos mais maduros e pesadotes. Esses acabam quase condenados pelos calores do estio. A ideia de manter refeições pesadas que se prolongam pela tarde ou noite dentro enquanto o fogo crepita na lareira e quando começamos a sentir um calor interior é algo que deixa de ser apetecível para passar a ser um pesadelo. O que não significa que o tempo dos vinhos tintos tenha terminado ou que estes passem a estar banidos da mesa. Temos é de mudar os protagonistas dando espaço e tempo a outro estilo de tintos, vinhos mais leves, menos alcoólicos, mais frescos e acídulos que os tintos de inverno. Que não se confunda a ideia de leveza com algo deslavado e sem graça, vinhos aguados e desbotados ou bombinhas de fruta que pouco mais seriam que uma versão ligeiramente mais musculado da sangria. Muitos destes vinhos tintos de verão são intensos, repletos de tensão, vinhos que se destacam pela qualidade e que não devem ser encarados como um parente menor dos chamados tintos de inverno. Quando se refere a ideia de leveza o contexto está mais ajustado à textura, sensação de corpo e volume alcoólico que à intensidade de sabor ou ao carácter do vinho. Não vamos querer taninos poderosos, sabores pesados, bocas cheias e híper concentradas. Mas muitos destes tintos de verão são vinhos enérgicos, veementes, tensos, frutados ou mais contidos, sempre frescos e com capacidade de fazer desejar mais um copo. Vinhos sérios ou mais fáceis que com frequência de simples não têm nada… mas sempre tintos capazes de refrescar. E refrescar é uma dessas palavras-chave integrais aos tintos de verão. Não só na sua capacidade de dessedentar mas numa perspectiva mais directa e sobretudo mais prática, na temperatura de serviço. A ideia tão instalada de beber tintos à temperatura ambiente é um conceito ainda que se torna ainda mais surreal e afastado da realidade quando falamos em tintos de verão. Ou quando falamos da realidade do clima nacional, tanto no interior como no litoral, que no verão é capaz de roçar a canícula. Por isso se torna imperioso arrefecer os tintos de verão baixando a temperatura para níveis que poderão parecer excessivos para quem continua a querer propagar o mito da temperatura ambiente. Os estilos mais leves, jovens e descomprometidos beneficiam se forem servidos a temperaturas ainda mais baixas, não muito distantes do intervalo superior dos vinhos brancos. Por serem menos taninosos e intensos, e tradicionalmente mais frutados, melhoram se no verão forem refrescados até próximo dos 13C. Pode sempre seguir à risca o velho conselho de quanto menos interessantes e mais jovens e inconsequentes forem os vinhos mais frios devem ser servidos. Mesmo os tintos de verão mais sérios e austeros não deverão ser servidos acima dos 18 graus, temperatura a que costumam começar a perder os tais qualificativos de refrescar e dessedentar. Sobretudo porque, tendo em conta a temperatura ambiente elevada, o vinho vai rapidamente aquecer, característica que conduz à segunda obrigação, a presença de uma manga refrescante que permita manter um equilíbrio saudável que não transforme o vinho em sopa. Mas atenção, resista à tentação de baixar demasiado a temperatura. A partir dos 12C os taninos passam a dominar o palato, os sabores perdem-se e o vinho passa a exibir um cunho rude que mitiga ou anula o prazer. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Portugal procure de preferência vinhos de regiões de clima mais moderado, temperadas pela frescura retemperadora do Atlântico ou suavizadas pela bonança da altitude. Destacam-se assim de forma natural os vinhos oriundos das regiões do Vinho Verde, Bairrada, Lisboa, Península de Setúbal, Madeira e Açores. Denominações como o Douro ou o Alentejo deveriam sentir mais dificuldades neste capítulo mas as vinhas de altitude da Serra de São Mamede e os planaltos altos do Douro, sobretudo em redor de Alijó, garantem a temperança necessária que o interior continental raramente oferece. O Dão é outro caso paradigmático onde o clima continental consegue ser fintado por vinhas de altitude e por um sistema montanhoso que protege a região de muitas das intempéries do calor. É destas regiões que provêm os quatro vinhos de verão recomendados neste texto. Quatro vinhos muito sérios, cada um à sua maneira, mas quatro vinhos que são excelentes por si próprios. Que o período de verão ainda lhes seja mais favorável é uma consequência do estilo, das escolhas enológicas dos autores e da bondade da natureza. Vinhos tintos provenientes da região do Vinho Verde, Bairrada, Dão e Alentejo. Poderiam ser muitos mais, de qualquer uma das denominações nacionais mas para este artigo foram escolhidas as quatro propostas que se seguem. Quatro tintos de baixo teor alcoólico, todos de guarda, os quatro beneficiários de temperaturas de serviço mais baixas. Soalheiro Oppaco 2014 Vinhos Soalheiro, Monção Castas: Vinhão, Alvarinho Graduação: 13% Região: Vinhos Verdes Preço: 16. 50€Um tinto que abala as consciências ao misturar duas castas quase opostas, aquilo que os reguladores não gostam de misturar: uma casta tinta com uma casta branca. O Oppaco é um lote de Vinhão, a casta tinta rainha do vinho Verde, com Alvarinho, a casta branca imperial da região que tanto ajudou a elevar a sub-região de Monção e Melgaço aos píncaros dos vinhos brancos nacionais. Uma combinação pouco católica entre a rusticidade da casta tinta com a elegância suprema da casta branca que resulta num tinto delicado mas vivo, elegante mas com o ferrão da acidez e tensão que caracteriza os tintos da região. Um tinto para beber ou guardar dando azo ao raciocínio que os vinhos de verão são sérios. Gilda 2016 Tiago Teles, Lisboa Castas: Castelão, Alfrocheiro, Merlot Graduação: 12. 5% Região: Bairrada Preço: 10. 15€O Gilda 2016 é da autoria de Tiago Teles, um ex-crítico de vinhos que com o passar do tempo se converteu em produtor. O seu primeiro vinho foi precisamente este Gilda, nome do barco da família que ainda hoje navega nos canais da ria de Aveiro, antes de expandir a sua acção para a região dos Vinhos Verdes e Lisboa onde continua a encontrar desafios em vinhas orgânicas. A sua visão assenta na elaboração de vinhos naturais e este Gilda 2016, um lote de Castelão, Alfrocheiro e Merlot, resulta precisamente num vinho autêntico, sem acessórios inúteis, um vinho de prazer que rapidamente obriga à abertura de uma segunda garrafa. Niepoort Rótulo 2015 Niepoort, Vila Nova de Gaia Castas: Touriga Nacional, Jaen, Alfrocheiro Graduação: 12. 5% Região: Dão Preço: 5. 90€O Niepoort Rótulo 2015 é um dos primeiros resultados da incursão pelo Dão da empresa Niepoort, uma aventura que resultou num vinho supinamente fresco, leve e amigo da mesa que junta parcelas de Touriga Nacional, Jaen e Alfrocheiro no lote. Destaca-se a acidez fina, a subtileza da fruta, a alegria da estrutura e a ausência de qualquer peso que o pudesse afastar do prazer de beber um vinho alegre e harmonioso. Dominó 2014 Niepoort Projectos, Vila Nova de Gaia Região: Alentejo Graduação: 11% Região: Alentejo Preço: 23. 50€Um tinto do chefe Vitor Claro procedente de um conjunto de vinhas velhas plantadas há muitas décadas na serra de São Mamede. Um tinto elegante, profundo, muito sério mas simultaneamente etéreo, fresco e elegante. Um tinto do sul que mostra que o interior profundo também é capaz destes atributos quando as vinhas são velhas, de altitudes elevadas e quando o espírito do homem sabe interpretar o que a natureza ofereceu.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave rainha homem consumo igualdade género corpo
Ministra mantém confiança na IGAI, que não viu a mesma violência policial que o MP
Ministério Público concluiu que os agentes protagonizaram actos de tortura, sequestro e outras acções desumanas. IGAI analisou a conduta policial e optou pelo arquivamento do caso, propondo a suspensão de um polícia e a transferência de outro. (...)

Ministra mantém confiança na IGAI, que não viu a mesma violência policial que o MP
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ministério Público concluiu que os agentes protagonizaram actos de tortura, sequestro e outras acções desumanas. IGAI analisou a conduta policial e optou pelo arquivamento do caso, propondo a suspensão de um polícia e a transferência de outro.
TEXTO: A acusação inédita do Ministério Público a 18 agentes da esquadra de Alfragide deixou sob os holofotes da crítica a averiguação feita pela Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) ao mesmo caso. Se, por um lado, o Ministério Público concluiu que os agentes protagonizaram actos de tortura, sequestro e outras acções desumanas, a IGAI analisou a conduta policial e optou pelo arquivamento do caso, propondo a suspensão de um polícia e a transferência de outro. Os agentes recorreram e a decisão disciplinar está pendente. Neste contexto, questionada pelo PÚBLICO sobre as contradições entre o que o Ministério Público concluiu e o que a IGAI observou, a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, reafirmou a confiança na inspectora-geral da Administração Interna, Margarida Blasco. "Tendo a IGAI autonomia técnica à luz da sua lei orgânica, exercendo a IGAI as suas competências no estrito cumprimento da lei, a ministra da Administração Interna mantém naturalmente a confiança na sra. juíza desembargadora, Dra. Margarida Blasco”, respondeu a ministra, através do seu gabinete. Margarida Blasco tomou posse como inspectora-geral em Fevereiro de 2012, indicada pelo então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo. É juíza de carreira e estava na altura no Tribunal da Relação de Lisboa. Antes disso, foi a primeira mulher directora-geral do Serviço de Informações de Segurança (SIS), cargo que desempenhou entre 2004 e 2008. Na justiça, acumulou uma longa experiência, tendo-lhe passado pelas mãos processos como o das FP-25 de Abril, o caso Dona Branca e o processo relativo a Camarate.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei tribunal mulher
Retrato da pornografia infantil em Portugal
Agressores, vítimas, investigadores, legisladores, Judiciária, redes sociais: a Revista 2 foi à procura das várias pontas da rede de pornografia infantil em Portugal. (...)

Retrato da pornografia infantil em Portugal
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Agressores, vítimas, investigadores, legisladores, Judiciária, redes sociais: a Revista 2 foi à procura das várias pontas da rede de pornografia infantil em Portugal.
TEXTO: António sentou-se em frente à televisão. Com o filho João, de nove anos, via um dos telejornais da noite. O pivô apresentou uma e outra peça até chegar à de um homem detido por suspeita de abuso sexual de menores. João tirou bruscamente o comando da televisão das mãos de António. “Pai, não vejas isto!” “Ele nunca tinha feito isso”, lembra António. A criança não explicou a reacção apesar da insistência do pai. Apesar do estranho comportamento, António pensou que João se tinha assustado com a história. Não se falou mais no assunto. António e a mulher Sofia vivem num bairro na margem sul do Tejo com João e dois outros filhos. A única rapariga entre irmãos já saiu de casa. O casal tem uma vida de dificuldades financeiras, motivadas pelo desemprego de ambos e pelos problemas de saúde de Sofia, agravados por um AVC recente. Também António viria a sofrer de um quando soube o que se passava com João. A família orgulhava-se da união e da boa disposição que partilham. João sempre foi o mais animado dos seis. Há três anos, mudou. “Na escola, começou a ter comportamentos estranhos. A mãe apanhou-o com uma navalha a ir para a escola. Disse que era para se proteger. ” António falou com a professora de João, “um apoio constante” na vida da criança. “Tentámos perceber o que ele teria. ”É preciso recuar até 2008, quando aos cinco anos João começou a passar fins-de-semana e alguns dias de férias com a irmã, que tinha ido morar com o então namorado. A casa da jovem não tinha ainda meios para o pequeno João dormir, mas a criança gostava de passar aqueles dias com a irmã. Por vezes, o namorado da jovem pedia ao pai, José, que vivia em Benfica, se podia ficar com a criança até que as coisas melhorassem na casa do casal. E João começou a ir para a casa de José. De início João mostrava-se entusiasmado por ir. Não era o único a frequentar a casa. Filhos de vizinhos de José eram presença frequente no apartamento desarrumado e com condições de higiene questionáveis, mas que desafiavam qualquer dúvida perante a animação dos mais pequenos. A disponibilidade do vizinho para cuidar das crianças era agradecida pelas famílias. Além de ficar com os menores, José alimentava-os, dava-lhes banho e em algumas vezes oferecia-lhes dormida. E foi isso que aconteceu com João, ocasionalmente, até Abril de 2010. “A minha filha telefonou-me um dia a dizer que vinha trazer o menino porque estava a fazer uma birra. Chorava que queria ir para casa dos pais”, recorda Sofia. João nunca explicou porque chorava. A 4 de Setembro de 2012, a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa anunciava no seu site que o Ministério Público tinha proferido despacho de acusação contra um homem, de 53 anos, pela prática de mais de 7200 crimes de abuso sexual de seis crianças e de mais de 156 mil de pornografia de menores. Os crimes tinham sido cometidos entre 2007 e 2011, com menores com idades inferiores a 14 anos, alguns entre os três e os dez. Entre 2009 e início de 2012, o indivíduo “colocou e divulgou na Internet vários ficheiros e videoclips, que exibiam diversas fotografias, imagens e filmes pornográficos de menores de 14 anos, o que fez a partir do seu endereço de correio electrónico e das páginas de Internet”. O homem era José, detido em Fevereiro de 2012. António e Sofia terão ouvido falar da detenção em mais um telejornal. Um telefonema da filha fez a ligação entre o homem da notícia e João. A jovem, que entretanto se separara do namorado, contava que “uma coisa terrível” tinha acontecido ao irmão. O ex-namorado tinha-a contactado para lhe dizer que o pai tinha sido detido. Entre as vítimas, estava João, descoberto pelo rapaz entre fotografias e vídeos que o pai fizera, escondidos numa mala que terá escapado aos olhos da polícia nas operações de busca. A violência a que tinha sido sujeito pelo pai durante cinco anos, entre os sete e os 13 anos, continuava décadas depois. Nunca o terá contado à namorada. “Ficou em estado de choque. Gostava muito do João. Queria falar connosco mas tinha vergonha e medo da nossa reacção. Nunca poderemos culpá-lo nem à nossa filha pelo que aconteceu. Eles não sabiam de nada”, desabafa à Revista 2 António, que não sabia das idas de João para casa de José. António nunca viu qualquer imagem do filho mas sabe que são centenas. Apanhado o “monstro”, o medo continua. “Neste momento, qualquer um pode ter uma fotografia do João e não se sabe se andam a circular na Internet. ” Sofia diz que olhou de relance para uma fotografia exibida em tribunal e que reconheceu o corpo do filho. “Nunca mais fui a mesma. Não tenho alegria e quando sorrio é pelo João”, partilha em lágrimas. À semelhança de outros casos de pornografia e abuso sexual de menores, José ter-se-á aproveitado das fracas condições económicas dos pais de algumas das crianças para se aproximar dos três rapazes e três raparigas, dois deles com apenas três e quatro anos quando começaram a frequentar a casa de Benfica. Desempregado, mas com jeito para a informática, foi acusado de ter usado conhecimentos técnicos para a “cedência e venda” de filmes e imagens “pela Internet a várias pessoas que com ele contactavam através da Internet e/ou o visitavam na sua residência”, como indica um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de Dezembro de 2013, que indefere um recurso apresentado pela defesa. Através da venda de material que recolhia na Internet ou que o próprio produzia, José conseguiu ter rendimentos para aliciar os menores com “videojogos e guloseimas”. A pornografia de menores online terá sido a sua principal fonte de rendimento. Tinha contactos no país e na Holanda. Neste momento, qualquer um pode ter uma fotografia do João e não se sabe se andam a circular na InternetJosé está actualmente a cumprir uma pena de prisão, por cúmulo jurídico, de 19 anos, no Estabelecimento Prisional da Carregueira, em Sintra. O PÚBLICO fez um pedido de entrevista ao recluso à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), que o indeferiu, por considerar que poderia vir a reforçar “marcas estigmatizantes decorrentes da exposição mediática” e subsequentemente causar “prejuízo” para a reinserção social do recluso. José está entre os 272 condenados a cumprir pena em Portugal por abuso sexual de menores e os 27 por pornografia de menores, segundo dados da DGRSP. À Revista 2, a direcção-geral indicou que a maioria dos reclusos condenados por crimes de natureza sexual tem entre os 30 e os 49 anos. A maioria encontra-se a cumprir penas de cinco a dez anos de prisão. O Relatório Anual de Segurança Interna de 2013, o mais recente, indica que naquele ano foram detidas 70 pessoas, incluindo três mulheres, por abuso sexual de crianças, o principal tipo de crime sexual registado no país. Surge em terceiro lugar a pornografia de menores, com 11 detenções. No total, há dois anos, 357 homens e 12 mulheres foram constituídos arguidos por abuso sexual de menores e 36 homens e uma mulher por pornografia de menores. Foram abertos 1227 inquéritos relativos a crimes de abuso sexual de crianças, na sua maioria com idades entre os oito e 13 anos, e 94 outros inquéritos por pornografia de menores. Para centralizar a gestão da informação e o encaminhamento rápido do inquérito para o Ministério Público dos casos dos crimes sexuais cometidos contra crianças através da Internet e de meios informáticos, a Procuradoria-Geral da República decidiu, em 2013, atribuir a tutela destas investigações ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP). Passado mais de um ano dessa tutela, o DCIAP instaurou mais de 195 inquéritos a crimes de pornografia de menores, 87 foram arquivados. 272 pessoas estão actualmente a cumprir pena em Portugal por abuso sexual de menores e outras 27 por pornografia de menores, segundo dados da DGRSPDesde 2007, ano em que o crime de pornografia de menores foi tipificado em Portugal, foram várias as centenas de casos investigados pela Polícia Judiciária. Quando esses casos chegam à Internet, passam para o gabinete de investigação de criminalidade informática da Judiciária, coordenado por Carlos Cabreiro. Falou à Revista 2 atrás da sua secretária nas instalações da Polícia Judiciária (PJ) em Lisboa, onde controla toda a burocracia associada às investigações, desde as iniciadas em território nacional às que começaram noutros países e acabaram por precisar da colaboração da congénere portuguesa. Interpol e Europol fazem parte dos contactos habituais de Carlos Cabreiro e quando se fala em exploração sexual de menores online essa colaboração é frequente. “As denúncias aumentaram após o caso Casa Pia. Desde que se começou a falar de pornografia infantil, também as pessoas começaram a ter mais apetência para estarem atentas e são vulgares as denúncias de particulares”, indicou o coordenador. Carlos Cabreiro exemplifica ainda com o caso do chefe de um agrupamento de escuteiros de Belém, tornado público em Novembro último. No computador do homem de 31 anos foram encontrados milhares de fotografias e vídeos de pornografia infantil, na maioria de meninas entre os quatro e os dez anos. O caso chegou à Judiciária através da Europol. O homem acabou por se suicidar na prisão. “Se pensarmos que dava aulas em três ou quatro escolas e que de um momento para o outro passaram a existir 700 vítimas possíveis, isso causou um alarme social. ” Os telefones da Judiciária não pararam. “Tivemos muitas pessoas a perguntar se os filhos estavam envolvidos no caso. ”E quem são estes indivíduos? Quais são as suas histórias? “Eu não lhe chamo doentes, talvez por formação profissional. Há de facto um conjunto de comportamentos que são desviantes mas não consigo chamar-lhes doentes porque verificamos que alguns têm conhecimentos bastantes, muitos deles têm uma vida estável, têm por vezes até um agregado familiar sem qualquer anormalidade”, diz Carlos Cabreiro. A nível nacional, traçar o perfil de um utilizador ou produtor de pornografia infantil podia ser fácil “há dez ou 15 anos”, admite. A suspeita recaía “num qualquer miúdo da informática, um estudante do Técnico”. “A massificação da informática levou a que esse paradigma e esse estereótipo se tivesse diluído. Agora fala-se de um leque alargado de idades, já não é exclusivo de miúdos. ”Cristina Soeiro e Raquel Guerra, investigadoras do Gabinete de Psicologia e Selecção da Escola da Polícia Judiciária, confirmaram isso quando analisaram perfis destes indivíduos, a pedido da Brigada de Criminalidade Informática e Tecnológica da Directoria de Lisboa e Vale do Tejo da PJ. Olharam para os processos de 26 indivíduos, concluídos entre 2009 e 2014, que “produziram, distribuíram, importaram, exportaram, divulgaram, exibiram ou cederam pornografia de menores” e chegaram a características gerais dos agressores online versus offline. Da amostra analisada, todos homens, portugueses, e com idades entre os 20 e os 69 anos, a maioria era solteira, com habilitações académicas ao nível do secundário e do superior. Em termos profissionais, mais de metade estava activa e os restantes em situação de reforma, desemprego ou a estudar. A maioria vivia em bairros de classe média, mais de 30% com os pais e 11% com a mulher. Perto de 77% era heterossexual e em 61% foram verificadas parafilias como a pedofilia ou o sadismo sexual. A maioria dos 26 homens justificou a motivação para o uso de pornografia infantil com fantasias sexuais e uma pequena percentagem alegou objectivos exploratórios ou económicos. As autoridades confirmaram em mais de 69% dos indivíduos a posse e partilha de material, sendo que mais de 15% ainda produzia conteúdos. Na totalidade dos indivíduos foram encontrados conteúdos com crianças entre os sete e 11 anos, 73% tinham vítimas entre os 12 e 14, havendo ainda crianças entre os meses de idade e os seis anos em mais de 69%. Com base nestes dados, as psicólogas dividiram os agressores em três grupos. O grupo em que predominam as fantasias sexuais e parafilias, e o maior (42%), com vítimas entre 0 e seis anos, preferencialmente meninos, em poses eróticas ou de sadismo. Estes agressores têm entre 20 e 30 anos, habilitações ao nível do ensino secundário e um elevado conhecimento informático. Num outro grupo, o misto, que representa 39% dos casos, os agressores fazem uso da Internet para posse e produção de material, incluindo conteúdos de abuso sexual mais grave. As preferências recaem sobre crianças entre 12 e 16 anos, na maioria raparigas. Os agressores, com idades entre os 31 e 50 anos, têm como motivação a fantasia e interesse sexual e económico e têm um historial de crimes sexuais online. No último grupo, o exploratório (19%), os agressores têm 50 ou mais anos, poucos conhecimentos informáticos mas interesse por imagens de nudez ou erotismo sem actividade sexual. Além da posse de material pornográfico, dedicam-se à partilha e comercialização de conteúdos. As denúncias aumentaram após o caso Casa Pia. Desde que se começou a falar de pornografia infantil, também as pessoas começaram a ter mais apetência para estarem atentas e são vulgares as denúncias de particulares”, indicou o coordenador. No trabalho apresentado em 2014, Cristina Soeiro e Raquel Guerra analisaram fotografias e vídeos através da escala de COPINE, que avalia a severidade das imagens que o suspeito tem em suporte físico ou digital. “Entre os agressores, 90% do material que tinham era de severidade elevada”, concluíram. Nos indivíduos que utilizavam a Internet como uma ferramenta, o estudo também estabeleceu diferenças. “Uma coisa é usar a Internet para fazer download, partilhar e usar para consumo próprio, para fantasias sexuais, por exemplo. Depois, temos indivíduos que também podem fazer isso mas ainda usam a Internet para contactar miúdos, via chat, via Facebook. Isso já é um perfil diferente. Aqui, ainda temos indivíduos que podem usar a Internet como meio de angariação de vítimas presenciais”, explica Cristina Soeiro. Nos milhares de imagens visualizadas pelas psicólogas, o erotismo predominou e as raparigas de países de Leste eram em maior número. A polícia deparou-se ainda com situações de crianças fotografadas ao longo dos anos e as mesmas imagens na posse de vários agressores. A violência sobre os menores foi maior e mais sádica nos filmes do que nas fotografias. 42% dos agressores escolhem vítimas entre 0 e seis anos, preferencialmente meninos. Estes agressores têm entre 20 e 30 anos, habilitações ao nível do ensino secundário e um elevado conhecimento informáticoO conteúdo, a organização, catalogando o material por sexo e/ou idade ou mesmo pela agressão cometida, “tudo são informações que demonstram o nível de gravidade e tendência que o indivíduo tem para o consumo de pornografia de crianças e para determinar se o indivíduo tem ou não uma parafilia”, indica a psicóloga. “Uma coisa é ter crianças abaixo dos dez anos, outra é preferir jovens adolescentes. E rapazes abaixo dos dez ainda é mais grave em termos de reincidência”, reforça. As duas psicólogas preparam-se agora para entrevistar os 26 homens. A conclusão desta parte da investigação ainda não tem data prevista. Os conhecimentos informáticos destes agressores aumentaram nos últimos anos, tendo alguns comportamentos típicos de hackers, bem como o recurso à chamada deepweb ou dark net, onde se garante a anonimização do utilizador, como a Tor, uma rede que além de permitir a navegação anónima possibilita aos utilizadores alojar páginas que não são pesquisáveis nos motores de busca habituais. É uma das mais procuradas. Inicialmente criada como um projecto do laboratório de pesquisa da Marinha norte-americana destinado a manter protegidas as comunicações do Governo, rapidamente se tornou uma ferramenta procurada por muitos civis. Andrew Lewman, da Tor, recusa que se generalize que a rede, com “2, 5 a 3 milhões de utilizadores diários”, seja procurada com objectivos criminosos, explica à Revista 2. “A vasta maioria dos utilizadores nada faz para prejudicar os seus concidadãos. Não toleramos o uso da tecnologia para prejudicar as pessoas, mas acreditamos na nossa missão e que a Tor é absolutamente necessária para proteger a privacidade das pessoas. ” Mas Lewman admite que não é possível controlar quem usa a rede. “Os utilizadores da Tor são anónimos, mesmo para nós. Não temos qualquer forma de saber quem está a usar a Tor ou como está a usá-la. ”Além deste tipo de ferramentas, os agressores estão nas redes sociais. Sob nome e idades falsos, gostos fabricados de acordo com as preferências dos menores, muitos indivíduos constroem uma identidade que os torne bem-sucedidos no aliciamento através da Internet para fins sexuais, o chamado grooming. Mais que a procura e visualização de imagens e vídeos, há os que querem ir mais longe e procuram interacção e em alguns casos presencial, uma realidade, no entanto, com pouca representatividade em Portugal, segundo a PJ. “Nota-se que a Internet, não sendo um passo obrigatório, pode ser um bom início para o estabelecimento de contactos. Quem quer encontrar-se com crianças vai eventualmente procurar nestas novas plataformas de comunicação, incluindo as redes sociais, e criar aí artifícios e possibilidades de encontros com menores”, explica Carlos Cabreiro. As psicólogas da Judiciária não conseguem responder directamente se existe uma linha ténue a separar o consumo de pornografia infantil do acto presencial. “Há estudos que dizem que mais ou menos 8% passam ao acto e dizem que no grupo online há um grupo elevado de indivíduos com parafilias, mas que a pornografia é suficiente. Outros estudos dizem que isso não é assim tão claro. O nosso problema é não sabermos qual é a percentagem de indivíduos que mente”, dizem. Os utilizadores da Tor são anónimos, mesmo para nós. Não temos qualquer forma de saber quem está a usar a Tor ou como está a usá-la“Se até há bem pouco tempo os abusadores precisavam de se deslocar para se manterem em contacto com crianças e adolescentes, hoje, alguns minutos de navegação pelo ciberespaço oferecem informações, dados e fotos que permitem ao pedófilo escolher exactamente o perfil da sua vítima. As informações fornecidas pelos usuários indicam os momentos de maior vulnerabilidade, facilitando a escolha da vítima e da ocasião em que se fará o contacto. ” O parágrafo é retirado do livro A Exploração Sexual de Crianças no Ciberespaço (editora Alêtheia, 2014), de Manuel Aires Magriço, procurador da República, e resume a situação em que se encontram vários milhares de menores. No levantamento que fez para o seu trabalho, apurou que os agressores sexuais de menores online manifestam a “pretensão de ter interesses comuns com a vítima” para se aproximarem. Recorrem a “elogios excessivos” e manipulam “os pensamentos da vítima fazendo-as crer na ‘normalidade’ da relação”, muitas vezes através de mensagens, vídeos e fotografias que pretendem “dessensibilizar a vítima, fazendo crer da adequação de determinados comportamentos de natureza sexual”. Para manter o menor interessado, fazem “promessas extravagantes” e exploram a sua curiosidade sexual. Perante sinais de falta de interesse, o agressor recorre a “ameaças ou chantagem para controlar as vítimas”, como a divulgação de fotografias de carácter íntimo que tenham sido trocadas anteriormente. Este tipo de comportamento é desenvolvido aproveitando a ignorância dos menores sobre os riscos da troca de informações pessoais e partilha de hábitos diários, nas salas de conversações ou nas redes sociais a que têm acesso através dos seus tablets ou smartphones, no computador de casa ou da escola. O Centro Internet Segura, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem uma linha Alerta (218 440 126) que recebe denúncias de conteúdos ilegais online. Durante 2014 recebeu mais de 350 sobre conteúdos de pornografia infantil ou de erotismo com crianças. Nuno Moreira, coordenador do centro, explica que as denúncias são anónimas e que “são fundamentalmente homens consumidores de pornografia de adultos que fazem estas denúncias quando encontram pornografia infantil e ficam incomodados”. Também já foram recebidas denúncias sobre conversas ou conteúdos em que está a ser feito o aliciamento de menores. Os casos foram reencaminhados para a PJ. O fundador do projecto Miúdos Seguros na Net, Tito de Morais, também teve contacto com casos de aliciamento online. “Pontualmente”, o projecto recebe pedidos de ajuda, sobretudo de “jovens adolescentes e pré-adolescentes, aliciados por predadores sexuais, mas também de jovens que partilharam imagens da sua intimidade com outros jovens e vêem essas imagens tornarem-se públicas”. “Com mais regularidade, recebemos denúncias de conteúdos de imagens de abuso sexual de crianças e jovens”, acrescenta. Cristina Ponte, investigadora da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do projecto EU Kids Online em Portugal, sublinha que, com base nos estudos realizados no âmbito do projecto, “esta é uma situação que ocorre muito menos do que a atenção e os medos que suscita”. Nos questionários do EU Kids Online, os menores manifestaram “principalmente medo do contacto com adultos estranhos”, mas são contactos que acontecem “raramente”. A investigadora refere nesse âmbito que entre as crianças dos sete países incluídos no mais recente estudo da Net Children Go Mobile as portuguesas são as que menos aceitam contactos de desconhecidos. “Apenas 6% aceitam todos os pedidos de amizade ou de contacto que recebem. Cerca de três quartos só aceitam esses pedidos de pessoas que conhecem pessoalmente. ”Do lado de quem denuncia, há também os “pedo hunters” ou caçadores de pedófilos, um fenómeno com mais expressão nos Estados Unidos ou Reino Unido, mas que também já tem ramificações em Portugal através de hackers. Esta perseguição acaba geralmente com os perfis dos suspeitos expostos nas redes sociais e entregues às autoridades. Uma pesquisa no Facebook permite encontrar vários grupos dedicados ao “pedo hunting” e no YouTube são frequentes vídeos de predadores sexuais apanhados a minutos de se encontrarem com menores. 350 denúncias de pornografia infantil ou de erotismo com crianças chegaram no ano passado ao Centro Internet SeguraEm Portugal, esse activismo existe mas através de grupos ligados ao Anonymous. No Verão de 2013 foi anunciada uma operação na qual se tinham infiltrado em fóruns e chats na deep web para interceptar adultos que procuravam actividades sexuais com menores. As identidades dos predadores foram denunciadas no Facebook e à polícia. Numa troca de mensagens no Messenger com a Revista 2, um dos grupos que desenvolveram a operação, o Sud0h4kers, indica que foram encontrados homens com idades entre os 30 e 60 anos, de vários estratos sociais e habilitações. A operação não foi a única, segundo o grupo. “Tratando-se de páginas ou utilizadores do Facebook, pedimos colaboração para denunciar as páginas ou esses perfis junto do Facebook ou das autoridades competentes. Por vezes essas iniciativas surtem efeito, também como alerta para alguns pais e utilizadores da Internet, que no geral não têm a mínima noção do que existe por detrás de um teclado de computador”, conta-nos. O grupo lamenta que nem sempre as informações recolhidas sejam consideradas, por “descrédito em relação à ideia de se tratar do Anonymous ou de hacktivistas”. Na Judiciária, as denúncias feitas por grupos como estes não são descartadas mas recebem críticas quanto à forma de actuação. “Qualquer hacker, qualquer pessoa, que pela consciência e pelo conhecimento que tem, chega a páginas de pornografia infantil deve denunciar logo”, sublinha Carlos Cabreiro. Quanto aos ataques informáticos contra suspeitos, o activismo “não lhes permite cometerem crimes e estarem durante um determinado período a investigar por livre iniciativa e depois passado um ano virem a ‘entregar de bandeja’, como dizem, um determinado indivíduo”. Grande parte deste activismo faz-se no Facebook. Os perfis denunciados são apagados mas a rede social é acusada de ineficácia no controlo dos utilizadores que aceita. Numa resposta por email à Revista 2, o Facebook assegura que tem “tolerância zero à exploração infantil” e que “nas raras instâncias” em que o comportamento ilegal foi detectado actuou de imediato. “Trabalhamos arduamente para encontrar quem for o responsável e cooperamos com agências de segurança para levá-los perante a justiça. ”Ao Google também são apontadas falhas quanto aos filtros de informações com conteúdos de pornografia infantil quando é feita uma pesquisa no motor de busca. “Infelizmente, todas as empresas de Internet têm de lidar com o abuso sexual infantil”, responde-nos a empresa, acrescentando que trabalha com várias ONG e outras entidades para “combater imagens de tais abusos online, incluindo na pesquisa e no Gmail”. O Google não reporta estes casos às autoridades, mas ao centro nacional de crianças desaparecidas e exploradas dos Estados Unidos, que determina quando deve ser alertada a polícia. A criminalização do abuso sexual de menores e da pornografia infantil está prevista na lei portuguesa, mas a punição do crime de grooming continua por configurar. O Código Penal determina penas de prisão que podem chegar aos oito anos para quem praticar acto sexual de relevo com menor de 14 anos ou levar a praticá-lo com outra pessoa. Também a um máximo de oito anos pode ser condenado quem utilizar um “menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos” ou “produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio” de forma profissional ou com intenção lucrativa. José foi condenado a 19 anos de prisão em cúmulo jurídico pelos crimes de abuso sexual de menores e de pornografia infantil. A pena não é inédita mas é rara e apesar da “mão pesada” da Justiça o actual Governo é criticado por não reforçar as medidas punitivas contra estes crimes. Portugal ainda não transpôs a directiva que o Parlamento Europeu aprovou em Dezembro de 2011 que prevê sanções mais duras (como penas mais longas) e a criminalização de algumas actividades que ainda não são punidas, como o grooming. Infelizmente, todas as empresas de Internet têm de lidar com o abuso sexual infantilA Comissão Europeia sublinhou à Revista 2 que “Portugal tinha a obrigação de implementar a directiva contra o abuso sexual infantil online até Dezembro de 2013”. Bruxelas diz estar atenta ao estado em que se encontra a situação e que se mantém em contacto com as autoridades portuguesas para “garantir que todas as medidas previstas na directiva tomem forma”. Portugal mantém-se fora dos países subscritores, apesar de a ministra da Justiça ter afirmado que isso iria acontecer “muito rapidamente”. Numa resposta à Revista 2, o gabinete da ministra Paula Teixeira da Cruz diz que a figura de grooming está contemplada na proposta de alteração do Código Penal elaborada pela tutela. O ministério considera que a proposta, ao “introduzir no ordenamento jurídico as soluções propugnadas internacionalmente, representa um avanço extraordinário nesta matéria”. Do lado de quem investiga, a legislação vai respondendo às dificuldades no terreno. “Em termos de ciberconvenção, não somos os piores. Na protecção dos dados pessoais avançámos com legislação, mesmo quanto à conservação de dados de tráfego também avançámos logo com a lei n. º 32/2008 [regula a conservação e a transmissão de dados gerados ou tratados nos serviços de comunicações electrónicas]”, considerou o coordenador do gabinete de investigação de criminalidade informática da PJ. Para o procurador Aires Magriço, pode fazer-se “mais com os meios de que dispomos, sobretudo com a colaboração indispensável do sector privado na perspectiva de responsabilidade social das organizações e de auto-regulação”. O responsável do Ministério Público defende a realização de mais operações encobertas online “preventivas e repressivas” e de uma melhor articulação entre as polícias nacionais e estrangeiras. “Investigadores, procuradores e juízes” devem ser formados para tratar deste tipo de casos e ser criadas “bases de dados de imagens, de vítimas, de predadores e de modus operandi, a tratar por uma equipa dedicada de análise e tratamento de informação”. O procurador sugere ainda a criação de um Estatuto da Vítima no Código de Processo Penal que englobe as crianças. Pelo lado de quem se bate diariamente por uma Internet segura, um dos grandes entraves à resposta contra este tipo de crimes é a “morosidade burocrática que ainda não está adaptada [seja em Portugal, seja na maioria dos países] à rapidez dos processos que ocorrem online”. Nuno Moreira, do Centro Internet Segura, defende uma aposta na sensibilização sobre a importância de guardar evidências para constituir prova de que houve um aliciamento ou assédio. “Há pais que descobrem elementos e esquecem-se de guardar prova, por exemplo fazer um print screen da conversa, gravar as mensagens. ”Dulce Rocha, vice-presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC), tem sido uma das vozes pela transposição da directiva comunitária de 2011 e também do reforço das acções de sensibilização para os perigos online. É defensora de um Plano de Acção Integrado centrado nesta matéria. À semelhança do que se faz quanto à violência doméstica, Dulce Rocha realça a necessidade da formação de profissionais que informem as “crianças sobre os riscos”. Tal como a maioria dos especialistas e responsáveis ouvidos pela Revista 2, a vice-presidente do IAC insiste no bloqueio de sites com conteúdos de abuso por parte dos operadores de Internet, no “estabelecimento de legislação com sanções, e simultaneamente numa monitorização dos movimentos bancários sobre a aquisição de imagens online que consubstanciem exploração sexual de crianças”. “Ao minuto 29:50, alguém toca à campainha, o arguido veste-se e vai à porta e ouve-se a sua voz: ‘Ah, é o (…) … Ele que entre’ [o vídeo acaba com esta expressão]. ” Antes do minuto 29:50, José tinha forçado três crianças a actos sexuais. Depois do minuto 29:50, quem chega é João, numa noite de Setembro de 2009. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça o conteúdo deste e de outros vídeos e fotografias são descritos ao pormenor, os dias e horas a que cada criança, em que idade, em que momento e com quem, foi submetida a abusos e depois era forçada a vê-los na televisão da casa de Benfica. Como fica uma criança depois de um dia, um mês, meses ou anos vítima de abusos sexuais? João nega até hoje o que se passou. Nunca proferiu uma palavra de acusação. O Supremo Tribunal resumiu em 2013 que, antes do sucedido, João era visto “como uma criança dócil, tranquila e carinhosa nos seus afectos”. Após os abusos, “deixou de dormir à noite de modo tranquilo e descansado, acordando inúmeras vezes sobressaltado e inquieto; insiste em dormir com as luzes acesas”. Escreve ainda o Supremo que todas estas circunstâncias lhe causaram “grandes perturbações e sofrimentos psicológicos, afectando o seu processo de crescimento e vivência na vertente afectiva e sexual”. A morosidade burocrática ainda não está adaptada à rapidez dos processos que ocorrem onlineAntónio e Sofia reconhecem estes traços e não conseguem explicar o comportamento assustadoramente normal que João chega a ter. “No dia-a-dia, é uma criança bem-disposta, gosta de contar anedotas que aprende na escola”, diz o pai. Apenas quando se tenta falar no assunto muda a expressão. Na escola que João frequentava, onde apenas a directora do estabelecimento de ensino sabia do caso, teve apoio especial. O processo chegou à Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR). Pais e João foram ouvidos. “O João parecia bem à comissão, não havia maus tratos”, lembra António. “Tinha medo de perder o meu filho. Eu não parava de chorar”, acrescenta Sofia, quando recorda o dia em que falou aos técnicos da comissão. A CNPCJR determina que, sendo o “processo difícil e havendo experiências traumáticas a relatar, deverá ser equacionado o acompanhamento psicológico imediato e continuado ao longo do processo” relativo à criança. Segundo António, do encontro com os pais e com João não saiu qualquer indicação sobre a necessidade de acompanhamento psicológico. Mesmo assim, os pais fizeram um pedido nesse sentido ao Hospital Garcia de Orta, em Almada. Mais de dois anos depois, não foram contactados. Manuel Coutinho, psicólogo e coordenador do projecto SOS Criança, conhece esta realidade. Casos de crianças a pedir ajuda ou a denunciar situações de menores abusados e de grooming já chegaram ao número gratuito 116 111. À Revista 2 conta o caso de uma jovem que se apaixonou por um rapaz nas redes sociais. “Achava que sabia a idade dele, o nome, a escola. No calor da emoção, foi incauta e sem nada dizer a ninguém procurou o dito rapaz. Quando se deparou com a criatura, percebeu que tinha sido enganada, era uma mulher. Só aí se apercebeu que via Net namorava com uma mulher de 40 anos e não com um jovem rapaz da sua idade. Ficou emocionalmente abatida e desapontada com o sucedido. Recebeu apoio psicológico no IAC. Os pais apresentaram queixa-crime. ”Em casos de violência física, a criança deve receber apoio psicológico, mas tudo “depende da idade da criança, do tipo de abuso e da relação que tem com o abusador e ainda se o abuso é intrafamiliar ou não”. Manuel Coutinho diz que “não existe um perfil claro destas vítimas. A criança pode reagir ao abuso de múltiplas formas”. “O abuso sexual é um dos piores maus tratos. Atender uma criança vítima do crime de abuso sexual é uma situação de grande complexidade. ” Quanto ao silêncio a que se remetem crianças como João, o psicólogo indica que esse se pode explicar “por medo ou por vergonha”. Nos casos de um frente-a-frente entre vítima e predador online além de apoio psicológico, deve ser reforçado o alerta sobre os perigos na Internet junto do menor. “Recomenda-se bom senso, educação e muita precaução. ” Essa “educação” passa por encaminhar crianças e jovens para acções do Centro Internet Segura, por exemplo. Além do centro, o projecto Miúdos Seguros na Net ou a Comissão Nacional de Protecção de Dados têm iniciativas próprias de sensibilização que levam a escolas ou a populações locais de quase todo o país. As iniciativas dirigem-se também a pais e encarregados de educação. “O problema que sinto geralmente é que os pais despertam para este problema demasiado tarde, quando os filhos entram na puberdade, pré-adolescência e adolescência, sem terem feito o seu trabalho prévio na infância”, aponta Tito de Morais, defensor da criação de uma “legislação que obrigue as escolas à adopção de políticas, processos e procedimentos no domínio da segurança digital”. É ainda importante a formação de professores e educadores, “incentivando as escolas a fazer acções de sensibilização para pais e encarregados de educação”Nuno Moreira lamenta, por sua vez, a “falta de interesse por parte dos adultos e dos jovens/crianças sobre estas questões do aliciamento online”. O responsável sublinha que os pais tendem, de uma forma geral, a “não estar envolvidos na vida online dos filhos, nem a documentarem-se sobre os riscos online e as formas de os contornar de modo a poderem exercer uma acção preventiva junto dos filhos”. “A informação existe e está disponível, mas reparamos que só quando surge um caso mediático ou sofrem alguma situação complicada na primeira pessoa é que recorrem aos nossos serviços de forma proactiva. ”A Polícia Judiciária saúda estas iniciativas perante uma realidade que parece fora de controlo. “Estou nisto há 20 anos. Em 1992, dizíamos: ‘Para já, conseguimos controlar tudo. ’ Neste momento, é impossível. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O abuso sexual é um dos piores maus tratos. Atender uma criança vítima do crime de abuso sexual é uma situação de grande complexidade
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Governo Socialista do “Tempo Novo”: É malhar-lhes (mas com moderação)
Cavaco Silva marcou a tomada de posse do Governo para a mesma hora em que a Assembleia aprovava medidas contra a austeridade. (...)

Governo Socialista do “Tempo Novo”: É malhar-lhes (mas com moderação)
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cavaco Silva marcou a tomada de posse do Governo para a mesma hora em que a Assembleia aprovava medidas contra a austeridade.
TEXTO: António Costa chegou uma hora atrasado, e a suar, ao Conselho de Ministros. Mas trazia uma boa justificação institucional:— Desculpem lá isto. O senhor Presidente indigitou-me, ai, indicou-me para uma reunião urgente e eu tive de fazer o desvio por Belém. . . Vai um pastelinho?, trouxe dois cartuchos para as senhoras ministras. — Quer estragar-nos a linha? Somos tão poucas neste feudo de homens, dá três natas para cada uma!, suspirou Ana Paula Vitorino, ministra do Mar. O seu marido, Eduardo Cabrita, ministro Adjunto, serviu-se de um pastel:— Mas o Cavaco não sabia que tínhamos a reunião do Governo?!— Sabia, mas queria discutir coisas. . . já nem sei o quê. Ou era bananas ou era o superior interesse nacional. . . Passou meia hora a citar-se a si próprio e a acabar frases com “fim de citação”. E no fim concluiu que “há muitas coisas por esclarecer”. Bem, acho que já está com saudades das longas auscultações, coitado. — Coitado, nada, é malhar nele, é malhar na direita!, gritou Augusto Santos Silva, que começou há dias, como ministro dos Negócios Estrangeiros, a estudar a diplomacia no século XXI e os manuais de etiqueta e boas maneiras de Paula Bobone. António Costa fez um gesto de lâmina com a mão. Era o seu novo sinal de confiança no futuro, mas, como não tinha avisado, os ministros pensaram que estava a afastar uma mosca. Ou então a apontar para a esquerda, de modo radical. Mas isso não fazia sentido depois do discurso da tomada de posse: falar de “moderação” e “tempo novo”, ao mesmo tempo que zurzia nos avisos de Cavaco e nas convicções de Pedro Passos Coelho. — Bom, vamos planear os próximos quatro anos. Ou três, ou dois. . . Pelo menos o próximo ano. Vamos virar a página da austeridade: desenvolver o país e cumprir todas as metas orçamentais. Ok, quem quer começar, mandar bolas para o pinhal?Agora ouviu-se uma mosca verdadeira e António Costa afastou-a, desta vez para a direita. Silêncio no centro do poder de esquerda. — Vieira da Silva, tu que és repetente na Segurança Social, podes começar. — Ahhh, bom. . . eu. . . de facto eu fiz uma reforma quando era o ministro do José Sócrates e. . . — O seguinte!, interrompeu o primeiro-ministro, não percas o raciocínio mas começa de outra maneira, por favor. Outras referências mais viradas para o futuro. Tu, Capoulas Santos, a agricultura vai dar frutos e batatas ou quê?— Bom, já que não posso falar no Sóc. . . no hum. . . vou repetir: acabou-se o pesadelo! Agora vamos é ver se chove nos campos!— Se me dão licença, a Cultura, de que muito me honra ter a pasta, vai ser a. . . — Não percas o raciocínio, João Soares, sabes que a Cultura é prioridade e a Educação e isso tudo, mas estamos a falar de dinheiro a sério. — Essa agora, mas a Cultura dá dinheiro se a soubermos apl…— Maria Manuel Leitão Marques! A nossa criadora do Simplex! o que é que tem a dizer a ministra da Modernização Administrativa? Como é que vamos desenvolver o país e manter o tratado orçamental sem cortar nas despesas sociais?— Deixe-me só acabar o pastel de Belém… Hum, isto é uma perdição. Bom, só tenho uma resposta para isso: é um bocado Compliquex. — Francisca Van Dunem, avanços na Justiça?— Como sabe, senhor primeiro-ministro, em Angola onde nasci respeitam-se os mais velhos. E, como especialista em violência contra os idosos e em violência doméstica, peço-lhe e ao senhor ministro Santos Silva que tenham em consideração que o senhor Presidente ainda vai coabitar com este Governo mais dois meses. Vamos tentar evitar mais violências. — É que o homem causa-me… enfim… Por falar nisso, não há dúvida de que é um Governo que respeita a ideia de coabitação e de família feliz: temos aqui o casal Eduardo Cabrita/Ana Paula Vitorino, temos o Guilherme de Oliveira Martins, que é filho do outro, sem esquecer a Mariana, a tua filha secretária de Estado, Vieira da Silva!— E Ricardo Mourinho Félix, primo do José Mourinho, que pode dar-te lições de special one. Já teve melhores dias, mas…Um jovem de barba preta falou pela primeira vez:— E temos o Miguel Prata Roque, um secretário de Estado que é advogado de José Sócrates. É outra espécie de “família”, não é?— Ah, ah, essa teve graça, Tiago, disse a ministra da Justiça. Vou contá-la à minha amiga Cândida Almeida!— Tiago Brandão Rodrigues, sei que és cientista em Cambridge, mas deixa-te de bocas foleiras que estás em Portugal. Concentra-te na Educação. Ok. Muito obrigado, minhas senhoras e meus senhores. Portugal está bem servido. Acabou-se a austeridade. Até para a semana. Estavam todos a levantar-se quando a porta se abriu e entrou uma trunfa grisalha despenteada. Um simpático senhor deixava cair folhas com fórmulas matemáticas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. — Desculpem o atraso!— Mário Centeno, tinha-me esquecido de ti!— Estive a fazer as contas outra vez, António Costa. . . Temos de conversar.
REFERÊNCIAS:
The Raincoats: um abanar, uma irreverência, uma vontade de mudar as coisas
Em 1974, Ana da Silva partiu de Lisboa para passar uma temporada em Londres. Ficou lá até hoje. Em 1977, criou com Gina Birch as Raincoats, banda fundamental do punk e do pós-punk que dinamitou as convenções sobre o que podia ser o rock no feminino. Vamos vê-las em concerto em Braga, Lisboa e Coimbra, e vamos ouvi-las contar a sua história no Porto, no congresso KISMIF. (...)

The Raincoats: um abanar, uma irreverência, uma vontade de mudar as coisas
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em 1974, Ana da Silva partiu de Lisboa para passar uma temporada em Londres. Ficou lá até hoje. Em 1977, criou com Gina Birch as Raincoats, banda fundamental do punk e do pós-punk que dinamitou as convenções sobre o que podia ser o rock no feminino. Vamos vê-las em concerto em Braga, Lisboa e Coimbra, e vamos ouvi-las contar a sua história no Porto, no congresso KISMIF.
TEXTO: Tinha 16 anos quando aterrou em Inglaterra pela primeira vez. Estávamos nos anos 1960, os Beatles tinham editado um par de discos, os Rolling Stones não mais de um. Ana da Silva comprou-os todos, claro. Sem interesse no nacional-cançonetismo que a rádio lhe oferecia, nascida na Madeira ilha a que, nessa altura, ainda sem aeroporto, todas as novidades chegavam ainda com mais atraso que ao continente, socorria-se da World Service da BBC para ouvir a música que a cativava. No final da década de 1960, chegou a Lisboa para estudar Germânicas. Seguia o “Em Órbita”, o histórico programa emitido pelo Rádio Clube Português, para acompanhar as novidades discográficas, continuava os estudos. Até 1974. Nesse ano, regressou a Inglaterra. Planeava ficar apenas uma temporada em Londres, mas ali ficou até hoje. É desde Londres que fala com o Ípsilon da sua história e da história das The Raincoats, banda fulcral do pós-punk britânico, banda de culto que criou um clássico à primeira tentativa – falamos do single Fairytale in the Supermarket, editado em 1979. Hoje e nos próximos dias vamos ter o privilégio de ver The Raincoats em Portugal. Actuam esta noite, dia 29 de Junho, no gnration, em Braga. Dia 30, estarão na Trienal de Arquitectura, em Lisboa, para um concerto no âmbito do Festival Rama em Flor, que celebra e debate o feminismo e a cultura queer. A 3 de Julho actuarão no Salão Brazil, em Coimbra. Durante a sua passagem por Portugal, serão também um dos (muitos) destaques do Congresso Keep It Simple, Make it Fast (KISMIF), nascido na academia, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e que, entre debates, concertos ou exposições, se abre a toda a cidade. As Raincoats falarão da sua história, tendo como pano de fundo The Raincoats, livro assinado pela americana Jean Pelly e incluído na série 33 1/3, dedicada a álbuns históricos da música popular urbana. Em 1974, Ana da Silva ficou então em Londres. Entusiasmou-se com o fervilhar cultural e musical da cidade e com o “abanão” que trouxe o punk. Inscreveu-se num curso de Artes, viu os primeiros concertos dos Sex Pistols e dos Clash, viu Patti Smith e ficou deslumbrada, viu as Slits e sentiu com Gina Birch, a amiga com quem fundaria as Raincoats, a urgência de criar música. Em cinco anos, as Raincoats, cuja formação inicial clássica estabilizaria em Ana da Silva (voz e guitarra), Gina Birch (baixo e voz), Palmolive (baterista, vinda das Slits) e Vicky Aspinall (violino), deixaram marca indelével na história da música popular urbana. Travestiam a folk de experimentalismo livre, desconstruíam o rock até este se transformar na voz personalizada daquelas quatro mulheres. Faziam o violino pairar sobre as melodias como os Velvet Underground, moldavam o formato canção à sua força expressiva e, pelo caminho, davam nova vida ao hino queer dos Kinks, Lola. “Num minuto, pareceram destruir todos os estereótipos femininos do rock’n’roll”, escreveu em 1980 o decano crítico musical americano Greil Marcus depois de as ver em concerto – não por acaso, tornaram-se ícones do movimento feminista riot grrrl da década de 1990. Editaram quatro álbuns – The Raincoats (1979), Odyshape (1981), Moving (1984) e, no início da sua segunda vida, Looking in the Shadows (1996). Este último teve génese numa visita inesperada, nos anos 1990, ao local onde trabalhava então uma Ana da Silva desligada da música. Kurt Cobain sabia bem o que estava ali a fazer, naquela loja de antiguidades em Notting Hill, Londres. Tinham-lhe dito na editora Rough Trade que ali trabalhava Ana da Silva e o guitarrista e vocalista dos Nirvana sabia bem o que ela fizera em anos passados. Sabia tão bem que gastara a sua cópia de The Raincoats. Kurt Cobain queria falar com a autora de música que, dizia, tinha sido refúgio e conforto durante a sua depressão adolescente, e procurava uma nova cópia do disco para substituir o seu. Ana estava desligada das novidades da música e não sabia quem ele era. Descobriria depois. E seria o interesse renovado nas Raincoats que as levaria a reunirem-se novamente e a manterem uma actividade intermitente desde então. “Nós aparecemos e desaparecemos, é como o sol aqui em Inglaterra”, ri do outro lado da linha telefónica. A Ana da Silva que falou ao Ípsilon no início de Maio viaja pelo passado enquanto nos mostra o seu presente. Conta ter em breve novo álbum a solo para suceder ao “punk electrónico” (assim o define) de The Lighthouse (2005). Antes dele chegar, editará em Setembro outro disco, gravado em colaboração com a música japonesa Phew, e criado à distância, entre Inglaterra e o Japão, com recurso a sintetizadores analógicos. Entretanto, os concertos em Portugal. As Raincoats em formato trio – Ana da Silva, Gina Birch e a violinista Anne Wood. “Gosto muito desta versão da banda, deixa espaços para o violino, a guitarra e o baixo que, de outra forma, não existem”, explica. Em três concertos, veremos as Raincoats que, a partir daquele final dos anos 1970, no centro da acção, Londres, dinamitaram com estrondo e graciosidade aquilo que o rock devia ser, aquilo que se julgava que a ideia de rock no feminino poderia ambicionar. Esta digressão das Raincoats nasceu do convite para a banda participar numa conferência do âmbito do KISMIF, congresso que emana do meio académico. Imagino que ter o punk e o do it yourself como alvo de estudo académico seja algo que lhe pareceria muito distante quando as Raincoats davam os primeiros passos. É verdade, mas tudo o que já foi feito por alguém é sempre uma lição. Falar sobre punk e outras artes influenciadas por ele é bastante interessante, porque é parte da cultura e, sendo parte da cultura, é importante que as pessoas saibam como foi, porque foi, e quais as suas consequências. A [música, jornalista e académica] Vivien Goldman, que escrevia sobre música [NME, Melody Maker ou Sounds], tornou-se professora de punk numa universidade [New York University]. Foi a primeira vez que tomei conhecimento de qualquer coisa nesse sentido. A partir daí, as pessoas têm escrito muitos livros, com boa informação e pontos de vista interessantes. Acho que é importante as pessoas que não assistiram a tudo aprendam um bocado as razões que conduziram ao punk. O que o motivou pode continuar a existir: uma atitude de irreverência, um desejo de mudar as coisas. Claro que muita gente tem esse desejo há muito tempo, isso não nasceu com o punk, mas o punk tem a sua forma de ir contra as coisas. Nasceu contra os movimentos de música anteriores, também como movimento político. Foi um abanar. E, para mim, essa atitude de abanar foi muito refrescante. Quando se depara com ele? Quando toma consciência desse novo movimento, o punk?Vim de Portugal em 1974, quando terminei os estudos. Por um lado, tive muita pena porque estava a acontecer tanta coisa em Portugal, mas eu tinha acabado de estudar e gostava muito de música anglo-americana. Além disso, quando vim não era para ficar. Vinha só um tempinho, para ver. Quando tudo começou a acontecer, porque o punk só começou verdadeiramente em 1976, na altura dos primeiros concertos, os dos Sex Pistols, um ou outro de Siouxsie And The Banshees, foi para mim outra revolução. Como se transformou esse entusiasmo, enquanto membro do público, no desejo de fazer música e de subir a um palco?Mais que subir a um palco, era o desejo de fazer música. A primeira vez que estive em palco, pensei: “Que palermice, o que é que eu estou aqui a fazer? Quem sou eu para me pôr à frente desta gente toda a tocar música?”. Só queria que aparecesse um buraco no chão para eu desaparecer. O que queria era mesmo criar música. Mas depois habituei-me. Hoje, tal como quando tocávamos muito ao vivo, gosto muito da conexão com o público, gosto de ouvir a música muito alto. E cantar é uma experiência forte, diferente de ouvir a música de outras pessoas. Ontem [1de Maio] fui ouvir a Angel Olsen e uma cantora que tem andado em tournée com ela, a Heather McEntire. Enquanto via os concertos, pensei que gostava de estar dentro da cabeça delas a ouvir a música a sair assim de mim. Quando cantamos, sentimos diferente. Cantar numa banda com as Raincoats seria mais especial ainda. Estavam a criar algo de novo, pela estrutura das canções, pelas melodias, pelas letras. Nunca tínhamos ouvido nada assim antes. Ou depois (risos). Digo-o porque, por vezes, vêm falar-me de uma banda dizendo que lhes faz lembrar as Raincoats. Eu ouço e não vejo as semelhanças, o que é bom. É bom cada um fazer a sua coisa e acho que a nossa é um bocado diferente. O facto de não serem músicas com muita experiência, o facto de a Ana e Gina Birch, as fundadoras da banda, serem no início relativamente amadoras nos seus instrumentos contribuiu para essa originalidade, no sentido de as conduzir a sons e soluções musicais inesperados?Bem, eu já tocava um bocadinho de guitarra. A Vicky [Aspinall, violinista] tinha formação clássica e a Palmolive tinha vindo de outra banda [as Slits], portanto já tinha alguma experiência. Claro que não éramos daquelas músicas de estar para ali a tocar solos. Não sei fazê-lo, nem me interessa saber fazê-lo, porque não é assim que me quero exprimir. Fazíamos que que fazíamos e não pensávamos muito na razão pela qual o fazíamos. Fizemos o que saiu de nós, vivendo aquela época. Se a época fosse diferente, a música seria diferente. Se uma de nós fosse outra, a música seria diferente. Noutras bandas, troca-se o baterista ou o baixista e não faz diferença. Connosco não é assim. Fairytale in the supermarket, o single de estreia das Raincoats, revelava logo uma faceta essencial à banda. Kim Gordon dizia que pareciam “pessoas normais a fazer música extraordinária”. Nas vossas canções acontecia o mesmo. Pegavam em pedaços banais do dia-a-dia e transformavam-nos em algo maior. A arte é, em parte, isso. Elevar as coisas da vida e dar-lhes outra dimensão. Não éramos pessoas perfeccionistas, no sentido de tocarmos tudo muito perfeitinho. Interessava-nos mais aperfeiçoar a composição do que aperfeiçoar a técnica. Para mim, isso foi sempre muito mais importante. Além do mais, acho que erros não são uma coisa má. Não são erros, são um afastamento daquilo que se está à espera. Não fazemos as mesmas coisas todos os dias e, para mim, um disco é do momento e tem as características desse momento. Se tocássemos a mesma canção cinco minutos depois, já seria um bocadinho diferente e as arestas estariam noutro sítio. Cada canção das Raincoats parece, de facto, um momento em si mesmo. Como se pensassem cada uma delas não em relação à identidade da banda, mas concentradas no que queriam transmitir naqueles três minutos de música. Cada canção tinha a sua história. Não tentávamos que uma fosse diferente da outra, mas saíam assim. Não tínhamos um estilo relacionado a outros estilos musicais. Quem os segue, segue as suas normas. Como nós não seguíamos estilo nenhum, não tínhamos outras normas a não ser as nossas. Além disso, não estávamos a tentar construir uma carreira. A nossa atitude nascia da vontade de fazer arte e esperar que outras pessoas gostassem. Como tínhamos uma vida muito simples, não precisávamos de dinheiro. Eu e a [manager e fotógrafa] Shirley [O’Loughlin] vivíamos num apartamento do município com renda controlada, as outras viviam em squats em que não pagavam rendas, portanto fazíamos uma vida muito barata e podíamos dar-nos a esse luxo. Hoje em dia as pessoas não se podem dar a esse luxo, não são livres dessa forma. A originalidade das Raincoats foi prezada e muito elogiada. Destacaram-se ao ponto de, em 1980, John Lydon ter proferido uma declaração célebre na vossa história. “O rock’n’roll é uma merda… A música atingiu o seu ponto mais baixo – excepto pelas Raincoats”. Tivemos críticas muito boas, algumas más, e ouvimos pessoas que respeito muito dizerem bem do nosso trabalho, mas acho que nunca tive a noção que o que fizemos teve uma certa importância até mais tarde. Fizemos os discos, acabámos a banda, fomos todas à nossa vida e, depois, não sabíamos que em sítios como Olympia, Seattle, as pessoas estavam a apreciar a nossa música. Julguei que as pessoas tivessem os discos na estante, como eu tenho tantos que nunca mais ouvi. Pensei que tinham ficado ali, entre os Ramones e outra coisa qualquer, e foi surpreendente descobrir que tanta gente ainda nos ouvia e tirava da nossa música qualquer coisa de importante. Senti que a nossa música não tinha morrido quando comecei a fazer a nossa página de MySpace e as pessoas começaram a deixar comentários – “se não fosse pela vossa música, não sei o que me teria acontecido”. Claro que antes, com a história toda das riot grrrl e do Kurt Cobain, que nos referiam, percebi que era mais abrangente do que simplesmente continuar a ter algumas pessoas a ouvir e a gostar. Mais abrangente no sentido de haver quem se tivesse inspirado na nossa música para fazer a sua. O discurso à volta das Raincoats refere sempre o facto de serem uma banda feminina num meio, o do rock, historicamente masculino. Fala-se das Raincoats como ícones de um punk feminista. As questões de género eram importantes na acção da banda, naquilo que era a música que criavam?Essas questões surgem um bocado depois. [Quando começam as Raincoats] Já existiam as Slits, que eu já tinha visto, já existiam outras bandas. Para mim, não era estranho uma mulher fazer o que quer que fosse. Eu já tinha lido sobre bandas femininas americanas num livro que comprei antes de ter uma banda – tenho que o encontrar outra vez. Acho interessante que o tenha comprado, significa que já devia ter em mim a ideia de que era um tema interessante para investigar. Mas foi quando eu e a Gina vimos as Slits que pensámos em ter uma banda. Conhecíamos outras pessoas com bandas e íamos aos concertos a sítios muito pequenos, sempre com muitas raparigas e muitos rapazes, tudo misturado. Na minha cabeça, não era uma coisa tão estranha, mas claro que a maior parte das mulheres que estavam em bandas eram cantoras, com poucas excepções, como a da Moe Tucker. Estávamos na altura em que começaram a aparecer mais mulheres a tocar música, mas tudo leva algum tempo a desenvolver-se. Uma vez tocámos com os UB40, numa iniciativa chamada “Jobs for Youth” [em Birmingham, 1981]. Estava cheio de putos de 14, 15 anos e foi um horror. Achavam que éramos umas velhotas – para miúdos de 14, 15 anos, alguém nos vintes já é velho. Ainda por cima, éramos mulheres e o que tocávamos não era reggae nem era muito compreensível para eles. De maneira que nos atiraram com coisas. Foi a única vez e foi horrível. Tocámos dois dias seguidos e, no segundo, já sabíamos ao que íamos e eles também já sabiam. Já vinham mais preparados, com tomates e assim (risos). Foi uma experiência única e nunca mais quisemos outra. Não vale a pena tocar para pessoas que não sabem relacionar-se com o que fazemos. No início dos anos 1980, publicou um pequeno livro, Raincoats - Booklet. Nele escrevia que, no geral, as canções das Raincoats não abordavam necessariamente questões femininas. “Ainda assim”, acrescentava, “deixo estas perguntas”: “Sendo mulher, podes andar sozinha quando a noite cai, sem seres importunada ou violada? Podes sentar-te no cinema sem correr o riso de ter alguém ao teu lado que não está, de todo, interessado no filme? Podes ir a um pub sozinha sem sentir que uma mulher é tantas vezes vista como um objecto disponível para ser apanhado por qualquer homem?”. São questões que vemos hoje serem colocadas, exactamente nos mesmos termos. Nesse sentido, aparentemente, nada mudou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Naquela altura era extremamente difícil classificar-nos apenas como feministas, porque a palavra era vista como uma descrição de mulheres ressabiadas e sem piada. Hoje digo: sim, somos feministas. A palavra tem o mesmo significado, mas outras conotações: espirito forte, independente, aberto, vivo - coisas positivas. Pensávamos que, com as novas atitudes dos anos 1960 em relação à posição da mulher, a imagem da mulher deixaria de ser usada como ainda é, que deixaríamos de ver aqueles anúncios a carros com as mulheres sentadas em cima deles, coisas que sempre achei horríveis. São horríveis as pressões que existem agora, principalmente para as miúdas mais novas, para serem perfeitas. E claro que se sentem muito imperfeitas e deprimidas se qualquer coisa nelas não segue aquilo que se diz que são as regras de beleza. Uma vez disseram à [modelo] Naomi Campbell que gostavam de ser como ela, e ela respondeu “eu também”. Achei piada a isso. A perfeição não existe. Por isso é que gosto que a nossa música tenha imperfeições. Porque se separaram depois da edição de Moving, em 1984?Tornou-se difícil. Quando lidamos com pessoas criativas, cada uma tem as suas ideias e pode acontecer que umas se comecem a sentir isoladas, não apreciadas. Foi o que senti e foi por isso que decidi que não queria continuar. A Shirley teve a ideia de, dado que tínhamos música suficiente para fazer um álbum, gravarmos o Moving, em que cada uma dirigiria as suas próprias canções. Todas davam ideias, mas a última palavra seria da compositora. Assim fizemos e correu tudo muito bem. Depois, cada uma para seu lado. Passou depois vários anos desligada do cenário musical. O que a fez regressar, sentir de novo o entusiasmo por ensaiar, compor, gravar?Quando a banda a acabou, arranjei um trabalho e não pensei em fazer música outra vez, mas entretanto comecei a sentir aquela pulguinha… Arranjei uma banda com o Charles Hayward [baterista dos This Heat], mais um nos teclados e uma no clarinete baixo e no contrabaixo. Era fantástico, mas vivíamos muito longe uns dos outros e a banda [Roseland] desfez-se. Demos dois concertos e desaparecemos. Entretanto, perante o entusiasmo das riot-grrrl e de Kurt Cobain, que lhe apareceu na loja de antiguidades em que trabalhava, sem que a Ana soubesse quem era o líder dos Nirvana, as Raincoats reuniram-se, gravaram um quarto álbum [Looking in the Shadows, 1996] e continuam activas de forma intermitente desde então. O ano passado, o percurso da banda foi mesmo vertido para livro, com Jenn Pelly a assinar The Raincoats para a série 33 1/3. Que sensações a atravessaram ao reencontrar-se nele com a sua própria história?O livro da Jenn fez-me sentir que aquilo que fiz valeu a pena e que continua a ter algum impacto. Aqui há uns meses fui ver três bandas. As Priests e as Downtown Boys, ambas americanas, e as Big Joanie, que são inglesas. Duas delas têm um ou dois homens, mas são bandas principalmente femininas, e todas têm bateristas femininas. Isso para mim foi fantástico de ver no mesmo concerto. Durante a noite duas raparigas reconheceram-me e vieram falar comigo. Tinham bandas e perguntei-lhes e o que tocavam. Eram as duas bateristas. Ou seja, estavam cinco bateristas mulheres no mesmo concerto. Achei fantástico. Na altura em que começámos, se calhar não havia cinco mulheres bateristas em Londres.
REFERÊNCIAS:
Curtas Vila do Conde de ambos os lados das fronteiras
Cinema português estará em força na 26.ª edição do festival que vai decorrer de 14 a 22 de Julho. Mas que vai dar ecrã e palco, expressão e espaço ao estado do mundo actual. (...)

Curtas Vila do Conde de ambos os lados das fronteiras
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cinema português estará em força na 26.ª edição do festival que vai decorrer de 14 a 22 de Julho. Mas que vai dar ecrã e palco, expressão e espaço ao estado do mundo actual.
TEXTO: Já sabíamos que caberá a uma co-produção luso-franco-brasileira, Diamantino, a abertura oficial da 26. ª edição do Curtas Vila do Conde; que o alinhamento dos cinco filmes-concerto do programa Stereo conta com os Black Bombain, Linda Martini e B Fachada, e que o festival iria dar carta-branca ao francês Yann Gonzalez e pôr In Focus o israelita Nadav Lapid, tudo, com maior ou menor reincidência, gente muito lá de casa do historicamente mais relevante festival de curta-metragem do país. Esta terça-feira ficámos a conhecer a vastidão do programa em detalhe, com a habitual conferência de imprensa de apresentação realizada no Teatro Municipal de Vila do Conde, casa principal do certame que este ano vai decorrer de 14 a 22 de Julho. Em dias marcados pelo Mundial de futebol, o chamado desporto-rei – que terá inclusivamente motivado o deslocamento de uma semana nas datas habituais do festival – não vai deixar de estar no principal ecrã do Curtas, com Diamantino, que valeu a Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt um prémio na Semana da Crítica de Cannes, inspirado pela figura de Cristiano Ronaldo mas também pelo romancista David Foster Wallace. O filme terá a sua estreia portuguesa no sábado, dia 14, às 18h00, abrindo a secção Da Curta à Longa, mas também um programa que, distribuído por diferentes secções, se apresentará como “um barómetro do estado cinematográfico do país”, como referiu Miguel Dias, um dos membros do quarteto que dirige o festival. Na Competição Nacional, de resto, e dividida por cinco sessões, vão ser exibidos 17 filmes, onde se cruzam Onde o Verão Vai, que David Pinheiro Vicente levou a Berlim este ano, com novos títulos de Ivo Ferreira, Rodrigo Areias, João Viana, João Vladimiro ou Marco Amaral – todos estes filmes “em estreia nacional e a maior parte mesmo em estreia mundial”, acrescentou Dias, relevando o regresso em força do género animação. Regressam aqui as duplas de animadores David Doutel/Vasco Sá (Fuligem, prémio do público e melhor realização em 2014) com Agouro, e Alice Eça Guimarães/Mónica Santos (Amélia & Duarte, prémio do público em 2015), com Entre Sombras. Ivo Ferreira, depois de Cartas da Guerra e antes de Hotel Império e da série Sul, mostra Equinócio, com Adriano Luz e Margarida Vila-Nova; um outro cineasta da longa, João Vladimiro (cujo Lacrau venceu o IndieLisboa), estreia também a concurso uma nova curta, Anteu, ao passo que a actriz Ana Moreira se aventura na realização com Aquaparque. Rodrigo Areias (Corrente) traz a ficção Pixel Frio, Eduardo Brito (Penúmbria) exibe a segunda curta em nome próprio, Declive, e João Viana mostra Madness, a curta-gémea da longa Our Madness com que venceu o IndieLisboa há poucos meses; Madness teve estreia em Berlim, onde também estreou Onde o Verão Vai, o filme de fim de curso de David Pinheiro Vicente. A completar o panorama do cinema nacional teremos ainda três outras produções, já mostradas noutros festivais portugueses: Russa, de João Salaviza e Ricardo Alves Jr. ; Anjo, de Miguel Nunes; e o documentário Os Mortos, de Gonçalo Robalo. Já a Competição Internacional – que Mário Micaelo apresentou como a secção de referência do festival “e uma das melhores competições do género” – vai ter 31 filmes de 24 países distribuídos por nove sessões abrindo uma janela para o mundo actual e abordando temas como as questões de género, a situação da mulher e fenómenos de emergência social. Aqui veremos, entre muitos outros, novos títulos do brasileiro João Paulo Miranda Maria (Meninas Formicida) e de nomes recorrentes no festival como a dupla Ben Rivers/Ben Russell (The Rare Event) ou o transgressivo francês Bertrand Mandico (Ultra Pulpe). Israel e Espanha em focoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Num programa que apresenta como título programático “um festival dentro e fora de fronteiras”, é neste quadro de abertura a expressões transfronteiriças que se situa também o foco dado, este ano, ao cineasta israelita Nadav Lapid, autor de O Polícia e The Kindergarten Teacher e vencedor do festival em 2016 com From the Diary of a Wedding Photographer. Presente em Vila do Conde – onde, de resto, integrará o júri internacional –, Lapid irá acompanhar a mostra das duas primeiras longa-metragens atrás citadas e também das curtas e média Why?, Ammunition Hill e Emile’s Girlfriend – “filmes que são profundamente contemporâneos, vivem numa sociedade líquida que nos impõe identidades que estão em constante transformação”, nota a direcção do festival. Destaque ainda, noutras das secções (e espaços) que ajudaram a fazer o reconhecimento internacional do Curtas Vila do Conde – a Solar, Galeria de Arte Cinemática –, o programa New Spain, uma exposição a abordar ainda o tema das fronteiras, sejam elas materiais ou geopolíticas. São seis obras criadas por sete artistas do país vizinho, e comissariadas por Nuno Rodrigues (Curtas) e por José Manuel Lopez (colaborador do Museu de Arte Contemporânea de Vigo e do Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela), que se expressam em instalações site-specific, filme, vídeo e fotografia, interrogando sobre “que Nova Espanha é esta que toma o título de empréstimo ao reinado de um antigo império colonial?”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra mulher social género